21/02/2009

Ao Virar da Esquina.

Poucos decerto desconhecerão a épica traça com que Homero legou à posteridade os feitos e gestas do heróico Odisseus, a quem também chamaram Ulisses. Gerações sem conto afrontaram com ele a braveza das ondas que os deuses acirravam, a malícia e perfídia dessa terrível Circe que tudo fez para o perder, e com ele viveram a brutal masculinidade do seu regresso, quando as praias de Ítaca tremeram sob os rendidos arquejos de Penélope. Aquilo que a Odisseia não chega a contar-nos, quiçá por receio de deslustrar a nota épica, é que após cumprido o dever conjugal, e com elevados juros de mora, o nosso herói deixou à esposa amantíssima o cuidado de lhe desempacotar as malas, e foi beber uma cerveja ao café da esquina. O lance destoa flagrantemente numa Odisseia, e é contudo impossível não simpatizar com ele.

As grandes questões são importantes na vida, pelo menos para quem se preze de algum pensamento sobre aquilo que o rodeia, mas as pequenas questões são a própria vida, a sua matéria e substância. As grandes questões são a arquitectura da existência, mas os seus tijolos são os meros factos triviais, pequenos nadas que de uso nos surdem ao virar de cada esquina. Também aí se deixam encontrar algumas surpresas, que são considerável matéria-prima na construção diária de nós mesmos. Cada esquina, assim encarada, é um potencial repositório de importantíssimas minúcias e bagatelas, e outro bric-a-brac quotidiano. É que nem tudo nesta vida tem de ser portentoso, que diabo!

A esquina distava talvez umas escassas centenas de metros, e nem assim se deixava vislumbrar. Tenho já calcorreado mais cidades do que poderia nomear numa tarde comprida, todas elas repletas de esquinas, mas nunca cheguei realmente a habituar-me a elas. As esquinas são coisas que assustam, talvez por não serem realmente coisa nenhuma. Se me acontece percorrer uma rua, a esquina que à distância vislumbro não é senão uma quebra de continuidade, uma falha na via por onde sigo, a promessa de um caminho novo, invisível por enquanto. Estuguei o passo na curiosidade de ver o outro lado, no arquejo das surpresas, dos detalhes, de tudo o que não terá jamais um sentido supremo, mas que não deixa ainda assim de nos dar sentido a nós. A esquina estaria talvez a coisa de dez metros.

Ocorreu-me nessa altura, nem sei bem porquê, que talvez houvesse do outro lado um circo. Isso seria belo, um circo com domadores e trapezistas, leões e palhaços, e a promessa de bailarinas com lantejoulas. Mas não, pensou a minha desilusão, o mais certo era ser apenas mais do mesmo, caixotes e bancas de jornais e uma calçada brilhante de sol, estendendo-se a perder de vista.

Acabou por não ser nada disso, como nunca é, não na vida real, pelo menos. Ao virar da esquina, não vi nada de novo, nem sei por que razão me achei a ver o mundo todo de novo. Vi algo normal e espantoso, tão mundano como uma banca de jornais, e que voava mais alto que todos os trapezistas do mundo. Estaquei ao virar da esquina, incapaz de perceber com que justificação continuava o mundo a girar, sem fazer caso de tão quotidiano prodígio. Hesitei, seguir em frente parecia-me fora de questão, virar a esquina era perder o meu caminho, a minha rota, e há quem tenha essas coisas por relevantes.

Ainda me encontro especado nessa esquina, aguardando a resposta que seguramente não virá. Talvez me tenha enganado quando comecei a escrever isto, é bem possível que seja tudo menos banal o que se encontra ao virar da esquina.

É no entanto interessante observar as pessoas que passam apressadas, e entreter-me a contar quantas delas chegam de facto a chocar comigo. Choca sempre muita coisa connosco, quando estamos parados ao virar da esquina. Coisas como aquele autocarro, por exemplo, que tão seguramente desce na minha direcção. Ociosamente, interrogo-me de onde virá, e se terá também dobrado uma esquina.

