29/12/2008

Mea Culpa

A culpa. O tema força-me, uma vez sem exemplo, a escrever na primeira pessoa. Porque vivo com isso, porque vivo isso, porque é isso que sou. E não o seremos todos, no fim de contas? No remate de cada discurso com que encenamos uma seriedade que não terá sequer existência real, na aterragem de cada pirueta com que aligeiramos uma vida insuportavelmente carrancuda, no arquejar final de cada orgasmo que nos eleva além da rotina pedestre de nós mesmos – tudo vem a terminar em latim, num mea culpa mais sentido que pensado, única liturgia que nos sobrou de uma infância onde tudo parecia ser muito mais simples.

Não tinha conto nenhum para apresentar que versasse a culpa, talvez por tantos servirem, muitos mais do que poderia aqui contar, ainda que estivesse disposto a fazê-lo, o que de modo algum pretendo ser o caso. Mas comecei a ler outros contos, e admirei-os. Quis comentá-los, e ao mesmo tempo esquivei-me a fazê-lo, porque não valia a pena, porque era óbvio, ou então porque não era. Em jeito de único comentário, digo que não o fiz porque eram bons demais, e todos os comentários que não fossem banais teriam de ser mais altos louvores do que o meu egotismo se sentia, no momento, disposto a permitir. É verdade, todos os escritores são egotistas, como de resto todas as outras pessoas, só que os escritores são obrigados a lidar com isso, faz parte do métier. E olhar para dentro das mais íntimas profundezas da alma, na maior parte dos casos, é como olhar para o fundo de um poço lamacento: causa vertigens, e a imagem é tão putrefacta e desagradável que não vale realmente a pena. Alguns discordarão, direito que sem dúvida lhes concedo, mas não tenho a certeza se esses não estarão, porventura, a olhar para outra alma qualquer, é sabido que há muitas.

Mas isto é um conto, de modo que talvez seja melhor, restringindo-me ao molde, apresentar desde já a história da Luísa. Vocês conhecem decerto a Luísa, a que namorou com a Teresa, e desde já me dispenso de aprofundar a culpa subjacente a esta última frase. A Luísa assumiu essa relação, elas eram a uma da outra, e teriam decerto assumido num altar o seu amor, estivesse porventura tal opção disponível. Não estava, mas era como se fossem casadas, e o Joaquim passava-se completamente com tal coisa.

O Joaquim fora namorado da Luísa numa outra vida, vida que ele se recusava a deixar morrer. Coisa banal, como se vê, mera rejeição de uma relação menos convencional, em que o aspecto inusual não é senão o pretexto que serve às mil maravilhas para o protesto que de qualquer modo não deixaria de existir. A lógica é simples, quero lixar alguém, e o alguém em causa já se expôs à crítica, pois vamos então a isso, todas as pedras são boas para partir vidros, independentemente das razões de quem as atira. Mais não se fez necessário para que o Joaquim arrastasse pela lama o nome da Luísa, sob pretexto de ser lésbica, e outros termos bem menos desculpáveis, mas guerra é guerra, que diabo!

Tanto não lhe bastou, e a coisa acabou num confronto directo, os dois sozinhos, sem ninguém que pudesse intervir, mesmo imaginando que alguém o quereria fazer. Depois desse dia, Luísa perdeu o seu sorriso, e raramente falava, fosse acerca do que fosse. A culpa não terá cabido inteiramente ao Joaquim, antes deveria ser partilhada por muitos, mas é duvidoso que alguém a aceitasse. E muito menos o Joaquim a aceitaria. Caramba, ele apenas fez o que qualquer homem faria, e um homem é um homem, tautologia que parece desculpar muitas imbecilidades.

A vida de Luísa continuou, mais triste, é certo, e sem a alegria de um simples sorriso. Ela poderia até passar por cima de tudo o que aconteceu, talvez conseguisse até lavar-se por dentro, e prosseguir a vida como dantes, fazendo tábua rasa daqueles breves instantes. Mas aquilo que não a larga, o estigma que para sempre a persegue, é a sensação intolerável de que tudo aquilo, a imposição, a violação, foi tudo culpa dela.

A Teresa acabou por deixá-la, compreensivelmente. Ninguém gosta de viver num cemitério. E se procurarmos bem, há sempre alguém disposto a sorrir, ou porque lida melhor com a culpa, ou – mais provavelmente – porque arranjou alguém em quem pôr a culpa. É lixado, concordo, mas garanto-vos que eu não tenho culpa. Palavra de Pinóquio.

