29/12/2009

E o nono, Nuno?

Foi a primeira vez que privei com alguém vindo do arquipélago da Madeira. Andava na Faculdade, e para aí no terceiro ou quarto ano, se a memória me não atraiçoa, calhou-me numa ou duas cadeiras uma colega que vinha da ilha com o mesmo nome. Rapariga bem-disposta e com réplica sempre pronta, tinha igualmente uma capacidade extraordinária para se integrar numa qualquer equipa recém-formada e para partilhar tarefas e responsabilidades.

Mas o que mais me agradava nela era aquele modo particular de falar, aquele jeito de ditongar algumas vogais acentuadas ou de palatalizar o /l/ em alguns contextos ou, ainda, como nos ensinavam os trabalhos científicos, de vocalizar ou semivocalizar o –s final quando seguido de consoante sonora ou de fricativa surda.

Havia, naquela pronúncia, um certo encantamento, um toque exótico requintado que espontaneamente a trouxe para um grupo de trabalho de que eu fazia parte, eu e mais um colega e uma outra colega. Um bando de quatro, duas e dois, que se deu muito bem e trabalhou com bons resultados.

Já não sei em que altura dos nossos encontros e discussões de ofício se falou de um fruto característico do arquipélago madeirense, desconhecido de todos, menos da colega daí nativa. Convém sublinhar que nesses tempos idos ainda a globalização não era o que é hoje, e os mercados e frutarias não tinham o colorido que agora ostentam – uns cachos de bananas, um ou outro ananás, uns quantos raros maracujás, umas romãs e uns dióspiros e por aqui se ficava o ramalhete com cheiro tropical.

A colega, perante a nossa ignorância, prometeu trazer-nos da sua ilha da Madeira uma meia dúzia de exemplares daquele raro fruto, para que o mirássemos e degustássemos.

Por alturas de Dezembro, a nossa madeirense, que dera um saltinho à casa natal, no Funchal, presenteou-nos com o tal fruto: redondo e não muito volumoso (embora os haja grandes), com casca lisa (embora a haja rugosa), semente preta e uma polpa esbranquiçada e doce. Passou no teste.

Ficámos todos a saber o que eram as tão afamadas anonas e a conhecê-las por dentro. A minha colega madeirense tinha razão em fazer-lhes publicidade, tão longe estavam de nós e do nosso palato. Não sei porquê, mas ainda hoje quando as vejo, as anonas, me lembro da colega; e quando me lembro da colega me vêm à memória as anonas. Como são imprevisíveis os caminhos do desejo!

Ah, e o nono no meio de tudo isto? De um a dez, é só contar. Quase classificação máxima. O Nuno que o confirme, contando…

30/11/2009

A porta é uma saída pela qual se entra

Na época em que vos conto esta história ainda não existia o conceito de subsídio-dependente, nem conceito nem sistema, simplesmente não existiam subsídios para os mais ou menos necessitados.
Elena, uma jovem mulher igual a tantos pobres, não teve outra solução senão a de se render à mendicidade para alimentar a família.
Na rua, Elena tentou várias vezes esticar a mão nua para que nela depositassem algum dinheiro, mas esta táctica nunca resultou, na sua mão apenas caíam propostas obscenas. E compreendia-se porquê, Elena possuía uma beleza fora do comum.
Como se calcula, era-lhe muito difícil conviver com a sua situação baixa, ter que necessitar e ter de se submeter, e por tudo isto, decidiu fazer-se à vida de pedinte à moda antiga: bater porta a porta, abrir o saco dizendo apenas dê-me alguma coisinha. Por vezes o saco até se abria para receber nele pão, enquanto outras, um tenha paciência – como se pode pedir paciência quando a necessidade nos grita silenciosamente… com mais pão.
Tendo aprendido que a paciência não é tanto uma virtude mas uma mágoa que contraria o espírito e o corpo, Elena continuou de porta a porta até que uma delas estava identificada com um nome – algo invulgar na sua cultura –, perante o rótulo colado na porta hesitou em bater nela por considerar que poderia ser uma empresa. Mas o destino, sempre indomável, obrigou-a a dizer truz-truz com os nós dos dedos.
Desculpe senhor, esta casa é uma empresa ou uma casa particular? Depende, respondeu Maslow. Pois… Disse ela acanhadamente. Pode ajudar-me com alguma comida, dinheiro, roupas…? Entre, entre, convidou Maslow.
Que encanto de rapariga, será que ela aceitará que lhe ofereça um banho…? Tenho a certeza que realçaria ainda mais a sua beleza. Maslow calou o convite e dirigiu-se à cozinha recolhendo alguns alimentos cozinhados no dia anterior para doar à miséria. Mas, o problema da coisa dar, é que esta pressupõe sempre uma troca – nem que seja um obrigado.
Maslow queria beijá-la apesar da ténue imundície de Elena. Ele surgiu da porta da cozinha sem utensílios à vista e verteu-lhe no saco os restos de comida de que já não necessitava. Obrigada, obrigada, agradeceu Elena.
A porta pela qual entrara era logo dois passos atrás dela, mas ambos ficaram a olhar-se como se o tempo tivesse parado – com um olhar comum, sobre o nada. Maslow, com os anos, deixou de pedir beijos, mas tal não significava que não necessitasse deles, apenas se esqueceu como se pediam.
Uma vez mais, agradeço muitíssimo a sua ajuda, disse Elena e virou-se para a porta. Olhe… não sabe que as portas não são saídas? Sei, sei, disse ela. Sei que servem para entrar e para sair. Oh, que inocência a sua… Ela não lhe prestou muita atenção e lançou a mão ao trinco, puxou-o à direita. E sem qualquer suspiro, Elena, desde o seu mais fino cabelo, transforma-se numa estátua de sal. Maslow, por sua vez, perante uma tão delicada e translúcida imagem, ajoelha-se diante da sua inofensiva imobilidade e com uma agitada excitação, começou a lambe-la enquanto lhe dizia, obrigado, obrigado.

28/11/2009

O Jantar do Blog

Caros bloguinstas,

terminou mais um encontro do nosso blog. Mais um sucesso! Ao invés do anterior, desta vez participaram quatro membros femininos (aliás, todos), estanto os membros masculinos dignamente representados pelo Armindo.
Desda vez podemos afirmar que o jantar foi óptimo, incluindo o próprio repasto. Diversão também não faltou, sendo que três dos elementos (esta vossa humilde secretária incluida), foram para a farra até estas horas...
Esperamos com anseadade o jantar em que conseguiremos reunir todo o grupo.
Até à próxima!
Um Abraço

26/11/2009

Jantar do Blog (Update)

Tal como previsto, o 2º jantar do blog realizar-se-á amanhã, 27 de Novembro de 2009, pelas 20h30. O local será o Restaurante Casa da Morna, sito na

Rua Rodrigues Faria nº 21,
1300-501 Lisboa,

O restaurante fica em Alcântara, por trás da esquadra do Calvário. Para garantir que ninguém se perde, fica aqui este mapa com a localização exacta.