11/02/2009

LOGO ALI, AO VIRAR DA DITA

Chegava ao fim do dia, vinda da banda de lá detrás do sol-posto. Vinha e era recebida com cerimónia, embora nunca desse cavaco a tanto salamaleque. Transpunha a porta, aceitava um copo de vinho e ia direitinha ao quarto, enquanto enchia a casa de um só seu odor a terra, ora erva cortada de fresco ora feno no estábulo ora goivos em noite de quase Verão, tudo com um travo a fado de viúva. O aroma da vida é afinal tão intenso quanto o do luto. Mas esta é comparação recente, ganha com o virar dos anos.
Assim, à distância do tempo, fica apenas a lembrança da velha de negro, vestida de mãos austeras. Uma de duas maleitas a trazia: ou tinha o miúdo virado o bucho ou nele andavam assustadas as lombrigas, infantis achaques provocados fosse pela traquinice de rédea solta fosse porque o pai tinha a mania de o atirar ao alto em bebé, para logo o resguardar no carinho dos braços. Brincadeira, em ambos os casos. Seja como for, certo é que emagrecia a olhos vistos.
Por isso, chegava a visita a cada entardecer, com as mãos calejadas untadas de jeito e azeite morno a massajar-lhe o ventre, mais a ladainha e as folhas de couve aquecidas ou a enxúndia de galinha apertadas em torno dos rins, no sufoco de uma toalha também quente. Choramingava, mas nada feito. A velha forçava-o à deita e virava costas, seguida da sombra solícita da avó. À hora da ceia, era a mãe quem lhe trazia o caldo. E era também comer e dormir, que ali se seguiam à risca as mezinhas da senhora de negro e não seria ele, um fedelho ainda, a virar-lhe a cabeça. Libertava-o do aperto e do cheiro das couves ou da gordura galinácea, entretanto arrefecidas, aconchegava-lhe os cobertores e, findo o Pai-Nosso, dava-lhe a bênção, apagava de um sopro a candeia e saía. Enfim. Com tantos desvelos, se o bucho tinha virado, direito ficou. Ou, se as lombrigas tinha assustadas, calmas ficaram. Recuperou peso e cabeça, virou a página da infância.
Fez-se homem. Contudo, quando de virar se tratava, sempre de pé atrás se deixava ficar. Surgisse ou não o verbo na ponta da língua do mais corriqueiro lugar-comum, logo ao olfacto lhe vinham as mãos da velha a dar-lhe a volta à barriga. Traziam-lhe pele de galinha, esses ditos populares. Arrepiavam-no tanto mais quanto todos, nas suas redondezas, neles insistiam para lhe apontar a dita malvada, a sina que a cada passo lhe virava a vida do avesso. A mulher enganou-o, virou-lhe a honra noutros lençóis. O banco de sempre virou o bico ao prego e negou-lhe o crédito prometido. O melhor amigo virou a casaca e nunca mais o recebeu em casa.
Tempos de crise, coisa antiga, tão velha quanto o buxo virado, as lombrigas aos saltos, as bexigas loucas que também lhe haviam acontecido. O mundo de pernas para o ar logo ali, ao virar da esquina. Mas essa era dita que não aceitava de qualquer jeito. Andou tempos sem fim à volta de ruas, por portas travessas e outras esperanças, à espera vá lá saber-se do quê. Para uns, aguardava-o a felicidade, a surpresa, a solução. Para outros, o azar, a tristeza, o pesadelo. Cansado, quase desistiu, convencido que a cada virar nada se sabe sobre o que pode acontecer.
Resolveu, aí, virar cada esquina no ponto exacto, opção volátil, tomada apenas pela absoluta necessidade de não fugir de nada, nem sequer dos incómodos do passado. A vida cheira tão forte quanto a morte, talvez. Ambas têm a vantagem de nunca se saber o que trazem, assim, de repente, ao virar da dita, seja ela a esquina do Sardinha, emblemática da terra e cantinho de reformados, ou canto tramado onde decisões se tomam, seja ela o fado de ficarmos sós, a olhar a sorte dos outros, nós, irmãos.

