30/09/2009

Uma poética, quase

Penhasco.
Diz um dicionário, um qualquer tirado à sorte, que o rigor para o caso pouco importa, tratar-se de um grande rochedo escarpado.
E que tem sinónimos como fraga, penedo, penha, rocha e, como atrás se disse, rochedo.
E que, para quem tenha falta de mestria, este vocábulo pode rimar pelo menos com carrasco, chavasco, chiasco, churrasco, damasco, filharasco, frasco, gimnoasco, pardavasco, pinasco, ravasco, rebiasco, tabasco, vasco e verbasco.
E mais, que tem por anagrama penachos.
O que a gente aprende com o cheiro a terra e a aridez da pedra! O que a gente deslinda com o magnetismo da palavra!
Penhasco.
Assim como um morro, quando em criança nos aventurávamos na vertigem do voo, que pouco mais era que uma pequena pirueta calculada a olho.
Em baixo, o chão era quase sempre mole e o corpo quase sempre duro – ou seria o contrário, o corpo quase sempre mimoso e o chão quase sempre calejado?
Do penhasco da infância já pouco subsiste. Vergam-se agora as asas e o horizonte se tolhe, do penhasco aquém.
Além, porém, como no haikai de Anibal Beça, anuncia-se a luz, como quem renasce:
Brilha mais ereto
o penhasco sob o sol:
ah o verão fértil.

27/09/2009

Fuga em do maior

Fileiras de instrumentos cabisbaixos e companheiros. É a banda que se me passa aqui no dentro. Deploram o do desafinado de mins. Aqui no dentro, perseguem-me acordes prestes a aniquilar os talvezes ou os nadas. Procuro entender todos os andamentos em cadência dos cantos bentos, sei que se servem desses argumentos para que lhes conceda asilo, por isso, resta-me a maestria de os empurrar ao de leve para dentro do meu dentro. As notas atroam a notas aparentemente rítmicas de magia, como qualquer truque em transmutação. Não tenho a certeza disto, mas são tão insistentes... que, o meu dentro deixa de o ser, enquanto eu, me tento ajustar, dentro do meu fora.

23/09/2009

Fuga fugaz

Contar uma fuga levou-o, pobre dele, a dirimir sobre o ponto de partida, não propriamente da ou para a fuga, mas para a escrita dela, que tanto podia ser para uma determinada fuga, em concreto, ou para uma qualquer fuga.
Preferiu esta última, incerta, imprecisa, e por isso ilimitada e para ele mais mansa e livre, como devem ser todas as fugas.
Um destes dias, de pena em punho, decidido como quem entra na liça, arriscou uma aventura, e escreveu de olhos cerrados:

Fica comigo, deixa que as palavras te seduzam, e encostados um ao outro admiremos o rio, de mãos desenlaçadas, como na ode do poeta. E descansados de estarmos, que o tempo nos invada e nos enleve. Em breve, verás, seremos longe, como quem se abandona sem querer ou sem saber que o quer. Partamos!

Depois, triste e desenganado, dobrou em quatro o branco que lhe sobrou da vigília, e adormeceu.

14/09/2009

Fuga para a Felicidade

Estava tudo escuro, sentia-me completamente aprisionada, sufocada. A maior das prisões: quando não temos liberdade de olhar, de falar, sequer de pensar. Um dia percebi que poderia ser diferente. Podia fugir, ser livre. Bastava querer.

Enchi-me de coragem, rebentei com as correntes e parti os agrilhões. Corri para a liberdade.

Jurei que não me apanhavam noutra. Dali para o futuro seria totalmente livre, não queria quaisquer amarras. Não é possível ser totalmente livre ao lado de outra pessoa. Mal nos descuidamos, lá vêm as pequenas mentiras para não magoar, não ferir a susceptibilidade de quem está ao nosso lado. Às tantas, as mentiras vão sendo cada vez maiores, só para manter a imagem que a outra pessoa criou. Mas já não somos nós; somos a personagem que mantivemos à custa de pequenas grandes mentiras.

- Quem era ao telefone?

- Era a Ana.

- Mas essa não era aquela que se andava a fazer a ti?! Porque é que lhe atendeste o telefone? Anda outra vez a dar em cima! E tu dás trela.