A todos os que estarão presentes, renovo os meus votos de um excelente jantar literário.

22/11/2009

Porta sem casa

Há muitos anos, concluída a escola primária, ia-se da minha aldeia para a cidade. Ia-se, pode mesmo dizer-se, para o mundo, para um mundo novo, porque o mundo que qualquer criança nessa altura tinha, numa aldeia como a minha, era um mundo velho, com caminhos de terra batida, com ruelas empedradas há séculos e ruas de paralelos puídos. E as casas eram também velhas e gastas, como boa parte das pessoas que nelas morriam.

Há muitos anos, quando a gente miúda crescia e tinha muita sorte, e alguma queda para os livros, ia para a cidade.

Eu era ainda catraio, e apesar de não ser assim muito dado às leituras, que havia coisas mais importantes para dar sumiço ao pouco dinheiro, tive muita sorte, sobretudo porque, ao contrário de muitos amigos meus da aldeia, tinha um tio velho, daqueles da cidade, que era ou tinha sido inspector da educação, um tio muito influente e muito bondoso que achava que uma criança, ainda mais sendo da família, devia estudar muito para ser grande, como muitos outros grandes que havia na parentela. E os meus pais, numa humilde obediência a que se juntava algum orgulho, mandaram-me para a cidade para aprender a ser grande e entendido.

É claro que fui. Durante alguns anos fui sempre, sozinho e de camioneta, para o novo mundo que aos poucos me foi sendo familiar e cada vez mais pequeno, quase como a minha aldeia, mas isso foi só mais tarde, quando dali fui para a capital, e agora para o caso pouco interessa. O que agora importa é que eu ia e vinha, diariamente, e regressado a casa, deixada a mala carregada com livros e tudo, e mudada a roupa limpa por outra de trabalho, comia qualquer coisa à pressa e ala para o campo ou para o monte, ou para o monte ou para o campo, dependia das estações e do que se buscava na terra, que o pessoal por lá andava, a maior parte do tempo o dia inteiro, e eu não era nenhum fidalgo, como me lembrava o meu avô.

Mas o que me tornava grande mesmo, depois que comecei a ir para a cidade, era eu chegar à aldeia lá para as duas e meia ou três da tarde, correr rua acima, empurrar a porta ou o portão do alpendre, galgar o pátio enxotando as galinhas, ir direitinho ao lugar onde se escondia a chave de casa e depois, como dono de uma mansão, abrir a porta de entrada e entrar. Aquilo era tudo meu, e eu tinha uma chave, e uma porta para abrir sem ninguém dentro que me estorvasse.

Esse alpendre ainda hoje existe, também o pátio e também uma casa, mas já não há galinhas à solta nem mãos que lhes dêem comida ou boca que as chame pelos nomes. Quando ainda lá vou, por ir, à casa da minha aldeia, sei de cor o lugar da chave, mas não há ninguém no seu interior que me queira estorvar a passagem, só porque agora, simplesmente, a porta deixou de ter a minha casa dentro.

21/11/2009

Portas, para que vos quero?

A fábrica de portas suspendeu o que ainda restava da sua actividade numa anódina manhã de terça-feira, vindo a declarar falência no dia imediato. A dúzia e meia de funcionários que a fábrica ainda empregava encontrou sem dificuldade novas colocações, e a fábrica ali ficou, parada e inerte, à espera de um futuro que se prefigurava pouco auspicioso. Da outrora florescente empresa apenas restaram dois sócios perplexos e derrotados, tentando a todo o custo compreender por que bulas falhara aquele empreendimento.

A fábrica tivera todas as condições para triunfar, e isso não fora fruto de um acaso fortuito. Pelo contrário, a área de negócio fora cuidadosamente escolhida com a intenção de assegurar o sucesso. O produto tinha procura, caramba, toda a gente precisava de portas, estava ali um mercado garantido. E mais do que garantido, era um mercado exclusivo, pois nenhuma outra empresa fabricava portas em toda aquela região. E no entanto, eis que se viam falidos. O sócio principal, que se comprazia em ostentar o título de Presidente da Companhia, jurou não descansar antes de descobrir o que causara a lamentável derrocada, e partiu em demanda dos enigmáticos factos.

Um primeiro vislumbre da verdade atingiu-o assim que entrou numa aldeia, e percorreu com um olhar lento e inquisitivo a fileira de casas sem porta que se perfilavam ao longo da rua principal. Não era que se desse o caso de não terem essas casas nenhuma entrada, pois que todas ostentavam a convencional abertura rectangular, emoldurada de ombreiras, mas que nenhuma porta fechava. Ao longo de toda a rua, simpáticas vivendas e modestas choupanas escancaravam o seu interior a quem quer que passasse.

O Presidente deteve-se na contemplação de um desses interiores, notando a mobília de razoável qualidade, a mesa posta para o almoço que se aproximava já, a televisão de bom tamanho, sintonizada num canal popular. Preparava-se para observar mais detidamente uma pintura que lhe captara a atenção, quando recuou com embaraçada alacridade ante o proprietário da casa em questão, que irrompendo de algum recanto interior lhe vinha dirigir a palavra.

Os fragmentários pedidos de circunstanciais desculpas foram atalhados pela bonomia do dono da casa, que sorridente de gosto, quase de ansiedade, lhe rogava satisfizesse sem peias a sua curiosidade, que entrasse mesmo, para melhor apreciar cada pormenor, e deles dizer de sua justiça. O Presidente velou o melhor que conseguiu uma agradecida recusa, mas tentou ainda assim vender-lhe uma porta, ou pelo menos a ideia de porta.

− Uma porta?, espantou-se o outro. Homessa, e para que quereria eu uma porta? Não é que me desse realmente muito trabalho ter uma porta, teria apenas de me lembrar de a fechar quando estivesse dentro e quando saísse, de a abrir quando quisesse passar, e de trazer comigo a chave, para não ficar na rua. Mas o que teria eu a ganhar com uma porta?

− O que teria a ganhar? Bem, suponho que ganharia privacidade, e também segurança. O tipo de coisas que as pessoas pretendem, sabe, quando compram uma porta. Veja a sua casa, por exemplo: está sentado à mesa a jantar, sente-se aborrecido e desabafa com a sua família; passa um desconhecido e vê o que o senhor janta, ouve a sua queixa, inteira-se da sua vida. Isso é coisa que lhe pareça bem?

− Honestamente não lhe sei dizer se me parece bem ou mal, acho que teria de esperar até que tal coisa realmente acontecesse, mas desconfio que ficaria à espera até às calendas gregas. O que de facto se passa aqui, a cada dia e todos os dias, é que ninguém liga às portas abertas, nem está realmente interessado em atravessá-las, ou sequer espreitar lá para dentro. As pessoas passam por casas abertas e olham em frente, encontram tudo à vista mas não querem saber. Suspeito mesmo que se alguém se desse ao trabalho de colocar o recheio da sua casa na via pública, toda a gente iria apenas passar como se a rua estivesse vazia. Ninguém se interessa, essa é que é a verdade, e não se precisam portas se não há quem as queira atravessar.