27/12/2008

CULPA DANADA

CULPA DANADA

Levantou-se, pôs-se a caminho, chegou à função. Correu-lhe o dia como de hábito, com assaz de desalento. Em final de jornada, terminou a derradeira tarefa quinze minutos antes do toque. Não o devia ter feito, porém. Graças a tal, nas curvas da estrada se ficou alguém que a elas assim chegou pontual ao previsto. Um quarto de hora mais tarde, e seria o destino a capotar sozinho. Culpa danada. E de nada lhe serviu o genuíno arrependimento. Chegado ao seco fim do desespero, embebedava-se ainda na cicuta do remorso. Perdeu-se, entretanto, ao cabo de muitas tentativas de regresso à rotina. A dado passo, acabou por se ver só, entre farrapos de memória e lixo.
Uma noite, acordou enregelado, numa amálgama de cartões e velhos pesadelos. Havia sombras a vaguear perto de um lume crepitando. Cheirava estranho. Titubeante, levantou-se. Ainda na mente lhe picava a mesma desolação, tenaz como nos olhos o ardor do fumo. Valeram-lhe as palavras:
– Chegue-se aqui, amigo. Na rua, a ressaca é mais fria...
Acocorou-se e esfregou as mãos junto do fogo. Aceitou a navalha no fio, metade de uma cebola, meia lata de atum barato. Pelo gargalo, bebeu de um sorvo o resto de vinho que lhe passaram. Carrascão, o tinto soube-lhe tão azedo quanto a lembrança daquele dia que até ao final lhe correra tão como de costume. Sentiu o aperto no estômago, mais agudo agora, com as voltas e o sabor do atum. Culpa danada. Limpou os lábios com as costas da mão e procurou nos bolsos uma beata. Acendeu-a. Três passas após, já queimava os dedos. Lançou-a à fogueira, enquanto se levantava. As duas sombras entreajudavam-se, empilhando cartões e mantas sem cor. Preparavam-se para dormir, numa paciente engenharia de sobrevivência. Vendo-os, soube que também ali não estaria a sua redenção. E disse, numa voz entorpecida:
– Na rua, mais fria do que a ressaca, só a culpa atravessada no coração...
– Olhe, amigo – respondeu ensonado o mais idoso – se de culpa se trata, tranque portas e aprenda a viver com ela. Nesta vida, culpados somos nós todos de qualquer coisa.
Calou-se, diante de tal resignação. O velho ajeitara uma das paredes do abrigo improvisado a meias, virara costas ao companheiro e, puxando o cobertor desbotado, tinha-se encolhido como um feto, a resmungar entre dentes. O fogo morria. Tinha de sair dali, onde já não havia além. Aquela gente definhava no vulcão da indiferença e a isso se habituara, sem perder humanidade. Outra culpa se lhe colava agora à pele, e um arrepio mostrou-lhe enfim uma luz.
Afinal, não precisava mais do que tinha. A folha da vida é escassa e esgotá-la nas linhas da auto-flagelação não conduz a qualquer lugar impoluto, se é que os há. Avivou a fogueira com a última tábua que restava, despiu o casaco e deixou-o sobre as duas sombras adormecidas. Fugiu de sob o viaduto e correu pela berma da circular, até perder o fôlego. Precisava só de um banho. Amanhecia, quando chegou à porta de casa, horizonte do qual se afastara com a culpa danada. Subiu as escadas, meteu-se no duche e deixou-se estar, até culpado se sentir só do que era, coisa de nada.
No dia seguinte, estava nas curvas da estrada onde alguém antes chegara pontual ao previsto. Deixou-lhe um cravo vermelho e chorou. Num repente, qualquer coisa o amparou. Viu-se calmo, então, a pensar na urgência de arranjar um atestado médico para justificar os dias de ausência à função.

24/12/2008

FELIZ NATAL


Desta vez não é um conto... Quero desejar a todos os companheiros deste blog um excelente Natal com muitos contos no sapatinho!