- Ela só queria saber se lhe posso emprestar um livro, que sabe que eu tenho, para a pesquisa dela para a tese de mestrado.

- Qual livro? Não interessa, era uma desculpa e tu não vês (ou não queres ver). A faculdade não tem biblioteca? É só para falar contigo.

Noutra ocasião:

- Quem era ao telefone?

- Era telemarketing.

Não, não queria isso para mim. Estava certa que nunca poderia ser completamente sincera com alguém com quem partilhasse uma vida, por isso era preferível não partilhar. Ia simplesmente gozar a minha liberdade.

Parti para a vida com a firme determinação de simplesmente a gozar, sem que nada atrapalhasse.

Encontrei uma companheira de fuga. Também ela saída de uma outra caverna. Demos as mãos e decidimos prosseguir lado a lado, dando pistas uma à outra de qual a melhor maneira de gozar a vida em liberdade.

- Está sempre bem contigo própria e irradia essa confiança (elas adoram isso).

De pista em pista, fomos descobrindo que não aguentávamos as mesmas correntes, que tínhamos os mesmos defeitos, que queríamos a mesma liberdade.

Lado a lado, percebemos que ansiávamos o mesmo beijo, a mesma união de corpos, uma comunhão de almas antigas.

Demos novamente as mãos, abraçámos os corações e partimos numa fuga para a felicidade.

13/09/2009

Medo, eu?!

Medo, eu?!

A hora de me associar à equipa, tardava.
O convite fora-me feito havia muito, insistido, até, pelo Armindo S., amigo e sabedor que é do meu aprazimento por estas coisas da escrita.
O problema é que a minha inclinação – que em questão de palavras também há inclinações (para além das vocações, das inspirações, das declinações e de outras terminações) – é mais para os versos e para os desvarios cronísticos, nada de grande prosa, como os contos (por pequenos que sejam), as novelas ou os romances. Por isso, confesso, o adiamento em dar o passo inaugural.
Confesso também que, recebido o convite, não entendi como aderir, isto é, não ousei vingar a minha ignorância na destreza das novas tecnologias, que isto de entrar num blogue sem ser para o comentar não está assim ao alcance de qualquer um.
Confesso, ainda, que o medo por tudo isto era desmesuradamente maior. Não apenas fazer alguma imbecilidade e encravar o sistema logo à primeira, com as gravosas consequências para o meu indispensável portátil, como ficar preso nas duas ou três linhas iniciais e dali não sair.
Arrastei, portanto, o dito passo, até que, apanhado em casa do meu convidador, fui por ele quase-à-força industriado nesta arte transitiva de postar. Estava cumprido o primitivo feito.
Agora, pois então, havia que partir para o tema da semana, ou para qualquer outro que as regulares sugestões da semana sempre impelem para as boxes.
Hoje, transbordante de coragem, lancei-me ao Medo, só para que o meu amigo Armindo S. não pense que me deixo vencer facilmente. E a prova aqui está, como se lê, neste (des)temido texto, com o devido (des)conto!

12/09/2009

Agora… à noite…

Gostava de ter mais tempo para escrever e corresponder. É-me difícil. O tempo enrola-me de tal modo as histórias que só consigo escrever quando há vento lá fora... Depois, não consigo inventar. Só consigo enredar o que a vida me vai oferecendo, depois de muito cirandar. E depois, também tenho medo de contar.
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Pai, se tu soubesses das saudades que tenho de ti, quando me lembro dos livros que devorava, enquanto não vinhas! Sentada numa cadeira desconfortável, ao calor da braseira, na companhia da mãe, teimava em prolongar o serão, numa resistência ao sono e ao medo e esperava que regressasses a casa… O mundo, adormecido por entre nuvens de fantasmas e túneis de dúvidas, parecia ignorar a chiadeira medonha do vento que eu tentava serenar, concentrando-me nos sentidos das palavras e imaginando ilustrações de sonhos com que decorava as histórias.
A mãe, sentada na espera do dever, pendia entre pedaços de costura ao colo, enquanto a cinza crescia no lugar das brasas. E eu, numa insegura teimosia, continuava a ler, devorando páginas feitas de estórias inventadas à luz do candeeiro a petróleo. Um quadro que ainda hoje preservo na memória com a nitidez da luz que invade as casas e lança as sombras para trás das portas… um quadro ao qual gostaria de dar forma se tivesse guardado as cores com que decoraste o quintal onde tanto brinquei, enquanto trabalhavas para sustentar a família. Um quadro ao qual acrescentaria fantasias de lareira feitas de sapatinhos e, por cima, os presentes de Natal e a áurea prometida, até que o simples gesto de desembrulhar o tão desejado momento haveria de fazer cair por terra o sonho de uma longa maturação de secretos bichos-de-seda, num carrinho rosa com o bebé chorão que me estava destinado, de cor negra, que tanto me intrigou e me deixou a pensar. Talvez tenha sido esse o meu primeiro dia no mundo dos crescidos.