O Presidente agradeceu e partiu para fora desta história, sentindo-se um pouco mais sábio e bastante mais velho. A fábrica permaneceu encerrada, e a falência veio eventualmente a concretizar-se. Um curto parágrafo num jornal referiu ter a empresa encerrado as suas portas, o que não deixa de constituir uma imprecisão. A própria empresa havia já em tempos reconhecido a inutilidade das portas, tendo por decisão superior prescindido inteiramente das mesmas. A fábrica lá ficou escancarada, retendo no seu interior maquinaria e segredos tecnológicos e muitas outras coisas de inegável interesse, mas ninguém se deu ao trabalho de ir lá ver o que estava à vista de todos.

18/11/2009

SORRY, AMIGOS...

Desculpem, mas o tempo não nos larga, e a mim não me dá para nada. Fica um abraço, um veneno desfasado de qualquer tema, servo apenas do nosso lema: conto contigo, conto com todos:

DURBAN POISON

A impotência de dizer
surpreende-nos na inquietação
do dia a dia,

e por isso não há tempo a perder.

Se os homens se rebolam frenéticos
na confusão das esquinas,
a vida acontece com certeza
longe das conversas de café,

e por isso não há tempo a perder.

Se as palavras se enrendam indefesas
na teia das circunstâncias,
o melhor mesmo é caminhar
no silêncio das dúvidas,
ao abrigo das certezas dos outros.

Por isso, não há tempo a perder.

E se sentimos que apontam a dedo
o berro do bêbado que a plenos pulmões
rasga a noite na vaidade de ser livre,
o melhor mesmo é gritar como ele
e nunca trocar o sonho
e o veneno
e a vida
por um pedaço de carne bem comportado.

Porque o tempo passa
e não há tempo a perder.

Força aí. A 27 não vou poder estar.

17/11/2009

Nunca mais te quero ver

(Virou as costas e saíu)

E quando ela se fechou, um silêncio oco do tamanho de um caixão ecoou persistente como um diapasão vibrando em ondas subsónicas.
A mesma sensação residual entóptica de quando olhamos para o sol e em seguida fechamos os olhos, só que agora aplicada ao som ou à ausência dele. Ainda assim densa e intragável revoluteando, marcando uma presença incontornável, numa dor permanente.

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( - Nunca mais te quero ver)

Desenroscou o frasco que fez aparecer do fundo da mala e derramou sobre os seus próprios olhos.
Como num ritual acabado sentiu-se que tudo tinha sido dito.
Nem um ai, nem uma explicação, como um absurdo plenamente assumido apenas: nada mais.
Virou as costas e saíu.

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( - Espera )

- Não insistas, porque quando eu disser que não mais te quero ver, assim acontecerá.
- Não saias por essa porta, preciso de ti.
A chantagem emocional a crescer, daninha, na máxima força, como um vulcão prestes a rebentar.
- Nada mais temos a dizer um ao outo.
- Ainda não. Há muito por discutir. O que eu fiz pode ser reparado...
- Nunca mais te quero ver.

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( E agora uma mão no trinco da porta sublinhava uma iminente fuga)

- Uma vez que o dizes, reparo que só esta porta me separa deste momento sufocante e do nojo que é a tua presença.
- Tenho maneira de te explicar o que aconteceu.
- Nada há a explicar quando a evidência se derrama com tanta precisão.
- Espera...

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A porta contemplara tudo, como uma barreira de gelo, entre um presente calcinado e um futuro evaporado.
O que acontecera era por demais incompreensível, até para quem assistia.
- És horrendo...
- O que fiz não tem perdão, é certo...

E agora uma mão no trinco da porta sublinhava uma iminente fuga.

08/11/2009

Porta

Lassa

trago à porta

abandonada

a personalidade.

Desobrigada, embora o adeus estivesse há muito exonerado,

desencaixilho, com a antecedência de uma parteira que nunca pariu,

o enferrujado ferrolho desse prodígio-instante.

Mergulho o rosto imóvel nessa fresta

e ao respirar no intervalo dessa inauguração, antes de envelhecer,

desenho um outro começo, sem metáforas ou topografias,

uma aurora no rasgão do sem tempo ou memória.

Comprazo-me no frio desse orifício,

demoro-me

alongo o calendário da despedida à medida cega em que embalo a hidropisia,

acrescento os meridianos da sentença prescrita,

e logo a seguir, nessa homilia incontaminada da viagem

sobreponho as feridas do nascimento sem remendos

e, ao corrigir os delírios da confusão mental num só golpe de dança,

lembra-me o corpo

com pressão e gravidade

que, à revelia, ganhou uma senha mensal

para essa mesma ombreira triunfal.

Digo-lhe, não sem alguma irascibilidade,

e sem rosto (que estava ocupado em ser livre, ainda que preso nesse férreo hiato)

que para expiar a identidade,

é mister abdicar do esqueleto, sepultar a carne e atirar fora a densidade.

Pensara (ainda de cabeça atravessada na travessia): agora sim principio o anonimato!

Insatisfeito com a recusa, esgrime o corpo um arremesso contra parte de si

sem acordes lúgubres

seguiu as vozes que de fora gritavam que para ser montanha intacta

importa mais jugular o ardil, o embuço nessa incólume passagem.

Testemunha objectiva de fora de mim,

afastara-me em anúncio vagaroso,

e, do lado direito do só-corpo-que-se-queria-eterizar,

mirava o metálico desejo daquele se anular.

Do lado esquerdo da só-cabeça-sem-corpo-que-corpo-não-te-avisto,

esboçara-se, ainda que com algum esforço, um tácito pacto de renúncia arredada

e aquela em vão se lançou para essa outra morada

onde presa ainda não se emancipara.

De frente, a personalidade desprotegida,

sem medo da queda ou da salvação,

esquivou-se, sem desculpas ou demoras,

por esse atalho espontâneo da perpétua perdição.

Decidi, desde então, receber por inteiro todo o corpo,

procrastinar a mente e abrir o embude dessa porta-coração.

25/10/2009

Jantar do blog

Caros,

Muito se tem falado acerca de um novo jantar do blog, e é já tempo de passar da fala à acção. O tempo urge, estando já à porta a estação festiva, que de uso não consente disponibilidade suficiente para estes extras. Assim sendo, proponho que se estabeleça já uma data. Gostaria de ter apresentado a proposta sob a forma de uma sondagem, mas as variáveis são muitas, e nem o fim de semana de 49 horas me consentiu tempo bastante para escrever o código necessário. Proponho assim que cada um se pronuncie, na caixa de comentários deste post, sobre as seguintes datas: 13 de Novembro, 20 de Novembro, 27 de Novembro, 4 de Dezembro. Todas as datas são sextas-feiras. Excluí o 6 de Novembro por me ser pessoalmente impossível, mas será obviamente difícil chegar a uma data que seja aceitável para todos. Se 6 de Novembro for a melhor data para os restantes, então, by all means, seja essa a escolha.