18/12/2008

13 - Mea Culpa (non est) ou o Vôo de Ícaro

Mea Culpa
(non est)
ou
o Vôo de Ícaro
- Sonhei contigo. Disse-o de uma forma discreta, diria até enigmática, sibilando-o em tom profético e augurante.Porém, Henri não a ouvira. Entrara assoberbado de si, envolto em questiúnculas do dia-a-dia. Submergira, há muito, no marasmo de uma existência vaticinada à opacidade. Veramente escurecida no esquecimento, em si, da alteridade. Não reparara na beleza bélica de Sara, algo desértica de si. Não testemunhara o seu perfil crespado, prolongamento de uma alma eriçada e revolta (vista apenas do lado de dentro, entre o visto de quem parte, sem nunca ter chegado, e o olhar de quem nunca precisou de ir), não pressentira a igneidade daquele olhar cheio e, ao mesmo tempo, tão desatento de si. Falhava, nesses ápices de eternidade em que ela lhe dirigia a surda voz, a morada daquela floresta-virgem que irrompia de um debelado vulcão. Essa pulsão interna que a habitava, insondada por si própria, revestia-a, aos olhares desacautelados da turbamulta, de uma desconexa acinesia social alicerçada a um entorpecimento léxico sem igual. Epidermicamente, dir-se-ia que sofria de constrições sintomáticas por todo o corpo. Toda essa linha desataviada se agudizava sempre que o sentia perto ou longinquamente cheirava aquele odor artificioso e afectado que permanecia por incensar (à maneira dos indomáveis, possuía os cinco sentidos hiperespecializados). Sara, de modo mordaz, não atribuíra absoluto relevo ao que acabara de acontecer. Sabia que iria ser encontrada ou babilonicamente procurada. No imo deste enredo irrevogável ou desse grito que, por um lado, a colhia, intrigada, e, por outro, a toldava, dominada, esmiuçava a possibilidade de se ter encantado por descrita figura, apenas porque o sonhara, ou se acaso o sonhara por insuspeito enamoramento. Saiu do trabalho em passadas curtas mas lestas (com dispersas vagações, perdera a métrica do tempo!). Cruzou-se, inadvertidamente, com Henri que não a sentira. Acendera, de imediato, uma cigarrilha como se, por esse diáfano fumo, se abrisse um portal saturno que, em oculto sortilégio, invertesse a ampulheta e a transpusesse, num só salto, nos ensaios de dança que, diariamente, frequentava. Esta era a única hora em que o Absoluto respirava o absoluto de si, ímpar fenda donde as Alturas despontavam e mais fundo do eixo cósmico mergulhava. Era esse o momento em que, no corpo, toda a Poesia a inundava!Chegada à Academia, viu-se sozinha. Tudo silente. Seguiu uma melodia metálica e belicosa que, estranhamente, não conseguia decifrar se viria da sala ao fundo do corredor capitular ou se do fundo estrutural de si própria. Continuava a caminhar, diligente. A luz crepuscular que, de fora para dentro, se alastrava, difundia-se, indiscretamente, não pela tradicional Academia, mas por todas as Idades, Épocas ou Vidas que naquele dédalo momento se adivinhariam. Olhara em redor, certificando-se novamente do abandono daquele espaço, garantindo a religiosidade do acto: inspirara, profunda e amplamente para, na expiração louca ou santificada, largar tudo, chapéu, roupas, mente. Esquecia-se de si. Dançava!Do lado de cá da realidade, um olhar pasmado e hipnótico, seguia todos aqueles movimentos libertos da gravidade de um ferino corpo, todas as somas de deslocações que desenhavam o Infinito, todas as transferências de consciência até à sua exaltação ou total anulação, nesses trajectos despertos para as viagens de vazão do mundo sem partida, do vôo de Ícaro com flama e sem chão! Era Henri que, em estado espasmódico, finalmente, a decifrava!Passados meses de corte, já Sara se cansava de tamanha insistência e persistente teimosia, assemelhando-o a um abutre sanguinolento que, inopinadamente, a sitiava. Henri esperava-a longamente, escoltando-a permanentemente ao local da revelação que, de modo incônscio, iria definir a sua humana condição. Sara, por seu turno, houvera sentido que o olhar dele a perscrutara naquela fatal tarde com que sonhara e sentira, inequivocamente, que a vira dançar ou, em sentido vertical, a vira nascer da entreluz que do sem-centro de si espraiara! Quisera adverti-lo, evitá-lo e acautelá-lo. Ele não a vira, não a pudera sentir ou sequer ouvir. Por natureza, não o conseguira fazer.Toldado pela cegueira do encantamento e exaltado pela bruma cerrada de uma manhã que, na sua totalidade, a imagem de Sara invocava, Henri, com exemplar minúcia, preparava a oferenda final. Decidira-o. Sem desassossego. Nessa manhã, Sara, azafamada com a marcação dos ensaios finais, ouvira em cântico de dor que Henri se suicidara. Resignada, sussurrara, em tom de renúncia: - Mea culpa, non est.
Chloe Plectra

16/12/2008

12 – Consumo

- Mamã, quero aquela boneca!
- Eu quero a Play Station Quatro!
- Compra! Compra! Compra! – gritavam as duas crianças, agarradas à barra da saia da mãe.
- Mãe, eu não posso não ter a Play Station Quatro! Todos os meus amigos já têm, por isso é que já não querem vir brincar comigo. Eu não tenho nada que preste.
A mãe desesperava e maldizia a hora em que os tinha levado consigo ao hipermercado. O local estava absolutamente lotado; tinha demorado mais de uma hora para conseguir estacionar o carro e quando conseguiu ia sendo trucidada por um outro condutor que pretendia o mesmo lugar. Andavam aos encontrões pelo meio da multidão alucinada na busca de presentes de Natal, especialmente brinquedos. Havia caixas rasgadas pelo chão, brinquedos espezinhados, crianças aos gritos (incluídos as suas), pais exasperados, casais a discutir. O ambiente era bastante hostil, embora o fosse em nome do Natal; a festa da família, época de paz, de solidariedade, de mostrar o amor pelo próximo.
Na secção de tecnologia, onde tentava escolher um telemóvel para oferecer ao marido, assistiu à discussão de mais um casal:
- És louco? Não temos dinheiro para comprar um palmtop desses!
- É sempre a mesma conversa quando eu quero comprar uma coisa para mim. Dinheiro para as prendas dos teus pais, da tua irmã, do teu cunhado, dos sobrinhos, etc, arranjas, não é?
- Para a minha família e para a tua, já agora. Mas o que eu vou gastar, com essas prendas todas, não chega ao preço disso. Não temos, mesmo!
- Mas tu não vês que podemos pagar em seis prestações? Ainda para mais, só começamos a pagar em Março.
A mulher ficou uns minutos em silêncio e recomeçou o diálogo num tom completamente diferente:
- Mesmo assim, Zé… Não sei, vai ser mais uma prestação, já estamos tão sobrecarregados. Não podias escolher um modelo mais em conta?
- Lizete, para comprar uma porcaria que não vale nada, não vale a pena. Poupamos cem ou duzentos euros, mas daqui a um ano já está ultrapassado. Este já é um equipamento como deve ser e está em promoção, acredita que está barato.
Lá acabaram por meter o palmtop no carrinho das compras e seguiram.
Ficou parada a ver o casal afastar-se. Ela não era assim, era muito mais comedida, usava o crédito com parcimónia. Não se iria endividar por um equipamento daqueles. Era verdade que já tinha gasto o vencimento e o décimo terceiro mês nas compras de Natal e nuns extras lá para casa. Talvez já tivesse usado o cartão de crédito uma ou duas vezes, não se lembrava bem, três, no máximo (a família é grande). Só iria usá-lo esta última vez, para pagar aquelas compras. O resto do plafond tinha de o reservar para pagar algumas contas domésticas que, por descuido, ainda não tinha pago.
Dirigiu-se à caixa, arrastando os filhos que continuam a gritar exigindo mais isto e aquilo.
- Qual vai ser o meio de pagamento? – perguntou a funcionária.
Entregou-lhe o cartão de crédito, maquinalmente pressionou o “ok”, sem sequer reparar no valor.
- Tem algum outro cartão? – questionou a funcionária.
- Algum problema com esse?
A empregada, simpaticamente, não respondeu, mostrando-lhe apenas o visor do terminal de pagamento electrónico: “NÃO AUTORIZADO”.