Lá fora, o rumor intermitente do vento suspendia de interrogação e medo o meu coração que insistia em continuar a ler, na aventura das histórias por contar. Em certos momentos sentia-me transir quase em pânico, mas esperava por ti à lareira e, no dia seguinte, o meu corpo renascia e o sol entrava pela soleira de todas as casas e inundava as frestas mais escusas.

- Pai, foste-te embora tão docemente, tão sem aviso, sem que me pudesse despedir de ti! As silvas apoderaram-se do quintal e já trepam pelo telhado. As árvores ainda resistem, algumas carregadas de fruto e, no fundo da velha arca, recordo um quinhão de nozes que mandaste guardar também para mim.

Agora, à noite, a escuridão estilhaçou as vidraças e empenou o caixilho das janelas, que já tombam de par em par. Uma ave negra entrou pela casa adentro e, com ar de habitante das trevas infernais, pousou nos meus umbrais. Tem os olhos fitos para dentro, com um ar de quem sussurra um sonho de Natal... e, quando lhe faço sinal para se ir, não se cansa de repetir “Nunca mais!”.

01/09/2009

Fugir, ou não fugir?

Isto não é um conto. Respeitando o tema pedido, trata-se apenas de algumas (breves) considerações sobre esse fugidio conceito, a Fuga.

Muito foi já dito e escrito sobre fugas. Há volumes de teorias em volta do tema – a chamada literatura de escape –, onde são escalpelizados até ao mais miúdo detalhe os meios e instrumentos, os estratagemas e truques, o momento mais propício e o mais favorável estado do tempo. Sem embargo de tão momentosos pormenores, um requisito há que avulta no topo da lista, talvez a única condição de facto imprescindível: para uma fuga bem sucedida, é necessário começar por estar preso.

Será um truísmo afirmar que ninguém foge de onde não está, mas não é de modo algum uma irrelevância. O convicto agrilhoado reconhece a inconveniência do seu estado, e a desirabilidade de o alterar para melhor. Numa palavra, fugir. Pois bem, tem o aprisionado cidadão ao seu dispor os convencionais meios para atingir esse objectivo: seja por via da colher escavadora ou do cesto destinado à lavandaria, acabará por se ver do lado de fora.

Tomemos agora, verbi gratia, o guarda que tem a seu cargo o convicto. Também ele está mal onde está, também ele reconhece o desejo e conveniência de mudar, mas ele está do lado de fora. Entra amiúde na prisão, é verdade, mas entra e sai quando quer. Os condenados pertencem à prisão, ele apenas a frequenta, e é por isso que não pode fugir, já foi dito que ninguém foge de onde não está. Os prisioneiros têm ainda outra possibilidade que a ele está vedada, que é a opção de não fugir.

Vi isso numa prisão, mole granítica erigida sobre um monte que eu contemplava de baixo, da liberdade da mesa de esplanada onde me esquecia em libações sem fito. Vi os prisioneiros e não me lembrei que estavam presos, ocorreu-me apenas que estavam lá dentro. Eu podia entrar e sair, eles pertenciam-se. E, ao contrário de mim, podiam fugir.

Desistir de tudo leva-nos a não pertencer a nada, e a rejeitar todas as prisões. Depois disso, não há fuga possível.

Tal como alguns funerais dispensam flores, também o presente texto dispensa comentários. Isto não quer de modo algum dizer que eu não aprecie comentários, ou não os deseje. Simplesmente, não me parece que seja um texto comentável, ou que alguém pudesse desejar comentar.