Clarificando, o que espero disto são comentários na seguinte forma: “não posso em A, estou disponível em B, C e D. Prefiro C, e entre B e D, é melhor B”. Julgo que estão a ver a ideia.

Fico a aguardar as vossas mais que prezadas respostas.

21/10/2009

O penhasco

O PENHASCO

Ao volante, de mãos inflexíveis, o homem conduzia a carrinha com os olhos fixos no horizonte dividido. O som estafante do motor ressoava-lhe no cérebro enrijecido. Durante a viagem, lembrou-se de um filme francês, do silêncio, das pausas, do tempo das intermitências, e respirou fundo, entre os solavancos inebriados do motor.

Em frente, o penhasco elevava-se na linha do horizonte e pintava a negro aquele pedaço de céu adormecido na claridade do azul. Enquanto conduzia, o homem vislumbrava um rasto de névoa dos ventos de sudoeste, entre uma vastidão de areia, entrecortada pela linha da estrada. Os pensamentos transportavam-no a casa e à magia das filhoses, do crepitar da lareira, às saudações enrubescidas e à presença animada das crianças. O penhasco, continuava ali, negro, cortando a linha crepuscular. A certa altura, pareceu-lhe que estava próximo da fronteira e acelerou mais um pouco. A velocidade fê-lo sentir-se voar e, por momentos, fechou os olhos e sofreu a dureza do vento na pele. Aqueles segundos de olhos fechados pareceram-lhe uma eternidade… Ao som de Money for nothing, voltou à realidade e atendeu o telefone. Lá fora, um escorpião subia pela janela do pendura. Uma voz de mulher lembrou-lhe da ceia e da reserva de tinto que todos os anos o patrão lhe oferecia. Foi então que o homem reparou no escorpião e fechou a janela. O escorpião nem se moveu. Esticou-se o mais que pode e, com a gravata de que se havia libertado no início da viagem, bateu freneticamente no vidro, tentando espantar o lacrau que se movia lentamente. Desesperado, acelerou e o bicho encolheu-se e parecia ainda mais agarrado à janela. Depois de uma longa recta de horas, passou uma curva e, inesperadamente, a escuridão abateu-se sobre a viatura. A surpresa brusca da alteração de luz atordoou-o e sentiu o corpo soltar-se. O carro capotou e o homem foi projectado para cima de uma duna, a 9 metros da carrinha. Passaram segundos, minutos... e o vento evolara-se no enigma da viagem. Um lacrau retomava elanguescido a direcção da viatura. Uma voz de mulher, em pânico, fazia-se ouvir na histeria do telemóvel ensanguentado.

Em redor, o silêncio cortante do penedo deixou-se envolver lentamente por uma miríade de estrelas. Por detrás do penedo, a cidade acendera as luzes e abria as portas das igrejas aos cânticos de Natal.

O homem, atordoado, abriu os olhos e, lentamente, levantou-se e caminhou na direcção do penedo.

19/10/2009

0º 55’ 10’’N 29º20' 33''W

Hoje sei que foi duzentos metros a sudoeste que me encontrei com o penedo.
No meio da neblina (neblina rasando a água) náufrago, cinquenta anos de idade, pés em bolhas, demasiado tempo de imersão, sentir um golpe na coxa como um rasgão, a incerteza a deixar-nos em pânico. Cheguei a pensar em esqualos, esses bichos (selachimorpha) que aparecem em águas quentes quando e onde menos se espera. Nada disso, pelo menos na hora, encontro adiado.
Quando nos encontramos a boiar há pelo menos um dia e uma noite, a esperança por um fio, deverá parecer um sonho, ainda que sangrento sonho, encontrar zona rochosa onde encalhar.
O mistério do esbranquiçado nevoeiro a atrapalhar. Sentado em cima de uma rocha negra sangrando copiosamente da perna, algures no centro de nenhures no meio de névoas densas onde raio apareceu o penhasco? Do fundo do mar? Sim, como todas as ilhas. Primeiro uma agulha erguendo-se das profundezas ao longo de dois, três quilómetros, para o raio de um náufrago ali ir bater arrastado à deriva por uma corrente qualquer a partir do seu azarado afundanço fruto de uma inesperada tempestade tropical desencadeada dois dias antes.
O silêncio quebrado pelos ruídos são os das pequenas ondas num splash splash peganhento e constante, os gritos de algumas andorinhas-do-mar ou cagarras esforçando-se por lutar por um lugar no penhasco.
Lembro-me entretanto do conto “A toca” do escritor Franz Kafka que tão bem retrata os medos e o seu processo nascente embora a terra mole escavada pelo animal não dê para analogia com este mar assente em águas mornas.
E que poderei contar em cima de um penhasco?
Contar que me encontrem.
Contar os dias.
Contar o guano dos pássaros por metro quadrado? Difícil. Nem à pazada, mas isso seria um contar que cheira mal.
Posso contar com uma insolação quando o nevoeiro passar, com frio durante uma noite chuvosa e com impaciência durante o princípio do longo tempo que prevejo aqui ficar.
Um penhasco, apesar de terra firme, não deixa de ser uma prisão desconfortável com água a toda a volta e, como devem imaginar, não se vê passar os comboios nem ao longe.
Não será Alcatraz, mas a pena prevê-se mais dura. A expectativa resume-se: apanhaste perpétua, se fazes favor sobrevive, aguenta até ao fim.
Encontrar a zona de sombra do penhasco, subir para recolher a água da chuva, lutar com as aves nidificantes, roubar-lhes os ovos, espreitar pelo meio do nevoeiro tentando vislumbrar horizontes, procurar um Sexta-feira qualquer sabendo que não virá e mesmo inventá-lo na sua definitiva ausência para enganar o tempo. Envolver os peixes para ter algum- parco- alimento. Nadar para manter a forma. Imaginar o testamento que gostaria de ter deixado escrito. Esperar. Não desesperar.

05/10/2009

Parado em queda livre.

No fim da estrada ficava o penhasco. O homem ainda não sabia disso, e percorria sem preocupações a estrada, essa estrada que terminava num penhasco que não existia, tal como nenhum penhasco existe.

Dá jeito por vezes falar de penhascos, ou até escrever qualquer coisa sobre eles, mas isso não os faz existir. Nenhum penhasco existe, como não existe o frio ou a escuridão. O frio é só a ausência de calor, a escuridão não passa da ausência de luz, e um penhasco é apenas a ausência de algo a que nos possamos agarrar, de um solo onde possamos assentar a nossa própria existência. Podemos verificar se a quantidade de calor é excessiva ou insuficiente, discutir se a luz é escassa ou se é demais, e constatar se estamos bem seguros ou em desequilíbrio. Mas o vazio não se contabiliza, e sobre o vácuo nada há a dizer.

O homem chegou ao fim da estrada e caiu no penhasco. Melhor dizendo, caiu nessa não existência onde nada havia, fosse luz ou calor ou um mundo que o pudesse segurar. A queda foi longa e vazia, e também ele foi deixando de existir.

