31/01/2009

A mudança

Há um fantasma em minha casa. De longa data o sei, e devo dizer, contemplando com retrospectivo embaraço a minha ingenuidade de antanho, que ele nunca até hoje me assustou, antes o encarei sempre com aquela bonomia eivada de uma reverência ligeira que é uso votar aos tesouros com que a família ao longo das décadas foi forrando os seus armários, ainda que sejam esqueletos os tais tesouros. Isso pouco interessa ao caso em apreço, uma concubina de alta estirpe vale tanto ou mais que um brasão, e um fantasma de família a todos esses sobreleva, maxime no caso de se apresentar competentemente provido dos atavios usuais, as correntes e a espada e o traje demodé, e se for possível munir a avantesma de um quilt e gaita de foles, temos a perfeição. Não, nunca tive medo do meu fantasma.

Certo é que faltam à minha alma penada algumas condições que via de regra se tomam por basilares, como seja a de assombrarem uma vetusta e delapidada mansão, entre cujas paredes terão os seus materiais avatares sofrido as agruras deste mundo, que vez por outra pede meças ao mais elaborado dos infernos. A ideia de eu ter em casa um fantasma era regularmente reduzida à mais ínfima expressão do ridículo pelos amigos da casa, sob razão de me ter eu mudado para cá há coisa de poucos anos, na mesma altura em que foi dada por finda a construção da casa, completa como nós a planeamos, fazendo este “nós” as vezes da unidade familiar, a esposa e os filhos e mais parentes, e até eu cheguei a dizer uma ou outra palavra, não constando embora dos autos que tenha alcançado ser ouvida. Para encurtar de razões, e citando aqui um autor não publicado (que, tal como os espíritos, também os há), não há fantasmas numa casa nova.

Mas há um fantasma na minha casa, e pouco bastam os argumentos anteriormente aduzidos para me tirar desta convicção. A explicação, digo eu para quem me quer ouvir (costuma ser o frigorífico), a explicação está na mudança. Devíamos ter feito uma mudança selectiva, e eu recordo que cheguei a disser isso. Escolher o que queríamos levar, em vez de arrebanhar sofregamente tudo o que não queríamos deixar para trás. As mudanças são momentos de purificação e recomeço, em que se deve trazer do passado aquilo que realmente importa, e alijar o peso morto, tudo o que anda a reboque da nossa vida só por não saber fazer mais nada, e não termos nós a paciência de lho ensinar. Não foi assim essa mudança, do que resultou ficar a casa nova assombrada por um vetusto fantasma.

Mas, volto a repeti-lo, eu nunca tive medo dele. Os fantasmas, dizia eu com uma segurança digna de Voltaire, são apenas projecções de nós próprio, das nossas falhas e insuficiências enquanto pessoas racionais. O meu fantasma, racionalizava eu, mais não era que o espectro dos meus erros passados, dos ainda menos desculpáveis acertos do presente, dos meus traumas, das minhas lutas, de tudo, enfim, que alimentava o meu orgulho e a minha culpa. O meu fantasma nunca me poderia assustar com as suas carantonhas, pois que tinha a minha cara.

Agora estou assustado, é sem rebuço que o confesso. É banal o que me aconteceu, apenas o encontrei esta noite, completo com as suas correntes e esgares e a panóplia de efeitos fantasmagóricos. Preparei um sorriso condescendente, mas o sorriso morreu sob um olhar verde e baço, um olhar de cadáver resignado a ver através de olhos putrefactos, olhos que semelhavam um monte de algas escorrendo de um recife. A cara, repleta de imperdoáveis vícios, alagada de ternuras sem nome, escorria para mim como um bolo de aniversário sobre o qual alastrasse o fogo de velas não contidas, talvez por arder já no inferno o celebrado aniversariante. A cara era hedionda de se ver, e por uma razão suprema: não era a minha cara.

Não era a minha cara. O meu simpático fantasma era de facto uma coisa infernal, um demónio das trevas que mais não queria senão aprazar a minha alma às profundas de lava e carvões e oportunidades desperdiçadas. Tenho a vida hipotecada a um incubo, e com a agravante de se tratar da presente vida, aquela em que eu acredito. E custa-me contudo a crer que isto seja um efeito da mudança, estou mais em que a coisa me teria assombrado, fosse lá onde me encontrasse. Mas não me perdoo por o não ter exorcizado, na altura em que mudei.

Há um fantasma em minha casa. Devo confessar que, pela primeira vez na minha vida, estou bastante assustado.

28/01/2009

Boa Noite, Amor.

Boa tarde, minha senhora. E já de começo rogo escusa deste “senhora” assim tão formal, a sugerir uma rispidez de seca matrona onde bem vejo que não há senão a delicadeza própria de tenra donzela, mas manda o formalismo social que lhe dê este respeitoso “senhora”, ou então “menina”, o que seria decerto o mais correcto, mas cujo crescente desuso poderia talvez suscitar estranheza, e convocar leituras quiçá mais equivocas, e inteiramente distantes das minhas intenções. Seja como for, esclareço que não trago outra pretensão para além de lhe desejar a melhor das tardes, e pedir-lhe a honra e o prazer da sua companhia numa bebida que gostaria de partilhar consigo à sombra deste carvalho, a menos que de um ácer, olmo ou cipreste se trate, que eu em botânica entendo-me menos que nas questões do belo feminino, mas que em todo o caso ensombra esta esplanada que tão convenientemente se encontra à nossa beira, e onde em suma a convido a tomar assento.

Com tantas palavras, e tão bem rendilhadas como foram estas, manda o senso comum que se ponha a destinatária das mesmas de pé atrás, expressão ainda assim ambígua, pois que sugere estar chegado à frente o outro pé, consabido que é o facto de toda a gente ter dois, salvo no caso de ser coxa, o que também acontece. Nada disto de forma alguma releva no que à potencial cantiga do bandido diz respeito, pelo que seria caso verdadeiramente espantoso que Emília se dignasse aquiescer a convite formulado em tão suspeitosos termos. Emília ponderou brevemente o assunto antes de aceitar o convite, e se há ainda quem se consiga espantar com semelhantes lances, coisa que deveras receio, fica aqui o veemente conselho, dê-se pressa em mudar para outro mundo, o qual dizem por aí que existe, e que será até bem melhor que este. Esta história trata apenas daquele mundo onde nós vivemos, onde coisas destas diariamente acontecem, tão despudoradamente como se fossem possíveis, e onde existe uma esplanada em que Emília se sentou a uma mesa com um desconhecido, e com desenvolta timidez pediu um vodca com gelo.

Um tal começo preclui à partida quaisquer laivos de convencionalidade que acaso intentassem manifestar-se, o que conveio excelentemente àquelas duas almas, em quem tais manifestações se faziam usualmente distinguir pela ausência. Acabaram por gastar a tarde toda em palavras de ponderosa trivialidade, arrombando o místico lugar-comum com a violência de serem eles próprios, dotados das aspirações mais mesquinhas e das mais transcendentes, e ainda das mais usuais, aquelas em que a mesquinhez se oculta sob um véu de transcendência, a menos que seja justamente o contrário. Tudo debateram sem reserva, esmiuçaram o que é baixo e o que se eleva, o sagrado e o torpe, e por fim o que era apenas ele e o que era apenas ela, o que queriam de si mesmos, o que queriam da vida, o que poderiam querer um do outro.