09/02/2009

A talhadeira

Naquele tempo, todos tinham um ar de quem tinha caçado gambuzinos em pequenos. Gambuzinos, aqueles bichos peludos e esquivos que se procuram de noite nos pântanos e redondezas. Não haverá terra de interior, aldeia recôndita ou povoação mais desligada do mundo que não tenha o seu pântano de caça ao gambuzino, ou pelo menos um charco e na falta dele, o riacho mais próximo serve na perfeição.Tinham o ar de quem tinha caído pelo menos uma vez. De noite, os buracos se são muitos, parecem ainda mais e à beira dos pântanos há sempre onde cair.
O ar detecta-se facilmente - ficam com os olhos arregalados, sempre bem abertos, procurando cumplicidades noutros olhares e um laivo irónico perpassa pelos cantos da boca para ficar a bailar como bandeira identificadora como que a dizer: eu também já cacei.
Espevitar os gaiatos, inocular-lhes coragem como quem atarraxa uma armadura para a vida. Eis o objectivo como iniciação sacra. A galhofa como prémio acumulado em contares diversos, uma recompensa mais condizente com o mentor, jamais com a vítima.
Aos anos que foi mas em surgindo oportunidade toca a reunir e voltar a fazer a malandrice. Todos os que já caíram, são os melhores para reproduzir com todo o requinte a malvadez.O oficiante, qual sacerdote rotinado - o Ti Alberto - combinava previamente com o seu confrade, o Zé da Paula a ida e vinda da “talhadeira”.
A construção estava quase pronta até a empena mais alta já ostentava o habitual ramo de final de obra.À improvisada mesa de refeições, duas tábuas equilibradas em dois simples cavaletes, durante a curta pausa de almoço, o capataz sugeriu ao aprendiz de trolha:
- Quando acabares de almoçar, vais ali, às Fontainhas, à obra do Zé da Paula, e dizes-lhe que vais da minha parte buscar a talhadeira que agora está aqui a fazer falta para o trabalho da parte da tarde. Muito urgente, não te distraias no caminho pois aqui a obra não pode ficar parada.
-Onde é que fica a obra do Zé da Paula?
-Mal entras na rua principal, passas a fonte, fica logo ali, ao virar da esquina.E nada de desculpas. Ele que a devolva pois já a lá tem há demasiado tempo.
O rapazito foi a correr para ir num pé e vir no outro. Nem sabia ele que teria de vir nos dois pés, que o carrego era redobrado. A combinação acertada para afinar aprendizes.A talhadeira – para quem não sabe (e a vítima nunca o sabe) - era uma pedra relativamente pesada dentro de um saco de lona cosido, fechado e sem pegas para que o carrego não fosse uma leve pena. O desconforto era uma constante nos quinhentos e tal metros que decorria o frete.
Quando lá chegou o Zé da Paula foi peremptório:
-Não deixes cair a talhadeira senão pode-se partir e o teu patrão dá cabo de ti. Olha que ela vai inteira, não me ponhas em trabalhos – disse ao despedir-se distribuindo um olhar gozão em torno dos seus homens.
A pé e num sobe e desce em calçada escorregadia, de estranhar era que a talhadeira não se partisse. Lá foi ajoujado na direcção da casa de partida, talhadeira ao ombro, sem quase parar para respirar. Ao chegar – a recompensa – o olhar malandro como máscaras coladas aos rostos num Carnaval serôdio. O riso a rebentar a toda a volta em gargalhadas de cascata num insulto incomensurável até doer lá no fundo.
Nunca mais. Buscar talhadeiras nem qualquer outro recado, nem para a obra, nem para patrão nenhum. Pouca paga e muito abuso.
E era logo ali, ao virar da esquina.

08/02/2009

O Consumo

Bem, o melhor é pôr logo as cartas na mesa, e arrumar de uma vez por todas a questão dos olhares revirados em exaspero, dos suspiros enfartados, dos desabafos rosnados entre dentes, coisas assim como, “boa, mais uma história na linha de ‘boy meets girl’, que original”. Para que ninguém seja levado ao engano, que nos tempos que correm é coisa grave enganar o consumidor, desde já esclareço que versa o presente conto o caso de um rapaz, e também de uma rapariga, e do mais que entre eles sucedeu. Ficando o amável consumidor lealmente advertido, prossigamos.

Nunca, até ter conhecido a Elsa, ocorrera a Raul preocupar-se em demasia com a questão das raparigas. Não se quer com isto dizer que não fosse ele apreciador, muito pelo contrário, já que era bem raro encontrá-lo desprovido de uma qualquer companhia feminina, calhando por vezes tratar-se da mesma da véspera, mas mais frequentemente de alguém inteiramente diferente. Não que não fosse selectivo, que nenhuma delas se apresentava de feição a envergonhar o seu acompanhante, mas isso é artigo de que há um vasto mercado, desde que se saiba escolher, e Raul não hesitava em fazer valer as suas mais-valias, passe a aparente redundância. Foi então que lhe aconteceu Elsa.

Elsa era a primeira estrada de dois sentidos que encontrava, a sua primeira transacção a dois, novel especulação que o fascinou, e cedo se desataram a consumir um ao outro. Rapidamente esgotando os dividendos dessas aquisições de impulso que se iam mutuamente perpetrando, decidiram fidelizar-se cada um à oferta do outro, e casaram.