15/12/2008

A culpa

Essa entidade cinzenta, indefinida e amorfa que sempre serve de alvo, mas como alvo é esquiva e indistinta.
- Mas, afinal, de quem é a culpa?
- É claro que é deles.
Essa massa, esse corpo, esse saco de boxe, meio roto, em movimento: eles.
- E como?
- Eles é que deixaram isto neste estado.
Pega-se no discurso onde a culpa pegajosa se começava a colar aos culpados. O como, que ainda – na melhor das hipóteses futuras - fará parte de um diagnóstico, nem sequer importa.
- É deles, sim, os irresponsáveis, esses incompetentes...
- A culpa é deles.
- O que importa é que foram eles e nós, não.
- Nós, jamais.
- Nós, nunca.
- E eu, muito menos.
- Eu é que não.
E se a culpa não deve morrer solteira, pois ou muito me engano ou deve ser uma rapariga muito prendada ou com dotes especiais e que é preciso entregar a alguém, já a água do capote convém muitas vezes ser sacudida, pois, estamos exaustos de saber que quem anda à chuva, molha-se e se o capote lhe dá para não ser impermeável...
- Agora de nada vale, eles conseguiram colocar isto de pernas para o ar...
- No ponto miserável que isto está.
- Sim, porque os indigentes, esses ignorantes...
A culpa quando ataca e se cola a eles, geralmente encontra o isto – de igual modo tão indefinido quanto ela - já tão desvalorizado, que não deixará de ser um isto pelos séculos futuros...
- É, ... a menos que alguma entidade pegue nisto e lhe dê a volta.
Já vimos que a culpa casa geralmente com isto e com eles, o que não faz dela uma moça virtuosa. Também, nos dias que correm, quem quer casar com uma moça virtuosa? Isso seria sinal de ignorância. Nos dias de hoje se não sabes...
- De qualquer modo, desde que esteja casada com eles e com isto e não comigo...
- São todos uns corruptos...
- Estás a falar de quem?
- Deles, de quem pensas que é a culpa?
- Que lindo capote tens. É impermeável?

10/12/2008

11 – Um Português no Japão

Nota: as palavras japonesas que se seguem foram, na sua totalidade, inventadas pelo autor, pelo que é extremamente improvável que tenham efectivamente os significados que lhes são atribuídos. É por outro lado possível que, por alguma casualidade não prevista, tenham outro qualquer significado, eventualmente menos próprio, pelo que o seu uso em viagem é veementemente desaconselhado.

Tomboka Muraka. Foram estas as exóticas palavras que me acolheram, tão de chofre como as lanço agora nesta folha, ainda mal firmara os pés no oriental pavimento do aeroporto internacional de Xon-Ton-Kabom (é mais ou menos assim que se pronuncia, e não me sinto à altura de tentar desenhar os ideogramas correctos). Senti-me feliz, confesso. Sendo português, sempre considerei o mundo como a minha pátria espiritual, e facilmente me adapto a qualquer sítio onde vá, mas jamais esperara esta aculturação instantânea. Ainda trôpego da viagem aérea, arrotando com fastio a mal digerida sanduíche de mamífero não especificado, abatido à paulada num qualquer depósito de lixos tóxicos, que nos meios afectos às viagens aéreas se faz passar por uma refeição decente, observava com nauseada resignação o desfilar incessante de malas e sacos e mochilas, e outras coisas que no seu colectivo se designam por bagagem, e via de regra se caracterizam por não se parecerem minimamente com nada que nos pertença – quando a jovem oriental, quiçá uma gueixa, me brindou com uma inesperada vénia, um tímido sorriso, e o melodioso Tomboka Muraka.

Imitei o melhor que pude a vénia cortês, omiti por prudência o sorriso – eu não sou realmente mais bonito quando não sorrio, mas assusto bastante menos – e proferi o meu reverente Tomboka Muraka. Ela lançou-me um olhar penetrante, um olhar alagado de um espanto que logo cedeu a vez ao ressentimento, e depois a uma espécie de desprezo altivo, que me ficou a bulir no espírito, ainda depois de perder de vista, no meio da multidão, as suas costas que se afastavam. Um japonês idoso fez-me o favor de me despertar do meu devaneio, pelo processo de quase me perfurar o externo com o dedo indicador, manobra com que pretendia chamar-me a atenção para uma mala que era efectivamente a minha, e que completava entretanto uma triunfal segunda volta ao circuito. Tomboka Muraka, resmunguei-lhe, mas ele sacudiu a cabeça, penalizado, e afastou-se. Invadiu-me então a insidiosa suspeita de que ainda me faltava aprender muito, para me poder sentir em casa naquele estranho país.