Foi neste último ponto que esbarraram numa lastimável compatibilidade de gostos. Ele gostava de mulheres. Ela também. Não como uma definição de si própria, como também ele se não definia no simples acto de andar atrás de gajas, nada disso, que ele era muito mais que o marialvismo que casualmente os juntou nesta tarde anódina. Também ela era muito mais do que essa mera preferência, coisa de resto tão trivial como tudo o mais nesta história, só a um imbecil ocorreria definir alguém pelo tipo de outro alguém com quem lhe agrada corporizar a sua intimidade, como se não andássemos pela vida a fazer mais nada. Infelizmente, no entanto, as circunstâncias não permitem de forma alguma excluir a provável existência de imbecis. Não que isso lhes fizesse diferença, não nessa tarde em que o Verão se preparava para começar.

Acabaram por ficar nus, coisa que o clero e demais moralistas de serviço farão a gentileza de perdoar, sob argumento de nada de mais se ter passado, eles é que se passaram, os doidos, e deu-lhes na veneta ir nadar no lago, um lago que convenientemente surde nesta história porque, sejamos francos, é impossível negar qualquer coisa, ainda que seja um conveniente lago, a tão simpáticos tresloucados. Saíram com os sinais do amor todos trocados, que a água fria tende a provocar efeitos opostos no homem e na mulher, mas eles não eram nesse dia uma coisa nem outra, e pouco caso se fez de quem tinha o quê mais pequeno, nem os quê mais espetados. Apreciaram-se enquanto se vestiam, depois de se terem abraçado, tão nus como se usassem roupas. Separaram-se com um sorriso cúmplice, e um irónico aperto de mãos.

Enquanto se afastavam juntos, cada um para o seu lado, houve quem julgasse escutar um breve e abafado murmúrio, Boa noite, amor. Mas ninguém compreendeu bem o que a despedida significava, nem sequer de qual deles o desabafo partiu.

26/01/2009

TERRA LAVRADA

Tempo não teve para nada, que nestas coisas o tempo nem se sente. O tiro rosnou-lhe nas costas. Mordeu-lhas. E de imediato se viu desmaiando a dor de viver a morte, vontade domada. Depois, o quanto não interessa, uma eternidade ou a beleza de um segundo, pouco importa. Depois, reconheceu que deitado não estava entre o milho, maçaroca quente e um pouco de sal, de vida, areia macia a fugir-lhe dos dedos. Mas não. Estava ali. No alcatrão. A princípio quis fugir. Acordar de manhã manhãzinha, esteira calma, solitária companheira. Levantar-se, que os deuses não haviam previsto aquilo. Sempre estivera no seu convencimento o deixar de ser, o silêncio dos xicuembos, a morte. Mas na terra, essa mãe amada amante, lavrada. Corpo bom de mulher iluminado de desejo, se essa não fosse uma imagem dolorosa. Muito mais agora, ali. No alcatrão. Fechou os olhos ao abri-los. Ao vê-los, quando se viu, com a dor a tatuá-lo no fundo da coluna, suor de medo suado. No alcatrão. O corpo quieto. O peso das pernas, imobilidade sem préstimo. E o futuro. O seu futuro, se não descosesse o destino agora, ali. No alcatrão. Havia muitos como ele. Sorriam uns o amargo da eternidade. Cerravam outros os dentes para não ver, não gritar o vermelho que eram. Uns poucos tinham abertos os olhos, cegos pelo fumo da vida assim. O velho Land Rover estrebuchava, chapa cem queimada, negócio falido, sonhos baleados. Visão desfocada outra vez. A dor. E o alcatrão. Era sujo, e sentia vontade de chorar. Mas um homem não chora, mentira universal. Urinou todo o cansaço e tentou erguer-se, desejo irreprimível, porém impossível naquele instante fora de todos os instantes possíveis. As pernas jaziam, alheias à sua vontade de gatinhar. E desmaiado desmaiou um outro ainda, impotente. No alcatrão. Sonhou o cheiro da terra fresca, no depois imediato da chuva. E no sonhar calado desse odor a mulher grávida, vieram-lhe conturbadas recordações outras, perfumes, sons, sabores e coisas do tempo que atrás não volta, danado na pressa de nunca parar. Sonhou dias que tinham sido dele, como dizem que acontece na lucidez do sonho que perder se vai. E foi nesse amargurado espasmo, nessa lembrança agarrada à vida, que em câmara nítida se recordou do motivo que impensável o conduzira ali. Ao alcatrão. A carta. Na terra lavrada foi quando chegara a carta. Vinha fatigada de velhos machimbombos crivados de esperanças, ensebada de muitas mãos. Viagens. Outros lados impossíveis ou difíceis. Mas chegou, mesmo assim. E com ela veio também o destino, as coisas urgentes do amor. Isso sentira-o logo ele, antes de a ter recebido. A carta. Adivinhou-a, mal a manhã soube a chá quente, o fogo do costume. Contudo, a colheita não se faz de pressentimentos, adivinhações ou réstias de solidão, agruras da esteira, chão duro, terra amada. Por isso, o abraço da mudança que sentia aproximar-se desde que os galos, estremunhados, haviam cantado a hora do trabalho, não o impediu de agir como sempre. Preparou-se para acariciar o milho. E foi ao dia, enxada às costas martelando-lhe nos passos o peso do presságio, sem nela pensar. Na carta. A morte é certa. Mas certa é também a beleza da terra lavrada. Beleza forte, de mãe. Beleza antiga, necessitada do carinho de muito suor. Estava a pensar no bonito que a terra é desde que tratada até gritar de verde, quando o viu aproximar-se. Um baque no coração, mãos nos rins, corpo direito, enxada de lado. Estava quente, o sol. Mas soprava um ventinho de chuva a vir, como competia naquela época. Seca, felizmente, ninguém a pressentia. Ao ver chegar-se o vulto desenhado na contraluz do meio-dia, o mesmo sentimento de que tudo se modificaria em breve lhe acudiu ao espírito. Que diabo havia de o trazer àquela sua machamba perdida na história simples dos avós? A carta. E foi então que a recebeu, das mãos amigas do vulto curvado, a revelar-se o vizinho mais perto na distância de picadas arenosas à sombra de coqueiros, nguretas de sura, pratadas de caril de coco, lenha para as fogueiras das noites de namoros ao luar. Vinha de lá, lá de longe, da vila com administração, posto médico, escola de quadro negro à sombra de larga mafurreira. Vinha de lá, lá de longe, da vila até onde os machimbombos traziam novas de outros lados mais longínquos, de onde ela vinha. A carta. Afastaram-se para a sombra do inevitável cajueiro. Longo cumprimentar idoso como as estórias do cágado, solidariedade de gerações sofrendo traições da terra e do homem. Huum. Ida à vila acompanhado com família. Problema mal de barriga, mufana mais pequeno. Médico paga pouco, menos que ossos de curandeiro, sobretudo agora que madalas bons do antigamente está longe e maningue caro. Muito muito é melhor mesmo posto sanitário. Huum. Por cá tudo bem. Solidão na palhota, Momed amigo. Mas deuses bons são como se vê. A terra não se queixa, necessidade nenhuma de celebrar espíritos. Família também sou eu, mais o cão, bicho de lamber só panela de mandioca velha, e o galo, porco não dá em casa desde que boca é só uma. Huum. Trouxe-lhe isso, mandado com responsável da cooperativa, mas não sei mesmo… A carta. E lê-la? Assim velha e ensebada, tinha mais que um ar de surpresa. Falar que dizia nem pensar, escrever só o nome, mãos grossas do capim. Mas no atrás dos selos já estava rasgada. Dedos muitos já a podiam ter lido. Maseve não sabia? Nada! Humm. E com responsável lá da cooperativa sem sal nem farinha não tinha sido dito nada, um bocadinho só? Um mucadinho tinha pensado ouvir, mas vizinho mesmo que não ia lado nenhum, cooperativa tem sabão e pilhas de xirico… E de isto aqui escrito? Na carta. A propósito ouviu sim. Parece era de Marianinha, lembra? Cansaço extremo. Como podia esquecer tamanha paixão? A vontade de outros levara-a dos seus braços para a cidade grande, desfecho habitual. Saíra de casa com bom lobolo. Há cinco, seis campanhas, abalara contra uma vaca de bom leite, roupa e dinheiro. Tudo riqueza palpável, quando só amor ele tinha para dar, coisa que a família dela dispensara. Miséria. Festa grande fora a do casamento, maior era ainda o seu desgosto. E agora? Infelicidade? Talvez… Na carta. Humm. Pois parece que marido dela abalou-lhe, zangado. Não dá filhos, diz... E quer lobolo de volta, falou responsável. Mas a vaca, maseve sabe, morreu de maleita. A roupa, enfim. O dinheiro é semente de sementes, agora. E tanto mamana como madala dela já estão xicuembos, à sombra do cajueiro ancestral. Abalou-lhe. E carta diz ainda Marianinha dorida, muito à sua espera, sem alma que a ajude, só crença no amor. É simples. Diz na carta, dizem. A teia da vida. Aviso dos mais velho, no cantar repenicado dos galos com o sol a gritar estou aqui. Sentou-se, cansado. Vizinho partiu, cabisbaixa despedida, novidades para falar nas palhotas todas, sura nas redondezas há muita, noites são mais vagarosas que lembranças na hora da morte. No alcatrão. Mas as mortes são tantas e tão estúpidas, que de mortes já basta. Na realidade. Porque aqui, coisa inventada, pode ser pior, se não mentir. Partira em busca do amor perdido, mas não morreu. Era o vazio imóvel das pernas, só. Tanto que sonhou urinado com a vida. Acordou depois no camião, no frio de outros corpos aos solavancos. Pelo alcatrão. Desmaios sem conta, suaves fugas à verdade, suportada pela submissa aceitação da desgraça. O peso da esperança. Do mal, o menos. Estava vivo. Só que aquela teimosia aguda lá no fundo da coluna lhe recusava a virilidade natural das pernas. Cansaço imenso. Descansar institivo. Viajou dormindo um sono de quem não pode dormir, vulgaridade necessária. No alcatrão. E assim o descarregaram no hospital provincial. Quando acordou, depois de muito soro e sangue, recordações e falar anestesiado, não compreendeu nada. Nem me viu nesta minha imaginada bata branca nem sequer reagiu à urgência da carta, fatalidade calada. Não há palavras que. Deixou-se estar, incrédulo, olhar parado pregado naquela mudez. Das muletas. Assim encostadas aos pés de outra cama, outra amputação, pensou que lhe diziam tudo. Fechou os olhos, procurando esquecer aquele fel. E, devagar, perguntou, carregado da desilusão agora descoberta. Como poderia trabalhar a machamba lá na terra amada amante, desde os tempos dos avós acariciada, verde, terra lavrada? Com aquilo? Não! Pegar na enxada, como? Com as muletas? Cobarde, nada lhe disse. Nem sequer que elas, as muletas, não lhe serviriam. Enraivecido com a escolha feita, mau gosto de quem conta mórbido, remeti-o à fisioterapia. Exercícios. Massagens. Ultra-sons, para quê? Tratamento de rotina, sabendo bem que nada deste mundo lhe dará alguma vez outra o cheiro amigo a terra fresca, cheia de promessas. Promessas jamais a terra lhas voltará a prometer. Nem eu, com todo este fingido poder de inventar o que quiser, talvez, se quiser. Ninguém lhe poderá tecer outro destino, outro tempo onde possa afagar o chão, enxada e suor, até dele fazer a sua terra, nossa, lavrada. E nunca chegou à cidade grande, nunca se reencontrou com Marianinha.