Não soube se chegou a tocar o fundo, nem sequer se haveria esse fundo, ou em que estado ele próprio lá chegaria. O grande nada que é o penhasco continuou a existir, vazio como sempre. O nada não ocupa espaço, e ele também já não.

30/09/2009

Uma poética, quase

Penhasco.
Diz um dicionário, um qualquer tirado à sorte, que o rigor para o caso pouco importa, tratar-se de um grande rochedo escarpado.
E que tem sinónimos como fraga, penedo, penha, rocha e, como atrás se disse, rochedo.
E que, para quem tenha falta de mestria, este vocábulo pode rimar pelo menos com carrasco, chavasco, chiasco, churrasco, damasco, filharasco, frasco, gimnoasco, pardavasco, pinasco, ravasco, rebiasco, tabasco, vasco e verbasco.
E mais, que tem por anagrama penachos.
O que a gente aprende com o cheiro a terra e a aridez da pedra! O que a gente deslinda com o magnetismo da palavra!
Penhasco.
Assim como um morro, quando em criança nos aventurávamos na vertigem do voo, que pouco mais era que uma pequena pirueta calculada a olho.
Em baixo, o chão era quase sempre mole e o corpo quase sempre duro – ou seria o contrário, o corpo quase sempre mimoso e o chão quase sempre calejado?
Do penhasco da infância já pouco subsiste. Vergam-se agora as asas e o horizonte se tolhe, do penhasco aquém.
Além, porém, como no haikai de Anibal Beça, anuncia-se a luz, como quem renasce:
Brilha mais ereto
o penhasco sob o sol:
ah o verão fértil.

27/09/2009

Fuga em do maior

Fileiras de instrumentos cabisbaixos e companheiros. É a banda que se me passa aqui no dentro. Deploram o do desafinado de mins. Aqui no dentro, perseguem-me acordes prestes a aniquilar os talvezes ou os nadas. Procuro entender todos os andamentos em cadência dos cantos bentos, sei que se servem desses argumentos para que lhes conceda asilo, por isso, resta-me a maestria de os empurrar ao de leve para dentro do meu dentro. As notas atroam a notas aparentemente rítmicas de magia, como qualquer truque em transmutação. Não tenho a certeza disto, mas são tão insistentes... que, o meu dentro deixa de o ser, enquanto eu, me tento ajustar, dentro do meu fora.

23/09/2009

Fuga fugaz

Contar uma fuga levou-o, pobre dele, a dirimir sobre o ponto de partida, não propriamente da ou para a fuga, mas para a escrita dela, que tanto podia ser para uma determinada fuga, em concreto, ou para uma qualquer fuga.
Preferiu esta última, incerta, imprecisa, e por isso ilimitada e para ele mais mansa e livre, como devem ser todas as fugas.
Um destes dias, de pena em punho, decidido como quem entra na liça, arriscou uma aventura, e escreveu de olhos cerrados:

Fica comigo, deixa que as palavras te seduzam, e encostados um ao outro admiremos o rio, de mãos desenlaçadas, como na ode do poeta. E descansados de estarmos, que o tempo nos invada e nos enleve. Em breve, verás, seremos longe, como quem se abandona sem querer ou sem saber que o quer. Partamos!

Depois, triste e desenganado, dobrou em quatro o branco que lhe sobrou da vigília, e adormeceu.

14/09/2009

Fuga para a Felicidade

Estava tudo escuro, sentia-me completamente aprisionada, sufocada. A maior das prisões: quando não temos liberdade de olhar, de falar, sequer de pensar. Um dia percebi que poderia ser diferente. Podia fugir, ser livre. Bastava querer.

Enchi-me de coragem, rebentei com as correntes e parti os agrilhões. Corri para a liberdade.

Jurei que não me apanhavam noutra. Dali para o futuro seria totalmente livre, não queria quaisquer amarras. Não é possível ser totalmente livre ao lado de outra pessoa. Mal nos descuidamos, lá vêm as pequenas mentiras para não magoar, não ferir a susceptibilidade de quem está ao nosso lado. Às tantas, as mentiras vão sendo cada vez maiores, só para manter a imagem que a outra pessoa criou. Mas já não somos nós; somos a personagem que mantivemos à custa de pequenas grandes mentiras.

- Quem era ao telefone?

- Era a Ana.

- Mas essa não era aquela que se andava a fazer a ti?! Porque é que lhe atendeste o telefone? Anda outra vez a dar em cima! E tu dás trela.

- Ela só queria saber se lhe posso emprestar um livro, que sabe que eu tenho, para a pesquisa dela para a tese de mestrado.

- Qual livro? Não interessa, era uma desculpa e tu não vês (ou não queres ver). A faculdade não tem biblioteca? É só para falar contigo.

Noutra ocasião:

- Quem era ao telefone?

- Era telemarketing.

Não, não queria isso para mim. Estava certa que nunca poderia ser completamente sincera com alguém com quem partilhasse uma vida, por isso era preferível não partilhar. Ia simplesmente gozar a minha liberdade.

Parti para a vida com a firme determinação de simplesmente a gozar, sem que nada atrapalhasse.

Encontrei uma companheira de fuga. Também ela saída de uma outra caverna. Demos as mãos e decidimos prosseguir lado a lado, dando pistas uma à outra de qual a melhor maneira de gozar a vida em liberdade.

- Está sempre bem contigo própria e irradia essa confiança (elas adoram isso).

De pista em pista, fomos descobrindo que não aguentávamos as mesmas correntes, que tínhamos os mesmos defeitos, que queríamos a mesma liberdade.

Lado a lado, percebemos que ansiávamos o mesmo beijo, a mesma união de corpos, uma comunhão de almas antigas.

Demos novamente as mãos, abraçámos os corações e partimos numa fuga para a felicidade.

13/09/2009

Medo, eu?!

Medo, eu?!

A hora de me associar à equipa, tardava.
O convite fora-me feito havia muito, insistido, até, pelo Armindo S., amigo e sabedor que é do meu aprazimento por estas coisas da escrita.
O problema é que a minha inclinação – que em questão de palavras também há inclinações (para além das vocações, das inspirações, das declinações e de outras terminações) – é mais para os versos e para os desvarios cronísticos, nada de grande prosa, como os contos (por pequenos que sejam), as novelas ou os romances. Por isso, confesso, o adiamento em dar o passo inaugural.
Confesso também que, recebido o convite, não entendi como aderir, isto é, não ousei vingar a minha ignorância na destreza das novas tecnologias, que isto de entrar num blogue sem ser para o comentar não está assim ao alcance de qualquer um.
Confesso, ainda, que o medo por tudo isto era desmesuradamente maior. Não apenas fazer alguma imbecilidade e encravar o sistema logo à primeira, com as gravosas consequências para o meu indispensável portátil, como ficar preso nas duas ou três linhas iniciais e dali não sair.
Arrastei, portanto, o dito passo, até que, apanhado em casa do meu convidador, fui por ele quase-à-força industriado nesta arte transitiva de postar. Estava cumprido o primitivo feito.
Agora, pois então, havia que partir para o tema da semana, ou para qualquer outro que as regulares sugestões da semana sempre impelem para as boxes.
Hoje, transbordante de coragem, lancei-me ao Medo, só para que o meu amigo Armindo S. não pense que me deixo vencer facilmente. E a prova aqui está, como se lê, neste (des)temido texto, com o devido (des)conto!