Por todos aqueles primeiros dias da minha estadia em terras nipónicas, a frase foi-me pontualmente perseguindo, e, a par dela, a minha atroz ignorância. Aprendi de facto outros termos, como é meu hábito invariável, de cada vez que visito qualquer país. Aprendi, por exemplo, Gon-Ta, que significa “almoço”. Aprendi Gon-Zen (“almoço efectivamente comestível”), Zon Tihg Xam Veng (“os meus antepassados deleitam-se na honra deste encontro”), e Zon Ghah Vehong Gan Xalam (“importa-se de tirar o dedo do meu ouvido?”). Um outro português, que casualmente encontrei por lá, tentou ainda ensinar-me a tratar os veneráveis idosos pelo respeitoso título de Xin-Pan-Zhé, mas desconfiei que estava a ser desfrutado, e preferi ignorar a suspeita expressão. Dominei ainda outros étimos, mas sempre, ao longo da minha aprendizagem, me ia falhando o enigma inicial.

Que, diga-se, jamais deixou de me perseguir. A todo o passo, após um qualquer diálogo em que eu introduzia uma ou outra frase mais feliz, que me deixava orgulhoso da minha proficiência linguística, e me levava a achar-me já em condições de ser apresentado ao imperador no seu palácio, logo alguém me abordava, e me lançava o arrenegado Tomboka Muraka, prenuncio sempre de embaraços e humilhações.

Desesperei! Sem rumo nem tino, vagueei pelas ruas enxameadas daquela metrópole, perambulei sem destino pela miríade de celestiais jardins, e por toda aquela terra tentei perder-me de mim mesmo, da minha falha vergonhosa, da estúpida incapacidade de me mostrar digno de um povo que eu, como embaixador do meu próprio, visitava. Percorrendo por fim uma alameda de delicadas macieiras em flor, acabei por encontrar um cavalheiro, tão ocidental no vestir como japonês nas feições, que se curvou num respeitoso sorriso. Sabia já o que me esperava, e foi sem surpresa que ouvi o familiar Tomboka Muraka.

Estoicamente, preparei-me para me rojar aos seus dignos pés, suplicar humildemente o seu perdão para a minha falta imperdoável, oferecer em contrição o desagravo de vetusta lâmina que rasgasse ritualmente as minhas indignas entranhas, quando o meu olhar pousou casualmente sobre a sua mão direita, e a luz da compreensão brilhou de súbito, num clarão intolerável, surpreendente e ofuscante.

Com a vénia mais perfeita que fui capaz de produzir, estendi-lhe o meu isqueiro. O digno cavalheiro acendeu pausadamente o seu cigarro, e devolveu-me o lume, murmurando um cerimonioso Tomboka Arigato. Curvei novamente a espinha, e triunfei. Após uma semana de agonia espiritual, estava, por fim, aculturado!

Consumo

Ainda não é um conto, mas fica prometido que o próximo há-de ter essa pretensão. Até lá, força a esta bola de neve...

CONSUMO

Eu, consumidor, me confesso. Consumo cigarros em estado de vigília. Consumo copos entre o balcão da tarde e as horas vazias. Consumo noites nem sei bem como, agora que não consumo lingerie para oferecer à vida. Pelo meio, consumo cafés a fio e conversas de circunstância, só para gastar pavio em tascas manhosas onde ainda é permitido consumir pezinhos de coentrada e pastéis de bacalhau sem código de barras. Consumo versos e outras substâncias de consumo corrente, raro ou ilícito, conforme o ponto de vista do consumidor em causa. Consumo blues. Consumo ideias fora do mercado. Consumo quilómetros quando posso.
Eu, consumidor, me confesso. Nunca acreditei no Pai Natal, mas na meninice escrevi longas cartas ao Menino Jesus, crendo que elas lhe chegariam mesmo assim, tão cheias de desejos, tambores, bolas de cauchu e camiões de madeira quanto de atropelos à ortografia. Consumida que foi pelos anos a ingenuidade, foram-se os erros ortográficos e ficou a certeza do Menino não sair agora dali, do quentinho de barro do presépio armado no tampo da arca coberto de musgo a 9,99 € a caixa, pequenina. Dali não sai, é certo, como provável é nunca ter saído da crença de cada um, nem mesmo para apreciar as luzinhas da quadra brilhando feéricas na fachada dos monumentos, perturbando nas árvores o sono dos pardais ou piscando humildes 5, 60 €, quando compradas na loja do chinês. Pois. É isso. Não acredito, mas consumo o folclore destes dias, do presépio à árvore de plástico iluminada, passando pelo bacalhau, mais as azevias e os coscorões e os sonhos da inevitável consoada. No dia seguinte, além da ressaca, consumo quase sempre roupa-velha, num bom refogado em azeite e alho. O vinho, esse, será o que tiver sobrado.
Eu, consumidor, me confesso. Na vaga natalícia, consumo ainda as vulgares boas-festas a toda a gente, o prazer de estar bem onde sempre bem estou. Por isso, consumo também remorsos. Porque enquanto entre família e amigos consumo o tempo que me resta, outros e muitos há a quem não sobra mais do que consumir os restos da boa-fé esporádica de cada um de nós. Seria aí que o Menino Jesus devia aparecer, proibindo esmolas, recolhas de bens, vendas de beneficência. Se assim fosse, não consumíamos solidariedade em datas marcadas. Éramos solidários. E a banca nunca seria o que é.
Eu, consumidor, me confesso. Pelos vistos, sou também capaz de, entre romances recém-publicados, perfumes da moda e brinquedos, consumir finais politicamente duvidosos.