Desculpem. Ultrapassa largamente o combinado. Mas não pude resistir ao apelo de uma terra que amo.


23/01/2009

Amores e Amores

- Já viste bem aquilo? – perguntou a mulher indignada.

- O quê?

- Aquelas duas exibicionistas?

O casal, de meia idade, estava sentado numa esplanada, numa tarde estival, e a mulher referia-se a duas outras, que estavam numa mesa próxima, sendo obviamente, também elas um casal. Estavam de mãos dadas e uma delas acariciava a face da outra. Tinham os rostos iluminados pelo sorriso dos amantes e resplandeciam felicidade.

- Olha, conheço uma delas. – afirmou o homem.

- Conheces?! As pessoas com quem tu andas metido. Deve ser naqueles dias em que ficas a fazer serão no banco.

- Não sejas tola! A mais magra é filha do gerente lá do banco.

- Coitado… que desgosto. Já viste bem, ter uma filha assim e que, ainda para mais, anda aí a exibir-se. Que vergonha.

- Tu exageras, não estão a fazer nada de mais.

- Não estão?! Aquilo até devia ser proibido, duas mulheres… Ai virgem santíssima!

- Oh Gabriela, as raparigas só estão de mãos dadas. E olha que o pai gosta muito da namorada da filha.

- Credo! Como é que isso é possível? Ele sabe e gosta?!

- Ele contou-me que teve um grande choque ao início. Eu compreendo, ninguém está à espera que a filha seja assim.

- Deus nos livre e guarde! Ainda bem que as nossas são normais.

- Queres saber ou não? Estás sempre a interromper.

- Conta lá.

- Acho que elas estão juntas já há uns três anos. A outra é enfermeira. A Marisa, a filha do meu gerente, teve um acidente muito grande, no princípio do ano passado. Um condutor bêbado despistou-se e foi contra ela. A rapariga esteve internada seis meses. E a outra, foi de uma dedicação extrema.

- Também era melhor, sendo enfermeira.

- Ela é enfermeira, mas não no hospital onde a Marisa estava. Ia trabalhar e, quando saía, corria para o hospital e ficava lá as noites inteiras (ou os dias, conforme estava de serviço de dia ou de noite). Só ia a casa tomar duche e mudar de roupa. Nunca a largou. E quando ela teve alta, meteu férias para a poder acompanhar na recuperação.

- Olha, não sei se farias isso por mim! – exclamou a mulher.

- Sinceramente, também não sei se faria tanto…

- Realmente, as mulheres têm outra sensibilidade…

- Agora já as defendes?!

- Não estou a defender, mas as mulheres são muito mais dedicadas que os homens; Quando amam, dão mesmo tudo.

- Não te entendo, ainda agora estavas a dizer tão mal…

- Se entendesses é que eu achava estranho. Nunca me entendes. – disse ela irritada – Olha, elas é que têm razão. Pelo menos não aturam homens irritantes e insensíveis como tu!