12/09/2009

Agora… à noite…

Gostava de ter mais tempo para escrever e corresponder. É-me difícil. O tempo enrola-me de tal modo as histórias que só consigo escrever quando há vento lá fora... Depois, não consigo inventar. Só consigo enredar o que a vida me vai oferecendo, depois de muito cirandar. E depois, também tenho medo de contar.
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Pai, se tu soubesses das saudades que tenho de ti, quando me lembro dos livros que devorava, enquanto não vinhas! Sentada numa cadeira desconfortável, ao calor da braseira, na companhia da mãe, teimava em prolongar o serão, numa resistência ao sono e ao medo e esperava que regressasses a casa… O mundo, adormecido por entre nuvens de fantasmas e túneis de dúvidas, parecia ignorar a chiadeira medonha do vento que eu tentava serenar, concentrando-me nos sentidos das palavras e imaginando ilustrações de sonhos com que decorava as histórias.
A mãe, sentada na espera do dever, pendia entre pedaços de costura ao colo, enquanto a cinza crescia no lugar das brasas. E eu, numa insegura teimosia, continuava a ler, devorando páginas feitas de estórias inventadas à luz do candeeiro a petróleo. Um quadro que ainda hoje preservo na memória com a nitidez da luz que invade as casas e lança as sombras para trás das portas… um quadro ao qual gostaria de dar forma se tivesse guardado as cores com que decoraste o quintal onde tanto brinquei, enquanto trabalhavas para sustentar a família. Um quadro ao qual acrescentaria fantasias de lareira feitas de sapatinhos e, por cima, os presentes de Natal e a áurea prometida, até que o simples gesto de desembrulhar o tão desejado momento haveria de fazer cair por terra o sonho de uma longa maturação de secretos bichos-de-seda, num carrinho rosa com o bebé chorão que me estava destinado, de cor negra, que tanto me intrigou e me deixou a pensar. Talvez tenha sido esse o meu primeiro dia no mundo dos crescidos.

Lá fora, o rumor intermitente do vento suspendia de interrogação e medo o meu coração que insistia em continuar a ler, na aventura das histórias por contar. Em certos momentos sentia-me transir quase em pânico, mas esperava por ti à lareira e, no dia seguinte, o meu corpo renascia e o sol entrava pela soleira de todas as casas e inundava as frestas mais escusas.

- Pai, foste-te embora tão docemente, tão sem aviso, sem que me pudesse despedir de ti! As silvas apoderaram-se do quintal e já trepam pelo telhado. As árvores ainda resistem, algumas carregadas de fruto e, no fundo da velha arca, recordo um quinhão de nozes que mandaste guardar também para mim.

Agora, à noite, a escuridão estilhaçou as vidraças e empenou o caixilho das janelas, que já tombam de par em par. Uma ave negra entrou pela casa adentro e, com ar de habitante das trevas infernais, pousou nos meus umbrais. Tem os olhos fitos para dentro, com um ar de quem sussurra um sonho de Natal... e, quando lhe faço sinal para se ir, não se cansa de repetir “Nunca mais!”.

01/09/2009

Fugir, ou não fugir?

Isto não é um conto. Respeitando o tema pedido, trata-se apenas de algumas (breves) considerações sobre esse fugidio conceito, a Fuga.

Muito foi já dito e escrito sobre fugas. Há volumes de teorias em volta do tema – a chamada literatura de escape –, onde são escalpelizados até ao mais miúdo detalhe os meios e instrumentos, os estratagemas e truques, o momento mais propício e o mais favorável estado do tempo. Sem embargo de tão momentosos pormenores, um requisito há que avulta no topo da lista, talvez a única condição de facto imprescindível: para uma fuga bem sucedida, é necessário começar por estar preso.

Será um truísmo afirmar que ninguém foge de onde não está, mas não é de modo algum uma irrelevância. O convicto agrilhoado reconhece a inconveniência do seu estado, e a desirabilidade de o alterar para melhor. Numa palavra, fugir. Pois bem, tem o aprisionado cidadão ao seu dispor os convencionais meios para atingir esse objectivo: seja por via da colher escavadora ou do cesto destinado à lavandaria, acabará por se ver do lado de fora.

Tomemos agora, verbi gratia, o guarda que tem a seu cargo o convicto. Também ele está mal onde está, também ele reconhece o desejo e conveniência de mudar, mas ele está do lado de fora. Entra amiúde na prisão, é verdade, mas entra e sai quando quer. Os condenados pertencem à prisão, ele apenas a frequenta, e é por isso que não pode fugir, já foi dito que ninguém foge de onde não está. Os prisioneiros têm ainda outra possibilidade que a ele está vedada, que é a opção de não fugir.

Vi isso numa prisão, mole granítica erigida sobre um monte que eu contemplava de baixo, da liberdade da mesa de esplanada onde me esquecia em libações sem fito. Vi os prisioneiros e não me lembrei que estavam presos, ocorreu-me apenas que estavam lá dentro. Eu podia entrar e sair, eles pertenciam-se. E, ao contrário de mim, podiam fugir.

Desistir de tudo leva-nos a não pertencer a nada, e a rejeitar todas as prisões. Depois disso, não há fuga possível.

Tal como alguns funerais dispensam flores, também o presente texto dispensa comentários. Isto não quer de modo algum dizer que eu não aprecie comentários, ou não os deseje. Simplesmente, não me parece que seja um texto comentável, ou que alguém pudesse desejar comentar.