09/12/2008

11 – Um Português no Japão

O avião começava a perder altitude, à medida que se aproximava do aeroporto de Tóquio. Estava prestes a aterrar no maior aeroporto do mundo e a ter contacto com uma civilização totalmente diferente daquela que conhecia até então. Nas minhas expectativas estavam uma mescla de toda a tradição oriental (calma, espiritualismo, sabedoria milenar) com a mais avançada sociedade de consumo, gerida por tecnologia de ponta.
Tóquio, que quer dizer “capital do leste”, é uma cidade cuja parte central tem oito milhões de habitantes, quase tanto como a população total de Portugal. Portanto, estava certo que uma coisa me esperava: grandeza.
O avião aterrou às nove e dez da manhã (hora local), exactamente como previsto, após uma viagem de dezasseis horas, que incluiu Lisboa – Londres e Londres – Tóquio. Primeira consequência, era já oito horas mais velho do que seria se estivesse em Lisboa. O que vale é que iria rejuvenescer assim que regressasse (esperava não morrer por lá).
No aeroporto esperava-me um japonês (naturalmente) com um cartaz “Mr. Librorio Mendonza". Mesmo em Portugal era usual escreverem mal o meu nome, por isso não estranhei. Levou-me directamente para o hotel – o Park Hyatt, um dos hotéis mais luxuosos do mundo. Nunca tinha estado num hotel assim, senti-me um rei. Ter-se iam sentido assim os primeiros mercadores portugueses a chegarem ao Japão, em mil quinhentos e quarenta e dois?
Será que iria ter tanto êxito a vender azulejaria tradicional portuguesa como eles tiveram com as armas de fogo?
Estava ali a convite de uma empresa japonesa para lhes apresentar toda a nossa linha de produtos, com vista à sua distribuição no Japão. Estava um pouco nervoso; toda aquela quase majestosidade… Embora já tivesse tido muitos encontros de negócios, nunca tinha sido recebido daquela forma. Sentia quase como se os estivesse a enganar – eu não seria, por certo, um homem de negócios com a importância que eles pensavam. Esse provável equívoco, embora me satisfizesse o ego, dava-me uma horrível responsabilidade e uma quase certeza de que os iria desiludir. Por momentos, entrei em pânico – queria fugir! Como iria enfrentar a vergonha de não ter produtos à altura daquela grandiosidade? Iriam encarar-me como uma fraude!
Não tive muito tempo para continuar a conjecturar sobre a reacção dos japoneses. O telefone tocou. Era a recepcionista avisando-me que me esperavam no lobby do hotel. Desci receoso, pensando se não seria melhor ideia apanhar um táxi de volta para o aeroporto.
Um amável motorista esperava-me para me levar ao restaurante onde os dois representantes da empresa local já me esperavam. Tratava-se de um restaurante tipicamente japonês (ou talvez fosse japonês para estrangeiros, não saberia a diferença), com uma cozinha bastante elaborada.
No decorrer do jantar, apercebi-me como os meus companheiros de refeição apreciavam e valorizavam tudo aquilo que era da sua terra. Num primeiro momento, pensei que era fácil, sendo eles de um dos países mais desenvolvidos do mundo. Reflecti melhor; eles limitavam-se a ter orgulho em ser quem eram e a enfatizarem tudo aquilo que o seu país tinha de bom. Seria assim tão estranho? Porque é que eu não podia simplesmente mostrar orgulho em ser português e dar-lhes a conhecer um produto manufacturado que, na actualidade, não sendo um exclusivo português, é quase. E, se tivermos em conta, as técnicas utilizadas e a história desta arte, é mesmo única. Uma arte que tem a particularidade de revelar a história do seu povo, desde há séculos, através de matérias tão resistentes que pouco se deterioram com o passar dos séculos. É, realmente, impar!
A adesão àquilo que tinha para lhes mostrar foi surpreendente. Tive a sensação de lhes estar a vender armas de fogo no século dezasseis. Foi com este orgulho de ser português, de transmitir essa arte milenar que transmite a nossa história e aquilo que somos, que me tornei no maior exportador de azulejaria tradicional portuguesa para o Japão.

10 – Loucura.

(Diário da vida de um são)

8:00
Constitui uma redundância, quase uma patetice, mesmo, chamar alucinante a uma vida levada entre loucos, jornada que se compõe de pedaços de insanidades diversas, colados e justapostos como um puzzle, tentativa inglória mas porfiada de construir um rumo a partir de muitos desnortes. Será sem dúvida uma vida estranha, será talvez uma vida desperdiçada, muito possivelmente uma vida destinada ao fracasso, àquele fiasco último do não-ser, mesmo sendo. Sem embargo, é essa a minha vida.

8:15
Pequeno-almoço engolido à pressa, quase esquecido de saborear, inicio as minhas rondas. Se de alguma coisa dou graças, é que não decorre entre prisões esse meu perambular. Liberdade, é essa a terapêutica moderna, e o louco contemporâneo deixa-se visitar num ambiente que em nada sugere as velhas celas almofadadas, e as pauladas que no passado visavam espantar os demónios de dentro do infeliz possuído. Nada disso, nos tempos hodiernos os loucos podem viver a sua ilusão de liberdade, exactamente como as outras pessoas. É claro que isso acarreta alguns inconvenientes, tal como o de chegarem a pensar que são de facto pessoas como as outras, mas esse é um pequeno custo, e vale a pena pagá-lo.