Encomenda

- Trrriiimm, Trrriiimm
- Estou, bom dia.
- Bom dia. Pretendo fazer uma encomenda.
- Com certeza. Já é cliente?
- Sou.
- Pode dar-me o seu número de cliente?
- Quatrocentos e cinquenta e sete.
- Já é um cliente antigo… Deixe-me confirmar os dados. Sr. Manuel Teixeira, Rua da Glória, nº5 – 3º, em Gondomar. Correcto?
- Não… O meu nome é Pedro Pais e vivo em Beja.
- Humm… Pode repetir o número de cliente, por favor?
- Quatro, cinco, sete.
- Não compreendo… está correcto, mas corresponde ao Sr. Manuel Teixeira. Tem a certeza que não são os seus dados?
- Tenho. A não ser que saiba algo que eu não sei, o meu nome é Pedro Pais, há quarenta e cinco anos. Quanto a Guimarães, fui lá uma vez, em férias, vai para uns vinte anos.
- Pois… não entendo. Vou pedir-lhe para aguardar só um momento em linha, para eu tentar resolver a situação.
- Eu aguardo.
- Obrigada.
(por favor não desligue, a sua chamada é importante para nós)
- Sr. Pedro Pais, obrigada pelo tempo que esteve a aguardar.
- Não tem de quê. Podemos resolver a situação para eu fazer a encomenda?
- Sim, vamos fazer uma nova ficha de cliente. Diga-me o nome completo, por favor.
- Completo? Mas isso nunca foi preciso.
- Bem, nós exigimos sempre, mas vou abrir uma excepção, já está à espera há tanto tempo.
- Eu agradeço. Pedro Pais.
- Endereço?
- Rua do Castelo, nº5, 7800 Beja.
- Quais são os últimos três dígitos do código postal?
- Não faço ideia.
- Pronto, deixe estar. O seu número de contacto?
- Para que querem vocês o meu numero de contacto?
- É normal, para o caso de haver qualquer problema com a encomenda.
- Eu faço a encomenda, a senhora verifica se tem em stock e envia pelo correio à cobrança. O que é que pode acontecer de errado?
- Por exemplo, se a encomenda nos chegasse devolvida.
- Se eu a deixasse voltar para trás seria porque não a queria e não estaria este tempo todo ao telefone consigo se não quisesse mesmo fazer a encomenda.
- Acho que vou ter problemas com o meu chefe por causa da sua ficha de cliente, mas deixe estar, diga-me então o que pretende encomendar.
- Pretendo um anel para o pénis e um kit de massagem sensual.
- O quê?! Está a gozar comigo??
- Eu?! Estou só a tentar fazer uma encomenda.
- Mas quem é que o senhor julga que eu sou?
- Empregada de uma sexshop.
- Desavergonhado! Herege! Filho do Demo! Está a ligar para a loja bíblica e ainda vem gozar com as pessoas de fé.

Na simetria de um espelho

De todos os jogadores convocados, apareceram à hora marcada no aeroporto, trinta e sete para o voo. As duas equipas seguiam no mesmo avião.
Na floresta, o vento fazia estragos na copa das árvores e, bem entendido, nos gigantes mais carcomidos pelo tempo e pelo acumular das intempéries.
As verdes e musgosas superfícies atascam a turfa, transformando em húmus a miséria lenta, instalada a um nível rasteiro.
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Gosto de me masturbar, por vezes apago a luz, outras olho-me num grande espelho. Fico em pé, descalça, totalmente excitada e tensa. Acaricio o peito e a barriga levemente, o meu corpo treme.
Estou a ficar velha e na ausência do meu amante, naturalmente, masturbo-me quando sinto necessidade. Desço as calças até ao meio das pernas e levanto a camisola descobrindo os seios. Aos cinquenta e oito anos o orgasmo é ainda o maior prazer físico que existe na vida. Na minha vida. O corpo fica vivo e poderoso depois de vários orgasmos consecutivos. É essa a sensação.
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O voo estava a decorrer tranquilamente sem atribulações nem turbulências e as expectativas de jogadores e apoiantes das equipas concentravam-se, sobretudo, na ilusão de um bom resultado.
A mãe natureza teve um fraquinho pela matéria, pelo menos nesta zona do Universo e deste modo, se quebrou a simetria, introduziu a imperfeição controlada na perfeição e assim permitiu a nossa existência. Provisoriamente.
A tempestade desabou com grande fúria. Os relâmpagos atravessavam o espaço entre as nuvens em forma de grossas colunas cinzentas. A intempérie começava a inquietar todos os passageiros. Pelas vigias o cenário apresentava-se preocupante.
- Senhores passageiros estamos atravessando uma zona de grande turbulência, agradecemos que fixem todos os objectos ainda soltos ao cinto de segurança – não tinha ainda concluído a frase e um poço de ar atirou vertiginosamente, uns duzentos pés abaixo, a aeronave. Corpos saltaram caindo logo após, no meio do corredor e uns gritos soltaram-se de algumas gargantas mais inquietas.
Kiriakov nunca pensou em Sísifo e, no entanto Sísifo havia acorrentado a Morte, tendo com isso desgostado profundamente o deus dos infernos.
Kiriakov apreensivo tentava desviar o olhar das escotilhas onde, no intervalo de “flashes“ potentes piscava uma centelha rubra na asa quase envolta em nevoeiro, no meio da trepidação constante.
Kiriakov desviou também o pensamento e pousou-o mil e duzentos quilómetros atrás sobre a última imagem da amante, deixada em terra, num apartamento recentemente mobilado.
Da porta do quarto tinha-lhe acenado, na direcção do grande espelho que ocupava toda a parede do fundo do quarto, e saíra já atrasado. Disse-lhe: - Até domingo. Ela desejara-lhe sorte para o jogo.
-Bem iremos precisar–respondera-lhe–ou passará a haver mais um treinador no desemprego.
Duas equipas , da mesma cidade, disputando a final de um troféu continental, mil e tantos quilómetros arredadas da sua origem. Um absurdo imenso mas jogo é jogo e as regras são para se cumprir.
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No solo misturadas com toda a sorte de detritos e completamente encharcadas, duas malas, uma das quais, aberta, de onde saíam roupas desportivas e uma fotografia.
-Encontrámos a caixa negra- ouviu-se uma voz.
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Acabou de se secar, após ter tomado um duche retemperador e tocavam-lhe à porta.
Chovia. Vestiu um roupão e dirigiu-se à janela.
Dois homens, à entrada, aguardavam. Um deles trazia algo na mão. Foi abrir.
Apresentaram-lhe sentidos pêsames e aquela sua fotografia ao espelho, onde , no verso, ele tinha anotado a morada do apartamento novo.
Quando lhe voltaram as costas, encostado o corpo ao umbral, reparou que a chuva também brotava forte dos seus olhos.

22/01/2009

CANNABIS LASCIVA

Agora sou o teu corpo.
E sinto-me elanguescido ao sabor das minhas palavras beijando ao de leve a pele dos teus seios, flores intumescidas. Parto em direcção ao sul eterno, sem saudades nem nada disso. Sinto frio ao mesmo tempo que me aproximo, sílabas tacteando-te o ventre, tatuando-me dos sons que dizes, digo, gemendo desmaiando.
Agora sou o teu corpo.
Arqueio-me e desejo-te como nunca o fizeste comigo, terra minha de onde me parto e onde me venho tão amiúde, tão raramente. Nunca soube o que te transporta e me traz neste momento, a não ser agora, minha terra, que te sinto como te sentes minha pátria, meu centro, quando dentro me entras, teu corpo sendo.
Agora sou o teu corpo.
E sei do langor, do estremecimento, do frio que me teu peso ferve os sentidos, eternizando-os a apagá-los como o vento que não ruge ali na rua onde nada tuge ao ritmo das minhas vontades, tuas coxas fechando-me. Submeto-me, claro.
Sou teu corpo.
Mas essa tua minha pele que agora me sou é tão estranha que chego a perguntar-me por que encanto mergulho assim nela, nele, à única metade da noite.
Sou eu? É ele ou ela? Somos nós?
Sou eu, paixão. Sou tu. És eu, frustração que se espraia pela brisa que lá fora nada mexe ou pela noite que se repete ao sabor de ti adormecida, amor, torrão, saloia pátria! Sou eu!
E quem é que com isto se masturba?
E quem é que com isto, nestes momentos de dilúvio, se importa, se dilacera, se perturba?
Acabo-me em ti, e amo-te.
PS.: Desculpem, volta a não ser um conto... A história que estava a tentar escrever para o tema da semana situava-se em Moçambique, mas acabou por se revelar longa. Lembrei-me então deste. Cá fica, até conseguir dar a volta à dita cuja.