27/08/2009

Opus 25

A liberdade é um estado de espírito.
Dentro de uma caixa, o desejo de sair quando o mais difícil foi entrar.
Poder sair e não querer ou a sensação de estar preso.
Sentado num sofá, umas mãos postiças agarrando as barras de ferro de uma janela encaixada numa parede de contraplacado rebocado a estuque envelhecido numa patine de inscrições de prisioneiros desgastados. Ilusão perfeita - para quadro surrealista, falta o céu verde. Um alçapão no fundo do palco.
Fuga de Bach em ré maior e, nas costas, uma praia a perder de vista e um sol cansado.
Toneladas de areia como um deserto infindo.
Fugir de quê? De um mêdo? De uma limitação imposta?
O cárcere como libertação ou a prisão em espaço amplo escandalosamente aberto.
Uma fuga para a frente, um preenchimento sempre, sempre descontente.
Um passo seguindo outro e outro rodeando uma coluna. Um passo seguindo outro deixando para trás um desconforto. Poderia ter começado assim:
.................................................................................................................................
Um dia, ele veio ter comigo e contou-me que tinha um túnel quase acabado.
O buraco foi feito e o ludíbrio dos guardas, perfeito.
Na noite da fuga, á saída, no meio de um canavial, confessou-me:
- Com um pouco de sorte chegaremos ao mar ou à estrada. E aí logo se verá.
Encontrando-me do lado de fora dos muros olhando para este quarto crescente, juro-te que não voltarei atrás.
- Ainda bem que assim falas, pois é agora nesta encruzilhada que terei de contar-te um segredo:
“Os cães, os helicópteros, todos os GPS do mundo se unirão para nos barrar a escapada. É uma luta da tua inteligência contra a dos outros. Os meios dão-lhes vantagem e até o tempo, se, inicialmente, por surpresa, joga a nosso favor, rapidamente como grande meretriz travestida se coloca do lado deles e se, só por um grande acaso de sorte acumulada, com a dose certa de desânimo, desgosto e desmotivação do lado perseguidor, essa grande puta voltar para o nosso lado, aí a vantagem chegará encorpada e crescida a clépsidra revelar-se-á aumentada a distância entre ti e o teu desconforto. Ouve bem, portanto, o que te vou dizer:
O meu bisavô ao erguer a sua casa em Cinfães, no início do século passado, guardou um tesouro no interior da estrutura. O seu único filho nunca quis derrubar as paredes do solar que tinha herdado. Por sua vez, o meu pai ouviu este mesmo segredo à hora da morte do meu avô e tratou de o passar, muito antes de se finar, a mim e ao meu irmão que foi morto, por uma mina anti-carro, na guerra do ultramar. Por respeito a seu pai e seu avô fez de igual maneira e o solar continuou preservado.
Eu nunca precisei até agora e os deuses proveram-me com talento suficiente para passar sem ter que levantar uma pedra.
Por isso, e por paga da confiança que mereci nesta fuga que partilhaste sem querer nada em troca, vou descrever-te qual a rua, número da porta e qual o muro a derrubar.
Separamo-nos aqui, mas aquele de nós que tiver a sorte de chegar a Cinfães deverá usar o passaporte para a liberdade. Meio passaporte em ouro chegará para dar duas voltas à Terra e se eu chegar primeiro encontrarás a tua parte neste local...
E eu poderia ter ouvido o resto da conversa passada no meio de um canavial à beira do rio, onde tinha ido pescar nessa noite, à luz de uma lua pouco crescida, não fora o ladrar dos cães ao longe.

Medo de escrever

- Hoje acordei com um medo dos diabos. Tinha ouvido e ressoava na memória:
“Para mim deixou de haver homens e mulheres
há simplesmente pessoas.”
Sonhei que me tinha tornado homossexual.
- E isso pega-se? Fica já aí e não te movas.
- Não brinques.
- Conta lá essa experiência terrífica.
- Não a senti como uma experiência terrífica, só como um sonho estranho.
- Conta lá esse pesadelo esquisito.
- Reconheço agora que como toda a virgindade é um processo de passagem.
- Tal como a morte.
- Sim. Tal como a morte.
- Ao menos deu para assustar? E diz lá eras, sempre foste ou passaste a ser?
- Isso pouco importaria, não fora a sensação...
- Que sensação era essa?
- Tudo começou com o telefonema do meu melhor amigo. Alguém que sempre me foi próximo cuja empatia nunca experimentou qualquer desavença, nem desentendimento, nem falta de confiança.
- O sentimento inicial foi de espanto?
- Como quando uma mulher vai parir a primeira vez.
- Como quando se cega sem ser à nascença
- Medo de perder a vida, essa verdadeira porta do desconhecido.
- Medo do lobo mau, sem dúvida.
- Medo de ser naufrago longe da costa.
- Medo de um túnel a estreitar cada vez mais
- Espeleologia sem lanterna.
- Mergulho nocturno em floresta de algas.
- Tenho medo de não conseguir.
- Tenho medo do desconhecido.
- Medo de répteis e eles de mim certamente.
- Tenho medo do escuro
- Medo de ser assaltado
- Medo de alturas
- Gelo fino.
- Selva.
- Medo de ser soterrado
- Sede extrema
- Medo de dobrar uma esquina . A esquina do centro de um grande labirinto.
- Medo de atravessar feno alto na savana
- Medo de atravessar um rio.
- De colocar os pés num pântano.
- Escolha o seu medo não pagará mais por isso.
- Medo de me perder.
- Medo de não dizer a verdade.
- Medo de te perder.
- Medo de me confessar.
- Medo de não poder.
- Tenho medo de ficar doente.
- E medo de envelhecer...
- Medo de transformar um conto noutra coisa sem nome.

17/08/2009

O Medo do Esquecimento

O sol pousava já sobre a praia deserta. Não que fosse particularmente frequentada por multidões, durante o dia, mas àquela hora estava sem vivalma.
Restava apenas eu, no cimo da duna, contempla-la. Lembrava outras horas passadas naquela praia e nas redondezas. Haviam sido umas férias maravilhosas, que estavam guardadas de forma indelével na sua memória. Seria assim? Seriam as memórias inesquecíveis? Ainda que se tratem de momentos muito marcantes, não se correrá o risco de essas imagens nos fugirem?
Sim, esse é um dos meus grandes medos. O medo de me esquecer dos momentos mais preciosos que vivi. São os meus pequenos tesouros, aquilo que tenho de mais único na vida.
Por essa razão revejo, revivo intensamente os momentos que vivi e que não quero, de forma alguma, olvidar.
Alguns vêem-no como uma forma de saudosismo; não é. Não pretendo voltar a viver o que vivi, nunca teria a mesma magia. Só não quero perder o que vivi.
Vejo a minha vida como uma colecção de cromos que vou juntando meticulosamente. Cada local, cada momento, cada pessoa, cada emoção especial, constitui um cromo que vou colando na minha caderneta.
Se, por qualquer razão a perder, perco o meu tesouro, a construção da minha identidade - que pânico!
O sol já mergulhou completamente naquele oceano. Levanto-me feliz por ter revivido aqueles momentos, lutando para que se tornem inesquecíveis para mim...

05/08/2009

Medo de A. (a Z)

«tudo se despedaçou.

O sonho, e o amor que é sempre tão breve.

O mundo dorme sob o vento. Só eu continuo acordado, em vigília.

Se houvesse agora uma catástrofe eu daria por ela.

Levantar-me-ia daqui para encarar a morte,

dizer-lhe que são inutilidades o que arrasta consigo.

Estou gasto. Dei-me sempre mais do que podia

(…) sou um alfabeto e não se se terei tempo para me decifrar.»

Al Berto, O Medo.

Temos que, em primeiro lugar, habituar o olhar. Talvez o melhor seja fechá-lo. Lentamente. Parece que vemos melhor assim, quando olhamos para dentro, sem esforço ou pulcritude, sem o turvar. Vês melhor, também? Olha, de seguida, para o gesto que a pele desenha e a carne devora. Consegues ver? Vá lá, não me digas que tens medo…vá, insta! Desce agora o olhar, degrau a degrau, o que vês por cima? Escuridão? Não! Cai mais um pouco. E agora? Consegues ver melhor o despontar de cada veia, como se se tratasse de uma disposição ou vocação do espírito, inscritas de modo desinteressado na pele? Diz-me se não tens vontade de gizar um mapa, encontrar os pontos cardeais, traçar o norte e adivinhar a aurora de um novo ascendente? Ou então desenhar uma cartografia remota que alvitre todos os passos, não os teus, mas os passos singulares de toda a Humanidade? Ou ainda se não te assoma um desejo de criação, como se ao morderes com arrojo a veia, explodisse, sem pretensões de eixos, um mundo inverso deste, feito da mistura desse crime de sangue e saliva? Já está.