Durou ainda uns sólidos seis meses, aquela maratona desenfreada de consumo, em que a mobília do quarto assistiu a caprichos aquisitivos de bradar ao kama-sutra, numa vertigem de melhor se adquirirem, melhor e sobretudo mais, sempre mais. Peritos não solicitados, gente em todo o caso experimentada nestes mercados matrimoniais, foram alertando para o risco da bancarrota eminente, mas eles pouco caso fizeram de tais avisos, que a fidelização era total, e o apelo de um deles se deixar vislumbrar numa montra vinha sempre a ser a perdição do outro.

Foi de chofre que Raul se capacitou da sua precária situação financeira, corporizada num extracto bancário de frondosas hastes, e percebeu que o pior acontecera: tinha atingido a falência. Naquela balança económica de consumo mútuo, esgotara o seu capital sem ter adquirido tudo o que desejava, porque o tudo é algo por definição impossível de adquirir. Não dispondo o consumidor de recursos à altura da oferta, Elsa partira naturalmente para a exploração de novos mercados.

O novo Raul, divorciado e encornado, embora não necessariamente por essa ordem, é muito menos visto na companhia de raparigas, e consta que dedica grande parte do seu tempo livre a meditar esta questão do consumo. Compreendeu já que isto de mercados é assunto complicado, em que há sempre a certeza de alguém sair a perder. Não é que pretenda parar de consumir, falta-lhe só aprender a arte de evitar ser ele esse alguém.

02/02/2009

O Sonho.

Estive quase para pôr aqui não um, mas dois textos que em tempos idos consignei às páginas de um blog já esquecido, umas coisas vagamente poéticas que se enquadravam a matar no tema. Mas depois achei que isso era batota, e pronto, safaram-se dessa. Mas não se safam é deste.

Dormir, sonhar talvez… Por mais que respeite a conhecida frase do bardo imortal, não estou bem seguro de que ele tivesse razão, pois tenho amiúde observado que existem muitas variantes possíveis: pode-se dormir sem sonhar, ou então sonhar acordado, ou mesmo levar a vida toda a dormir, até que um sonho nos venha despertar. Este que me aconteceu pertence sem dúvida a uma dessas categorias, coisa que deixo para já à amável consideração do leitor. Mas vou contar-vos como foi…

Parecia um dia normal, excepção feita, talvez, à morsa de tons violeta que insistia em roncar exasperadamente para mim. Nem estou bem certo que de uma morsa se tratasse, pelo que pude depreender, observando a basta cabeleira, seria talvez um golfinho, mas um que fosse bastante peludo. Um esforço de concentração levou-me a perceber que era afinal a minha chefe, entusiasticamente embalada numa questão profissional que, tanto quanto pude depreender, versava um importante aspecto relativo aos dedos dos pés das amêijoas. Mas posso ter percebido mal.

A ranhura oblonga da minha realidade subjectiva abriu-se com um súbito espirro, deixando entrar meia dose de feijoada de chocos, aos quais me lembrei de chamar um almoço. A parte da tarde acabou por se prolongar até ao dia seguinte, incluindo contudo um oportuno intervalo para ir a casa dormir, infelizmente seguido de uma manhã repleta de frutas tropicais, em que predominavam as bananas. Tentei então voar, mas a varanda onde me encontrava era baixinha, e pareceu-me também um pouco esparvoada, pelo que optei por voltar a ir almoçar.

Não me recordo, depois disso, do momento em que adormeci, nem sei explicar por que razão, em pleno dia, me lembrei de começar a sonhar. Sei apenas que alguém me disse algo que nunca se diz, algo simples e recheado de sentido, de um daqueles sentidos absurdos por serem tão elementares e evidentes. Nesse disparatado momento, fiz eu próprio sentido, e acordei de pé. Percebi então que estava finalmente a sonhar.

Ainda sonho todos os dias. Não me vou pôr aqui a contar os meus sonhos, basta que vos diga que são sonhos bonitos, e que me agrada sonhá-los. É importante sonhar, pois tudo o que nos liberta do irracional quotidiano é importante. Imagino, por vezes – e isto será talvez disparate – mas ponho-me a imaginar se não seria possível passar a vida inteira assim acordado, a sonhar. Por enquanto, limito-me a viver cada sonho, e depois recordo-os com um sorriso saudoso e reservado, enquanto escuto os roncos sem nexo das morsas de cor violeta.