20/01/2009

Mudar... ou talvez não.

Há uma certa altura na vida em que nos cansamos particularmente de ser quem somos. Ela estava nessa fase. Não havia uma razão, em especial, mas tudo a aborrecia nela própria; a aparência física, a forma de estar, o modo como falava, o local onde vivia, enfim, tudo.

Queria mudar, ser outra. Sabia que era mais provável que lhe saísse o euromilhões do que conseguir transformar-se, no entanto, a ideia não lhe saía da cabeça.

Um dia, ao visitar as suas sobrinhas, crianças de tenra idade, passou um bom bocado a observar a sua caixa de bichos-da-seda. Estavam quase todos nos seus casulos, crisálidas à espera da libertação. Como seria bom se pudesse fazer o mesmo… Fechar-se por uns dias e, depois, surgir esbelta, crisóptera e voar sobre o mundo, irreconhecível e adorada pela sua beleza.

- Tia! Tia! Estás a ouvir?

Só então reparou que as duas crianças clamavam pela sua atenção e que se tinha deixado embalar num sonho infantil e disparatado.

- Sim, queridas, digam.

- Que tens? Estás estranha, hoje. – Disse a mais velha.

- Nada, a tia estava só distraída.

- Queres brincar connosco? Vamos brincar ao Peter Pan.

- Só se eu for a Sininho. – Afirmou rindo, lembrando-se do que pensara momentos antes.

- Mas tu és muito grande para ser a Sininho. – Retorquiu a mais nova.

Engoliu em seco – existe uma idade máxima para sonhar, até as crianças percebem isso, já tinha passado da validade.

Não podia ser! Tinha efectivamente de fazer algo por si própria, já não aguentava aquilo.

No dia seguinte, levantou-se cedo, saiu para as compras. Escolheu roupa de um estilo completamente novo, mais descontraído. Passou pelo cabeleireiro, fez um corte radical e pintou o cabelo de um tom avermelhado. Passou num oculista e comprou uns novos óculos de sol tipo “gata”. Estava tão diferente, com um ar muito mais fresco e leve. Sim, poderia brincar, saltar, correr!

Quando ia a descer a rua, viu ao longe a sua cunhada acompanhada pelas suas sobrinhas. Não a iriam certamente reconhecer. Quando estava a cerca de vinte metros, a mais nova largou a mão da mãe e correu na sua direcção.

- Tia! Tia! Vamos brincar aos cento e um dálmatas! Tu és a Cruela.

“D. Rosa, a sua filha chegou do Brasil”

Lembro-me muitas vezes do filme “O Pátio das Cantigas”, especialmente da célebre cena em que a filha de D. Rosa, emigrante no Brasil, regressa a Portugal. Das personagens que fazem parte da acção da película, contam-se dois vizinhos de D. Rosa que se apressam a enviar a esta, uma mensagem, informando-a do regresso da sua filha. Um dos vizinhos utilizou a técnica tradicional do pombo-correio, o outro, enviou a mensagem via rádio.
As duas mensagens chegaram ao Mercado da Ribeira ao mesmo tempo e ambas diziam a mesma coisa: “D. Rosa, a sua filha chegou do Brasil.” D. Rosa recebeu-as com boa qualidade de recepção, nenhuma delas deixava quaisquer dúvidas quanto à sua compreensão. A reacção da senhora foi a de um sentimento imediato de felicidade. E digo “de imediato”, porque D. Rosa reagiu logo após ter lido uma mensagem e ouvido a outra, ambas numa linguagem objectiva e concreta, ou seja, a senhora não perdeu tempo a descodificá-las, já que estas se apresentavam correctas. Claras, portanto.

Desde A. G. Bell, o mundo já conheceu vários meios de comunicação e entre todos eles, hoje o telemóvel é o nosso companheiro de todas as horas.
Actualmente, a comunicação parece estar alterada. Mas apesar desta afirmação, não pretendo aqui expor nenhum raciocínio defendendo as (des) qualidades de bem comunicar através de meios mais ou menos sofisticados, digamos que a comunicação está diferente. No entanto, esta talvez careça de algum sentido crítico em determinadas ocasiões, senão vejamos:

Confesso que a minha sensibilidade tem sido perturbada quando me enviam mensagens escritas para o meu telemóvel do tipo, “oi tas boa k tal kombinarmos komermos alguma koisa hoje a note e kerendo e apetessendo paçamos num sinema kuando kiseres diz kk koisa beijokas”. São mensagens como estas que beliscam a minha alma... que tamanha moda cretina!
Sinto-me coagida a responder, ainda que receei que estas mensagens sejam uma provocação (?): “Olá, desculpa estar a responder três dias depois, mas foi o tempo que levei a compreender a tua mensagem. Para além de escreveres com erros ortográficos, diz-me uma coisa: desde quando é que a letra Kapa faz parte do nosso alfabeto? O jantar parece-me bem, pode ser que aprenda alguma coisa. Até logo.” Passados uns cinco minutos recebo a resposta: “es muita maluka e 1 nova linguagem pra este tipo de komonicação dpois encinote keres?”.

Eu até poderia sorrir com tal versatilidade linguística se isto não me parecesse tão triste. Quando o caso se apresenta com tais incongruências gramaticais, não poderei sentir o contrário de desolação. Parece-me ofensivo que tal linguagem tenha tido o conluio de um elevado número de utilizadores, cuja emissão e recepção deste tipo de linguagem seja aceite com bastante facilidade. As actuais mensagens desrespeitam as regras básicas do português: palavras mal escritas, má construção e formação das ideias e frases, ausência de acentos ortográficos, incorrecta pontuação, supressão frequente de sinais, etc., etc. Tudo em conjunto, convenhamos que por vezes pode ser um autêntico quebra-cabeças.

É isto, chegou finalmente a contaminação declarada à língua portuguesa, a tal ponto que a expõe ao ridículo gratuito. E por mais que me esforce, não consigo deixar de constatar que, apesar da evolução dos meios técnicos, nem por isso se comunica melhor… bem pelo “kontrario”!

19/01/2009

Quando o telefone toca...