12:00
O bem-vindo, o ansiado intervalo do almoço. Convém aqui que nos entendamos, gostar do que se faz não é o mesmo que ser-lhe imune, e lidar com malucos é uma ocupação exigente, das que chegam a dar com um homem em doido. Passei parte da manhã a conviver com um simpático tresloucado, que me pareceu viver sob a ilusão de ser uma pessoa muito importante; por várias vezes insistiu em que o deixasse em paz, para poder fazer o seu trabalho. Até onde pude apurar, esse trabalho envolvia um empenho algo desordenado num sem-número de empreendimentos que não iriam realmente concretizar-se, visto que outros – que ele curiosamente apelidava de malucos – não o permitiriam, sob pretexto, justamente, de desejarem fazer o seu próprio trabalho. Tudo considerado, um caso banal e bastante comum.

17:00
Tarde quase inteiramente ocupada com um caso dos mais clássicos, uma maníaca religiosa. Tomei alguns apontamentos, que espero desenvolver num ensaio, quando a minha disponibilidade o permitir. Um dos aspectos mais interessantes que tenho observado neste tipo de mania é uma curiosa hierarquização dos diversos pacientes, determinada, tudo parece indicá-lo, pelo grau de popularidade da respectiva fantasia. Deste modo, alguns acabam por gozar um estatuto de respeitabilidade e privilégio, pelo facto de partilharem com muitos outros o seu devaneio favorito, enquanto outros acabam por se ver marginalizados pela relativa raridade da sua alucinação. Chegam mesmo os primeiros, com deliciosa ironia, a apodar estes últimos de malucos. Palavra de honra que não invento, pois assisti a isto com os meus próprios olhos e ouvidos: um dos doentes (o minoritário), alertava em alta gritaria quem o quisesse ouvir, que a raça humana estava condenada, pois os antigos deuses pagãos tinham-se infiltrado entre nós, disfarçados com a nossa roupa interior. Um outro maluco (o consensual) exortava-o a que se deixasse de disparates, e confiasse na graça de deus, que incansavelmente velava por todos nós, especialmente por aqueles que comessem uma bolacha todas as semanas. Não me ri de nenhum deles, porque sou um profissional, e não é bonito rir dos doidos.

19:30
Fin de journée. E bem a tempo, que esta ocupação tem tanto de exaustivo como de absorvente. Tão absorvente, aliás, que talvez me acontecesse continuar o meu trabalho indefinidamente, sem pausas, se não me detivessem os assistentes que todas as tardes, pontualmente, me afastam desta fascinante labuta, e me levam, bem enquadrado entre as suas batas brancas, para o meu local de repouso. Nessa ilha de sanidade, bem delimitada pelas quatro paredes suavemente acolchoadas de um cubículo de eremita sonhador, refaço as minhas forças, bem refugiado deste mundo que a loucura destemperadamente governa. É aí que medito, e sopeso a realidade na balança que é a imagem que dela faço, balança que não deixo nunca de ir calibrando com os pesos que por aí encontro. Tento não rejeitar nada só por me parecer inusitado ou pouco popular, nem nada aceitar só porque outros o aceitam. Tento não chamar vermelho ao amarelo, só porque me agradava que fosse vermelho, e esforço-me por não pensar o que os outros dizem que pensam, só por causa de o dizerem.

Tento, acima de tudo, não dar em doido. Porque, se isso um dia acontecer, receio bem que acabem por me expulsar do manicómio, e me mandem para casa.

06/12/2008

Em época de consumo... um sorriso por uma moedinha

E como o prometido é devido, aqui fica meu contributo:


Era uma vez um homem magistralmente sério, de lábios salientes, estendidos em forma de concha, numa boca muito séria, com um nariz vulgar muito sério, com um olhar escuro muito sério, que viajava no metro, com um fato preto que lhe dava um ar também muito sério. Este homem era ainda um jovem, que parecia preocupado apenas com o seu ar sério.
Nascido na nova geração de primatas portadores de genes de informação tecnológica, que aprenderam as leis da economia do tempo global, este jovem rapaz, de ar muito sério, parecia viver para a sua imagem muito séria, ignorando as perspectivas caleidoscópicas que lhe dava o espelho do mundo, muitas delas nos antípodas do sério, apesar de ter aprendido precocemente a lei da mobilidade.
Entretanto, o metro repetia o percurso do dia, da semana e dos meses e o jovem muito sério entrava muito cedo no metro, com um ar muito sério e regressava à noite, já no adiantado da hora do serão, também com um ar muito sério. Mesmo quando passavam mendigos, mendigos iguais a todos os mendigos, desde que ele se conhecia que assim era, mendigos de acordeão, de cãozinho enrolado ao pescoço, ceguinhos de tigela numa mão e bengalinha na outra, mulheres maltrapilhas com crianças ao colo, o homem sério mantinha o semblante e nunca ninguém o vira oferecer uma moedinha ao freguês ou ao ceguinho.
Certo dia, perto da hora da ceia de Natal, o senhor muito sério entrava no metro de regresso a casa, quando é abordado por um mendigo, desses que não gosta de receber sem dar em troca, pensos rápidos, canetas coloridas, ou outras utilidades made in China, todo vestido de vermelho, carregado com uma meia gigante também vermelha, de onde retirou um objecto feito em silicone, em forma de boca, em meio sorriso contagiante, e o ofereceu ao senhor muito sério, em troca de algum dinheiro para a ceia de Natal. O senhor muito sério, carregado de compras de Natal, mais sério ficou e virou costas, reclamando entre dentes: Que inutilidade!