Dá um salto, então. Como é que se salta de olhos fechados, perguntas?!- que parvoíce! como se se tivesse a parir, claro! Com consciência de todas as dores e contracções, como se tudo estivesse despedaçado e o mundo, lá fora, dormisse inane. É o único salto que conheço…Vá lá, não me digas que tens medo? Já está? Agora que conheces o ritmo quente e acelerado da pele, podes percorrer o novo corpo que te habita. Descoincidente. Com um volume e massa distintos certo, embora convirjam em absoluto. Começa. Mergulha. Sem medo. Mais rápido. Mas silenciosamente para que as muitas vidas que aí medram não ancorem a alma. Sim, sei-o. Desce por esse trampolim. Por onde?

Do lado direito desse músculo-motor. Sim, é necessário. Trata-se de encontrar a direcção certa, mesmo com desalinhos. Enfrentá-la como se se contemplasse, de frente, sem pestanejar, a morte e lhe disséssemos que nada disto importa, que são inutilidades o que a alicia. Entendes? Sem medo. Retira a mente ao corpo. Não mintas. Abandona essa península inconsolável. Despovoa-te da miríade de pensamentos que te habitam e principia a jornada. Precipita-te sobre ti próprio. Sofres de vertigens? Perfeito. Mas não te percas na periferia dos sentidos, nada antecipes. Desagua na paisagem árida do esqueleto. Não vês que todos os nossos ossos guardam uma estreita respiração, talvez o último fôlego desse corpo intangível ou resquícios de uma dívida de voo incumprido? Todos abrigam uma paisagem em ruínas que cinzela o rosto com rugas e catedrais, filhos pródigos de um continente que atámos à velocidade devoradora do tempo. Sim, aquiesço. Não há tempo para decifrações, o olhar habitua-se à gravidade etérea dos ossos e não sabemos quantos anos passaram desde o seu cerrar. Tudo é sempre tão breve.

Terminámos. No momento preciso da (o)pressão, ao sentires esse talhe metalino a bulir monotonamente a matéria, alaga os pulmões com todo o ar, como se te tivesses dado ao mundo por inteiro e estivesses gasto. Abraça a forma metálica e fria que espelha a tua ossatura, sustém a respiração por minutos, como se guardasses num baú todos os livros que leste e os quisesses incendiar para que ninguém os violasse, entendes? Respira apenas depois do STOP. Já está. Abre os olhos. Vou acender a luz. Daqui a uma semana podes vir levantar a assombrografia.

02/08/2009

Estilhaços de VERtigo

VERtigo.

De todas as ruas, aquela era tanto mais velada, quanto cobiçada. O fascínio que a invadia era tanto que o pulsar de cada pegada ou vestígio, olhar ou vislumbre, provocava na restante cidade um estremecimento vestibular, prestidigitador, como se aí se re-velasse a desértica clareira do Ser, como se, de modo imperceptível, fossemos engolidos pelas mandíbulas ferozes de um qualquer predador.

Fruto dessa fome, a rua permanecia, porém, imaculada, pura e ímpar na sua elevada solidão. Magnetizava, por um lado, as atenções dos itinerantes e, por outro, expelia, num movimento de gato a regurgitar bolas de pêlo, os inglórios transeuntes que a tentavam dominar. Até à data, não houvera ninguém que resistisse aos seus labirínticos encantos, nem que escapasse ao seu genuíno sortilégio.

A sua enigmática robustez conduziu a alguns ditos, estes tornaram-se contos que, amiúde, se converteram em mitos. Entre estes conta-se que numa incauta noite, uma mag(n)a mulher lhe houvera, devotamente, consagrado o leite, que escorria vigorosamente do seu desnudo peito, destinado ao amamento do seu único filho. Desfecho dessa entrega total, transformara-se a mulher num caudal espesso e virginal, porção da rua onde todas as aparições, nascenças, origens e inícios aconteciam. Outras vezes, rememora-se a oferenda de uma lágrima, única, vertida por um homem que, ao conceder-lhe a sua musicalidade, renunciou o fragmento mais cristalino da sua temporal intimidade: a eternidade.

VERtigo não fora ainda habitada, contrariando as copiosas visitas que geograficamente a ampliavam. Perguntavam, não poucas vezes incrédulos, como seria possível uma rua animar-se: oscilar sempre que a perscrutavam; tamborilar, embora não ao som de qualquer ritmo ou andar, os gestos que a exaltavam; pulular entre os olores a sândalo e cânfora que, particularmente, a apraziam e até espirrar, já que sofria de hipersensibilidade ao pólen, acarinos e, sobretudo, a sentidos de posse e jugo. Uma das muitas peculiaridades que a perfilava, talvez para combater essa inusitada alergia, era o despretencioso facto de não haver nenhuma esquina que não fosse janela, precedida fisicamente de uma tontura.

Durante o dia, o excesso de movimentação despertava-lhe uma legítima indolência, sobretudo, nos parapeitos do lado esquerdo da alma que, abscôndita e lânguida, espreitava o horizonte com impassibilidade, já que as persianas permaneciam inacessíveis à luz do dia. Esse torpor diurno revestia-lhe as fímbrias, como se se tratasse de um mecanismo de defesa contra todos aqueles olhares insuspeitos e indiligentes que a confundiam com apenas mais um jornadeio turístico, embora apenas de rua se tratasse a sua visível aparência. Porém, pela noite, galgava os céus de andaime em andaime, encarrapitava-se no canto superior direito da estrela do Norte, abria de par em par os olhos atelhados, arranhava, com os seus braços alcatroados, as raízes mais fundas das milenares árvores, farejava, de nariz em fumeiro alteado, todos os presságios e conjecturas e, quase doutrinalmente, (pois era de certo modo empertigada e senhora do seu nariz), giranboleava toda a cidade de coração vidrado, entendam-se desafogadas janelas!

Deste ritual profético, praticado desde os seus tretaruavós, em busca de um estilhaço hereditário que há muito se houvera sumido, emergiu a sua redenção: encontrara, furtivo, junto ao caudal em forma de lágrima que a cingia, um fragmento de mulher, melhor dito, o seu umbigo! A demanda ancestral dessa artéria da cidade havia cessado por fim e com ela todos os despenhamentos e precipícios auto-infligidos se haviam dissipado.

Afinal, qual seria a pretensão dessa estranha união: a de um umbigo a querer ser rua, a da rua a querer ser mulher ou a de uma mulher cujo umbigo era a rua? De entre todos estes estilhaços não são os que vertiginosamente compomos que contam, mas os que vertiginosamente Somos!