Nada a fazer. O nervoso miudinho não o largava, nem a dormir. Já lá iam três dias a andar sobre brasas, três noites a fio a passar por elas, sem pregar olho, como puto em véspera de dia de anos. O que assim o trazia em pulgas não era, contudo, uma ânsia de menino. Longe estavam os tempos da bicicleta ou da primeira motorizada, que afinal acabara até por não ser a Sach V5. Pouco importa. O que agora lhe transtornava a pacatez era um desejo de solteirão inveterado, que assentara arraiais em si no último sábado, por via de um lacónico sms: “O meu marido é capaz de ter de ir ao Norte, em trabalho...”
Escusado é dizer que o coração logo lhe ficara uma barata tonta, a bater de uma para outra excitação. Tinha de mudar os lençóis, esconder as cervejas e os cinzeiros, comprar champanhe. Assim que, na noite desse sábado, abriu um e-mail mais prometedor ainda, só não teve um avc, um enfarte do miocárdio ou outra qualquer aguda perturbação fatal, porque pouco antes não resistira a acalmar o entusiasmo, tal como fazia quando, adolescente, se perdia na visão dos seios da Sophia Loren. Enfim. Benditas novas tecnologias. As entrelinhas da mensagem remeteram-no para um estado de graça superior ao de Barack Obama em cerimónia de posse: “Ele vai mesmo para o Norte. A Joana está a passar férias com os avós. Na terça telefono-te, para me ires buscar à estação. Bjinho onde quiseres.” Tinha mesmo de mudar os lençóis, deus dele!
O resto da noite passou-o a aspirar o apartamento até o vizinho de baixo lhe começar a bater com qualquer coisa no tecto. Desfez-se dos cinzeiros, bebeu as cervejas que tinha no frigorífico, preocupou-se depois com o pó e acabou por se deitar no sofá, a lembrar-se de tudo o que havia a fazer. Mudar os lençóis. E levantou-se ainda. Fez a cama de novo, pôs tudo o que era roupa suja a lavar e voltou para a sala e a emissão sobre as aranhas da Amazónia, no National Geographique. O ruído surdo da máquina não o deixou sonhar a sério. Sabia que era por demais distraído e recordou, assustado, aquela vez em que deixara a mãe sozinha numa área de serviço da A8, quando, a caminho da aldeia, parara para abastecer e ela se demorara demais nos lavabos.
Domingo e segunda-feira seguintes esgotaram-se em inúmeros pormenores ínfimos. Distraído como era, viu e reviu tudo até à exaustão, a ponto de quase se esquecer de avisar a empresa da sua ausência nos próximos dias. A justificação adiou-a. Tinha um amigo numa agência funerária, apontou a necessidade na agenda. Depois veria que funeral de tio ou prima o havia impedido de comparecer ao serviço. Aquele “Bjinho onde quiseres” mexia-lhe até na honestidade. Confirmou os lençóis mudados, os pauzinhos de incenso, o champanhe. Na terça, logo pela manhã, sentou-se no sofá, junto do telefone e com o telemóvel ao lado.
Perto do meio-dia, triimmm... Era o fixo. “Sim?” Do outro lado, um decepcionante silêncio. “Sim?” Nada. Pensou, então, que deveria ter sido um daqueles contactos electrónicos só para ver a que horas o utente atente, para posterior chamada e tentativa de venda agressiva de qualquer semana de férias nos confins de um mundo paradisíaco. Pôs-se à janela, a fumar um cigarro. E foi a vez do toque personalizado do telemóvel. Ao seu derretido “Estouu...”, retorquiu-lhe um tal António Convencido, da NT Comunicações, a perguntar se já conhecia o serviço ultra especial de televisão por cabo... “Não, não conheço, nem me interessa!”. Desligou, respirou fundo, conseguiu até adiar nova cigarrada à janela desconsolada. Estava quase a dormir, quando tocaram os dois aparelhos, quase em simultâneo. Atendeu primeiro o de casa. Era a menina de uma companhia de seguros. No outro, só ouviu uma voz a propor-lhe o mais vantajoso dos cartões de crédito.
Desistiu. Esquecido, ao primeiro disse “Desculpe, estão a ligar-me do telemóvel, aguarde um pouco...” e pousou, devagarinho, o auscultador na mesinha. Ao segundo, calmamente, respondeu também “Tenha paciência, só um momento, vou chamar o meu pai...”, enquanto deixava o aparelho, também ligado, na mesma mesinha sem um grão de pó. Recostou-se, então, a pensar no champanhe gelado e nos lençóis lavados da cama feita de novo. Adormeceu. E sonhou com o Matos Maia, do Rádio Clube dos anos sessenta, a responder “Sim, é do Quando o Telefone Toca, sabe qual é a frase de hoje?”

18/01/2009

Acabara de tocar à campainha que soou como um telefone do início do século passado e instantaneamente, mesmo de rompão, abriu-se a porta. Toque de magia, até me assustei.
Mal tive tempo de me desviar, tal a presença de um corpo de mulher em movimento, bem pelo dobro do meu, que quase me atropelou.
Ia pedindo para eu esperar um pouco e dissera sempre a correr:
- Já venho, não me demoro mesmo nada. Queira aguardar aí na sala, à direita.
No patamar da escada, enquanto dizia isto, parecia ir tirar o pai da forca. Mal olhei para baixo e já tinha contornado o vão da escada, descendo quatro a quatro os degraus de pedra, ainda pensei que se estatelava, espantada com a agilidade de tal corpo.
Perplexa empurrei a porta semi-encostada, fechei-a atrás de mim e dirigi-me para a minha direita, entrando numa sala de espera decrépita, com uma mesinha ao centro, carregada de revistas velhas como em qualquer sala de espera de um consultório vulgar. Repleta de cadeiras a toda a volta, com uma janela ao fundo, a sala já tinha conhecido melhores dias, sintomas anacrónicos da morfologia apresentada: um esgaçado papel de parede todo em volutas e caracóis dourados, a remeter para barrocos clandestinos. Um candeeiro de pé de latão já ferrugento, imitação desfeiteada de bronze de outras eras ostentando no alto um envergonhado abat-jour verde seco, comido pelas traças nalguns pontos, e com franjas a condizer com o papel de parede. Um relógio de pêndulo cansado espalhando lentos tic-taques e uma mesa com um telefone em cima completavam a decoração da sala.
Pela janela vislumbrava-se uma dupla fila de plátanos, todos eles descamisados, tiritando ao sol de Inverno.
O telefone analógico carregava um cadeado no anel de marcação para impedir qualquer abuso. Recordava-me que já não se via telefones destes há pelo menos uma década. A concorrência das companhias telefónicas privadas tinham exterminado gerações destes telefones. Esta raridade devia estar protegida por qualquer movimento ecológico.
Tocou a campainha. Parecia o som de um filme americano, talvez o Casablanca, ou outro qualquer com detectives. Fui à porta num papel assumido de secretária de um negócio de patrão ausente. Um engano, nada à porta. Pelo intercomunicador ninguém responde. Volto á sala e levanto o auscultador do telefone e também nada se ouve excepto o bip normal. Também o toque já tinha terminado. Volto a sentar-me e pego numa revista mas o olhar prende-se na copa dos plátanos remetendo o pensamento para os últimos eventos na minha vida.
O raio do toque de novo. Volto à porta abrindo-a e novamente o vazio. Rápido ao telefone, nada de novo. Estarei a sofrer alucinações? Bem sei que as recomendações eram bombásticas. A Alice Mota tinha-me contado que esta vidente era poderosíssima, mas tanto poder assim, logo à entrada, até arrepia. Eu nem acredito nestas coisas. Ao que uma pessoa se sujeita após todos os desenganos da ciência encartada de médicos nacionais e estrangeiros. É o desespero, o desespero puro e duro. Eu aqui pelo Humberto, se ele não desaparecer e se se recompuser bem posso passar por este enxovalho.
Que farei eu sem ele? Ai, mal de mim.
TRIMMMMM.TRIMMMMMM.TRIMMMMM
- Está lá?
Será que existe outro telefone?
Era a voz da vidente mas ela ainda não voltou a entrar. Aqui nesta posição daria por ela passar. Ele há coisas...
Finalmente uma chave na porta.
Agora sim era ela.
Todo o esplendor de um volume enquadrado pelo umbral:
- Queira desculpar a minha saída intempestiva mas ninguém me poderia ter substituído nesta tarefa. Este saiu-me pela janela e voou para o terraço do prédio em frente. Tive de agir rápido. Enquanto estão atarantados há boas probabilidades de os recapturar. Este é a primeira vez que foge e teria ainda assim menos pena de o perder. O outro sim é que é um papagaio perfeito. Se ouvisse como ele me imita.