O Quadro

Está atrasado e será apenas um floquinho de nada, mas aqui fica "O Quadro", enquanto me consumo um pouco a ver se engendro o "Consumo". Boas festas a todos. E obrigado pelo desafio.

O QUADRO

O quadro era uma coisa incómoda. Outras havia, claro. Do corte ao fazer a barba e logo no lábio à solidão ao longo da noite, passando por todas as bicas frias do dia, eram mais que muitos os incómodos rotineiros. Mas o quadro, o quadro passava-o dos carretos. Sempre ali, onde quer que estivesse, sempre o mesmo, e sempre nele um qualquer pormenor esquivo, seja na luz, linhas ou textura seja nas cores, formas ou moldura. Sempre o mesmo, salvo raros cambiantes inefáveis.
Uma das causas de semelhante mal-estar, mau grado a situação, era mesmo um compulsivo impulso pelas palavras estranhas, uma quase certa tendência para nelas rever a impotência de ser, sem a ele o ter ali, tão incómodo. Por vezes, tapava-o de um manto de indiferença. De tão diáfano, acabava logo por revelar tudo o que era manto e quadro atrás. Devia ser esconjuro, cena da vida feiticeira ou algo que o valha. Certo é que o incomodava como bolso vazio em dia de consumo. Outras, ignorava-o. Olhava-o como se visse ao espelho uma sombra qualquer. Cada vez mais velho, nele, cada vez mais importuna, a sombra no quadro. Tremia ou mantinha-se hirto, à laia de treinador de bancada ou bruxo nos holofotes da televisão. Por isso, vezes outras suspirava, umas fundo algumas nem tanto, fechando os olhos.
Outro dos motivos não era, porque tanta certeza não há, mas bem podia ser a polissemia do termo. Quadro. Quadro preto é infância, quadro eléctrico é pai, quadro só é parte de moto, é conjunto, é panorama. Quadro é um aborrecimento de lados iguais, um passado fechado, um presente que já não é, um futuro recente por definir. Quer dizer, tudo junto, o dito era, é, capaz de o pôr de quarentena assim que nele punha a vista, o pensamento ou o sonho. O quadro era uma coisa tão incómoda quanto as palavras.
Mudou-o de parede. Mudou depois de casa. Julgou deixá-lo no sótão, na cave e ainda no arrumo das ideias de barbas, junto à lenha do Inverno. Tentou tudo, até esquecer o alfabeto ou não contar mais do que dez dedos. Procurou após mudar de destino, tentativa primaveril de se desfazer de si, inútil acção. Ali tinham de ser, tanto quanto aqui. Ele e o permanente incómodo do quadro à sua frente, nos limites da armação por colocar no começo das medidas a tomar.
Pronto. Cada decisão ficava logo ora longe da vontade ora a meio caminho da consciência ora demasiado à mão do coração. E era aí, invariavelmente, que lhe vinha o dito corte ao fazer a barba e logo no lábio. Postos os óculos, alargava-se o quadro nas suas três e vulgares dimensões, entre hábito e cafés frios, arrastando-se como um gerúndio aos balcões de ocasião.
E pronto, sem ser assim. Porque lá dentro, no fundo da íris dos olhos no centro do quadro, embaciada embora pelo chuveiro matinal, brilhava uma mesma teimosia pós-duche, uma das tais palavras constantes, uma nuvem de significados, um qualquer sonho por cumprir. Hoje é que é. Hoje é que há-de ser o que quer que seja que se deseje, deseja. Hoje. O quadro era sempre este, salvo raros cambiantes inefáveis.
Por isso o incomodava, tão provável era com ele passar-se dos carretos, baralhar as linhas de que se cosem os cozidos no fogão a lenha do politicamente correcto. Primeira, segunda, terceira. Domingo, segunda, terça, o quadro, a quarta, a quinta e a sexta, assim houvesse motor para tanto. No fim, restava da semana o roncar da infinita teimosia atrás mencionada, o querer ser além do fogo, do faz-tudo e até de conta, sem nada fazer.
Ou, fazendo o nada que se tem cada dia a fazer, fazia o tudo que o quadro lhe ditava: era homem, e o quadro só o enquadrava nos limites que a vida lhe ditava ao espelho. Fosse quadro e não homem, faria o mesmo.

05/12/2008

Conto da semana

O Consumo

Era a véspera de Natal e os presentes estavam todos dentro do saco do Pai do Dia Seguinte Que Veste de Vermelho Desde Que A Coca-Cola Se Lembrou Do Estratagema. As rédeas das renas não tinham ficado, desta vez, nas mãos do Tio Estêvão enquanto se esperava a chegada do velho. Agora a origem, a mina, era mesmo a bagageira de um automóvel, de onde o ancião ia retirando, com a maior das "latas", um arsenal interminável de embrulhos. Andara numa fona nesses últimos dias recolhendo num consumo desmesurado as prendas que fariam as delícias das crianças. A noite estava fria e os jantares estavam terminados. Algumas das famílias preparavam-se para sair de encontro ao galo que nunca viram em missa sempre assim nomeada e pela porta de uma das casas dessa rua deserta saíu um pai e uma criança.
O primeiro, ao ver o velho a retirar o saco da bagageira do automóvel disse para o filho:
- Estás a ver, eu não te dizia que ele existe?
Conto comigo e com todos os autores para fazer uma grande bola de neve de modo a esta prática se tornar irreversível.