17/01/2009

Desta vez, permitam-me, vou sair um pouco das regras. Trata-se de um conto biográfico, singela homenagem a Mariana Saragoça, que partiu fisicamente esta semana, mas que ficará para sempre nos corações de quem com ela privou e de quem tenho a honra de ser sobrinha.

A Cumpridora de Sonhos

Nasceu a sorrir, numa pequena vila do Alentejo, com cheiro a alecrim e alfazema, no final da década de trinta, do século passado. Em plena ascensão do regime salazarista, foi educada por um pai com profundas convicções comunistas e uma mãe fervorosa devota católica. Divorciaram-se quando tinha apenas quatro anos, passando a viver com o pai, durante o período escolar, e com a mãe nas férias.
Cresceu entre dois mundos antagónicos, que lhe deram uma panóplia de valores, entre os quais aprendeu a escolher os seus próprios. O pai incutiu-lhe um sonho – a liberdade. Queria-a instruída, culta e independente. Sempre lhe recomendou que não casasse; avisou-a várias vezes que os homens não prestavam (ele bem sabia do que falava).
Ainda assim, casou, da forma mais convencional, com um homem tradicional que tentava mostrar-se liberal. Tiveram duas filhas. Enveredou pela carreira docente, leccionando o verdadeiro amor da sua vida: a língua portuguesa.
No entanto, o sonho continuava por cumprir. Não se tratava da sua liberdade pessoal; de uma forma geral, era a liberdade do seu país e, em particular, a liberdade de ensinar, especialmente de dar à população mais desfavorecida a possibilidade de se poder expressar livremente na sua própria língua. No início da década de setenta, ainda tentou; fez parte de um grupo clandestino de alfabetização que, pouco de pois de começar, foi descoberto pela PIDE e, naturalmente, foi cancelado.
Veio o vinte e cinco de Abril, arregaçou as mangas e deitou mãos à obra, em Trás-os-Montes e no Alentejo, organizou programas de alfabetização e começou a cumprir o seu sonho.
Percebeu, então, que atrás de um sonho vem outro, que torna o anterior mais pequeno. Portugal, país que amava profundamente, não chegava para fazer por ele tudo o que queria. Entretanto, o seu casamento colapsou. Partiu numa cruzada pelo mundo, espalhando a língua portuguesa por três continentes: Guiné-Bissau, Moçambique, Suécia, Marrocos, Angola, Austrália, Timor e França. Foi cumprindo o seu sonho, ensinando a sua língua e o seu país, e sonhando novos sonhos. Reconverteu-se ao catolicismo e reunificou os seus valores de infância. Iniciava sempre só, cada nova etapa, deixava inúmeros amigos, sempre que partia.
Numa curva do destino, cruzou-se com a doença, que a obrigou a cessar a sua actividade profissional. Lutou com bravura, fé e sempre com alegria. Matou dois cancros, o terceiro foi mais forte que ela. Nesse dia, embora já não falasse, ainda sorriu e partiu serenamente embalada no sonho de uma outra vida em que acreditava profundamente. Que cumpra também este!

16/01/2009

NÃO SE MUDA JÁ COMO SOÍA

Que todo o mundo é composto de mudança, toda a gente o sabe. Até Maria Vinagreira, sem nunca ter lido poesia e de Camões saber só o ter sido pobre, sorte madrasta de muitos, pelo menos de todos os da criação dela, e zarolho, azar de poucos, é verdade, maior ainda quando calha a quem nada de seu segura, como é quase sempre o caso. Agora mudar, fizera-o vezes sem conta, como se a Lua lhe houvesse nascido do lado errado. Coisa certa, até porque de menina sentia não ser bom sinal pôr-se de rabo a jeito para quem quer que fosse.
Mudara dos bancos da terceira classe para os campos do Monte da Maúcha, pois o velho, pai de muitas e esforçadas contas, julgava ser-lhe, a ele como à filha, mais proveitosa a apanha da azeitona do que o decorar da tabuada. Mudara, depois, de debaixo das saias da mãe para as mãos do seu homem, de rapariga para mulher sem sequer vinte anos ter. Numa enxurrada da vida assim, mudara ainda de esposa só para mãe também, três filhotes a mudarem-lhe de rajada e de pantanas as sossegadas aflições do dia-a-dia. Por último, mudara da pacatez alentejana para a esperteza saloia, então ainda nas margens do bulício suburbano.
“Quem não arrisca não petisca”, dissera-lhe o marido. Levada por semelhante entusiasmo, lançou mãos à vida, procurando não dar cavaco à saudade. Contudo, as coisas só mudaram para efémero melhor quando recuperou a alegria nos olhos da filha mais velha, por uns tempos deixada longe, ao cuidado dos avós. Reunida a família, logo a viu aumentada de dois outros rebentos. A pouco e pouco e sabe-se lá como, foi-se então tecendo uma rodilha de sub-reptícias mudanças em torno de si e de tudo. Não matavam, mas cada uma das linhas de cada hoje a enleava numa moinha de desencanto aceso, tão vivo que a páginas tantas acabou até por mudar de crença, sem se aperceber que as velas da nova religião lhe iam apagando o brilho juvenil. Souberam-no guardar as filhas, depois, mas esse será outro conto, talvez.
Ele era o homem a beber, ele era a filha de alegres olhos malandros a namorar às escondidas, ele era o filho mais novo a fugir. Naquele tempo, já todos se perdiam. Um nos copos, cansado da oficina e do bedum dos sapatos dos outros, a rapariga na miragem do amor, o rapazola na ficção da viagem roubada em consecutivos panfletos de heroína. E foi a galope que o primeiro dissipou o pouco que tinham, a segunda se casou com um magricela de bolsos vazios e o terceiro se viu detido. Num ápice, mudou de esposa, mãe e dona de casa para tudo isso e ainda sogra, mulher-a-dias, costureira e operária numa fábrica de bolos. E passou, religiosamente, a deslocar-se todos os domingos a Lisboa, carregada de sacos de plástico a abarrotar de roupa, tabaco e comida para o filho. Seria mariola e estava preso, mas era seu.
Dado o incómodo do autocarro a horas impossíveis e do caminho a percorrer a pé, única alternativa à roubalheira dos táxis, o genro começou a levá-la de carro. Uma seca, horas ali à espera do fim da visita, com os cafés fechados e as prostitutas do Parque Eduardo VII a assediá-lo. Procurou persuadi-la a trocar o táxi pelo metro. Sempre era mais barato e...
– Metro?! Nem pensar! Sei lá andar de metro! E aquilo está cheio de ladrões. Ná. Nem pensar.
– Ora essa! De metro farto-me eu de andar e nunca vi nada disso. As coisas não mudam assim, D. Maria...
Acabou por se deixar convencer. Afinal, era só mais uma mudança. Da primeira vez, o genro acompanhou-a, para lhe mostrar o que fazer. Nada de muito complicado. É calma, a cidade ao domingo. Comentavam isso no regresso, já com os sacos mais leves, enquanto percorriam o túnel de saída, em Entrecampos, sem ninguém por perto, salvo uma senhora toda bem-posta e de mala a tiracolo, que os precedia desde as bilheteiras. De repente, um encontrão, estardalhaço de roupa suja e tupperwares vazios por terra, mãos na cabeça e gritos aflitos. Um magano qualquer atropelara-os em passo de corrida e, de esticão, roubara a mala à senhora. Galgava agora os degraus, logo desaparecendo num clarão de espanto.
– Estás a ver, estás a ver? Um carteirista! Eu bem te dizia! Tudo muda, ouviste? O metro mudou, é um antro de malandros! Mete na cabeça que tudo muda e já nada muda como era costume.

12/01/2009

O Peso da Culpa

A criança, terceira filha do casal, nascera com uma ligeira protuberância nas costas. Apesar de a terem sujeitado aos mais diversos testes, não conseguiram concluir a causa dessa deformação. Só uma pessoa estava certa da sua origem, o seu pai: “se tivesse nascido macho, nada disto acontecia, agora sai mais uma peça de louça rachada e com defeito!”
A menina foi crescendo e aquela saliência acompanhava o desenvolvimento da criança. Era irrequieta, quando algo de errado sucedia, já se sabia de quem era a culpa.
A partir dos três anos, com o aumento das travessuras, a protuberância começou a crescer de modo significativo. Piorou por volta dos cinco, quando se começou a perceber que sofria de enurese nocturna. Claro que não lhe davam denominação tão pomposa, chamando-lhe simplesmente “mijona”. Não se coibindo, aliás, de o fazer frente a quem quer que fosse, para ver se ela ganhava vergonha e deixar de molhar os lençóis todas as noites.
Ninguém parecia perceber o aumento da deformação nas costas da criança, embora se notasse já uma postura ligeiramente curvada.
Ao longo dos anos, foi carregando sobre si toda a culpa que lhe queriam incutir. Já nem era necessário que a culpassem porque, instintivamente chamava a si a responsabilidade de tudo que se passasse ao seu redor e que tivesse uma conotação negativa. A sua deformação aumentava e cada vez ficava mais curvada sob o peso de tudo o que carregava nas suas costas.
Sempre que, num rasgo de revolta, tentava endireitar-se, logo o pai, a mãe ou qualquer outra pessoa tratavam de a pressionar para baixo, de modo a manter a sua postura. Ela resignava-se porque, intimamente, sabia que a culpa era sua.
Durante a adolescência tentou assumir uma certa rebeldia e logo se sentiu mais curvada. Conseguiu alcançar uma solução de compromisso. Sim, faria aquilo que entendesse embora soubesse de antemão que o peso que carregava iria aumentar, tanto porque os outros lhe atirariam esse peso, como porque ela própria se sentia obrigada a carregá-lo.
Assim se fez mulher, foi mãe, já quase dobrada ao meio. Envolviam-na um misto de culpa e medo de não ser capaz de aguentar o seu fardo.
Certo dia, sentando-se num banco do jardim para descansar, chegou-se perto dela um homem, muito velho, de longas barbas brancas, muito hirto, que lhe perguntou:
- Mulher, porque estás tu tão curvada, sendo ainda jovem?
- Porque não aguento o peso da carga que carrego.
- Esse peso não está nas tuas costas, está somente na tua cabeça. Podes libertar-te dele quando quiseres.
- É muito simpático da sua parte, mas não sabe do que fala. Esta é a culpa que carrego por querer ser eu, por não viver de acordo com os parâmetros que os outros traçaram para mim. Não me posso libertar.
- Não te poderias libertar se tivesses escolhido negar-te a ti própria e viveres apenas como os outros esperam. Sê fiel a ti própria e endireita-te.
Naquele momento, a mulher levantou-se, ergueu o tronco lentamente, perante o seu próprio espanto.
Quando estava completamente direita, olhava o seu corpo estupefacta por ter superado as suas próprias limitações e, pela primeira vez, olhou o mundo absolutamente de frente, olhos nos olhos.

10/01/2009

APOSTE NOS SEUS SONHOS!

APOSTE NOS SEUS SONHOS!

Nem pensar. Daria em doido, se apostasse na roda dos sonhos. Já em miúdo tanto voava a bordo do carrinho de rolamentos quanto se via, aterrado, num mundo sem som nem vivalma. Depois, de bigode a despontar, ora sonhava com aquele brilho nos olhos da vizinha mais nova ora se estarrecia envolvido na densa teia de aranha num dos túneis do convento. Duas farripas de barba mais tarde, e era o estremecimento do primeiro beijo ou o arrepio do primeiro exame a sério. Não. Por mais que o incitasse a Santa Casa da Misericórdia, nunca apostaria na lotaria dos sonhos, matéria volátil de mais. Contudo, é verso que o sonho comanda a vida.
E o certo é que se vira disparado desde o alto da Ilha da Madeira, a rasar o passeio nas traseiras dos bombeiros até entrar em derrapagem na curva para a rua da meninice e logo aí descolar, agarrado aos cordões da direcção, rasando o quintal e a mãe a estender a roupa, em direcção às torres da basílica. O galo foi os pombos terem-no forçado a um looping de regresso aos esbracejados berros maternos:
– Desce daí, que dou cabo de ti! Malvado, ainda nos matas aos dois, malandro!
Se assim não tivesse sido, ainda hoje viveria nas nuvens, sem crises, recessões ou pesadelos como os que, noutras febres, o haviam lançado na tal imensidão branca e vazia, paralisado diante da dita aranha no escuro ou, ainda, emudecido até à exaustão no martírio da matemática. Sonhar era tramado, quando o delírio do sarampo ou das bexigas lhe encharcava o sono. E não se tornou mais agradável, só por em adulto ter passado a misturar tudo, numa autobiografia plana e surreal, plena de personagens e histórias enredadas em espaços e tempos distintos, mas cruzados, como se em cada sonho de cada noite diversos castings se processassem em simultâneo.
De uma vez, um amigo, actual empresário de sucesso, injectava-se na casa de banho do Casalinho de Santo António, passava a seringa de vidro ao Mosse e sumia-se. O Mosse, aluno dos tempos de Moçambique, não devia estar ali, naquela primeira casa de todas as ilusões, mas agarrava no objecto com a ponta dos dedos arrepiados pela gota de sangue a pingar da agulha, deitava-o na sanita e recuava, enquanto um magala, conhecido numa reunião dos S.U.V., lhe passava a G-3 com um cravo no cano e puxava o autoclismo. A seringa desaparecia e, também numa voragem inexplicável, já estava sentado na penumbra da Toca da Raposa, a beber imperial e a congeminar a ocupação de uma casa devoluta, com os companheiros de hoje e o entusiasmo da época em que o povo exigia infantários. De outra, em plena savana da Gorongosa, dava uma aula de Cultura Portuguesa a uma das turmas da Universidade de Nantes, quando lhe aparecia a D. Henriqueta, sua professora primária, com uma hiena pela trela e uma palmatória enorme. Ainda lhe esticava o braço direito com a palma da mão virada para cima, mas logo se via numa estalagem do Mont Saint-Michel, a querer festejar o vigésimo ano do seu casamento, embriagado e impotente, com todos os alunos de Português Língua Não Materna a dar-lhe os parabéns em romeno, moldavo, ucraniano, russo e coreano, e a ministra da educação a gritar-lhe impropérios, num repentino hemiciclo meio vazio de deputados a dançar marrabenta.
Não. Assim jamais apostaria na lotaria dos sonhos. Porém, o único eu responsável por semelhante desordem volátil era ele, que cedo se perdera no brilho dos olhos da vizinha mais nova e logo se deixara levar pelo estremecimento do primeiro beijo, uma vez sonhado e tantas outras repetido. E foi assim, a sonhar e amando, que aprendeu a entender-se com a vida, mesmo sem nesta lhe sair, numa só ocasião que fosse, o sonho de um qualquer jackpot de excêntricos.