25/10/2009

Jantar do blog

Caros,

Muito se tem falado acerca de um novo jantar do blog, e é já tempo de passar da fala à acção. O tempo urge, estando já à porta a estação festiva, que de uso não consente disponibilidade suficiente para estes extras. Assim sendo, proponho que se estabeleça já uma data. Gostaria de ter apresentado a proposta sob a forma de uma sondagem, mas as variáveis são muitas, e nem o fim de semana de 49 horas me consentiu tempo bastante para escrever o código necessário. Proponho assim que cada um se pronuncie, na caixa de comentários deste post, sobre as seguintes datas: 13 de Novembro, 20 de Novembro, 27 de Novembro, 4 de Dezembro. Todas as datas são sextas-feiras. Excluí o 6 de Novembro por me ser pessoalmente impossível, mas será obviamente difícil chegar a uma data que seja aceitável para todos. Se 6 de Novembro for a melhor data para os restantes, então, by all means, seja essa a escolha.

Clarificando, o que espero disto são comentários na seguinte forma: “não posso em A, estou disponível em B, C e D. Prefiro C, e entre B e D, é melhor B”. Julgo que estão a ver a ideia.

Fico a aguardar as vossas mais que prezadas respostas.

21/10/2009

O penhasco

O PENHASCO

Ao volante, de mãos inflexíveis, o homem conduzia a carrinha com os olhos fixos no horizonte dividido. O som estafante do motor ressoava-lhe no cérebro enrijecido. Durante a viagem, lembrou-se de um filme francês, do silêncio, das pausas, do tempo das intermitências, e respirou fundo, entre os solavancos inebriados do motor.

Em frente, o penhasco elevava-se na linha do horizonte e pintava a negro aquele pedaço de céu adormecido na claridade do azul. Enquanto conduzia, o homem vislumbrava um rasto de névoa dos ventos de sudoeste, entre uma vastidão de areia, entrecortada pela linha da estrada. Os pensamentos transportavam-no a casa e à magia das filhoses, do crepitar da lareira, às saudações enrubescidas e à presença animada das crianças. O penhasco, continuava ali, negro, cortando a linha crepuscular. A certa altura, pareceu-lhe que estava próximo da fronteira e acelerou mais um pouco. A velocidade fê-lo sentir-se voar e, por momentos, fechou os olhos e sofreu a dureza do vento na pele. Aqueles segundos de olhos fechados pareceram-lhe uma eternidade… Ao som de Money for nothing, voltou à realidade e atendeu o telefone. Lá fora, um escorpião subia pela janela do pendura. Uma voz de mulher lembrou-lhe da ceia e da reserva de tinto que todos os anos o patrão lhe oferecia. Foi então que o homem reparou no escorpião e fechou a janela. O escorpião nem se moveu. Esticou-se o mais que pode e, com a gravata de que se havia libertado no início da viagem, bateu freneticamente no vidro, tentando espantar o lacrau que se movia lentamente. Desesperado, acelerou e o bicho encolheu-se e parecia ainda mais agarrado à janela. Depois de uma longa recta de horas, passou uma curva e, inesperadamente, a escuridão abateu-se sobre a viatura. A surpresa brusca da alteração de luz atordoou-o e sentiu o corpo soltar-se. O carro capotou e o homem foi projectado para cima de uma duna, a 9 metros da carrinha. Passaram segundos, minutos... e o vento evolara-se no enigma da viagem. Um lacrau retomava elanguescido a direcção da viatura. Uma voz de mulher, em pânico, fazia-se ouvir na histeria do telemóvel ensanguentado.

Em redor, o silêncio cortante do penedo deixou-se envolver lentamente por uma miríade de estrelas. Por detrás do penedo, a cidade acendera as luzes e abria as portas das igrejas aos cânticos de Natal.

O homem, atordoado, abriu os olhos e, lentamente, levantou-se e caminhou na direcção do penedo.

19/10/2009

0º 55’ 10’’N 29º20' 33''W

Hoje sei que foi duzentos metros a sudoeste que me encontrei com o penedo.
No meio da neblina (neblina rasando a água) náufrago, cinquenta anos de idade, pés em bolhas, demasiado tempo de imersão, sentir um golpe na coxa como um rasgão, a incerteza a deixar-nos em pânico. Cheguei a pensar em esqualos, esses bichos (selachimorpha) que aparecem em águas quentes quando e onde menos se espera. Nada disso, pelo menos na hora, encontro adiado.
Quando nos encontramos a boiar há pelo menos um dia e uma noite, a esperança por um fio, deverá parecer um sonho, ainda que sangrento sonho, encontrar zona rochosa onde encalhar.
O mistério do esbranquiçado nevoeiro a atrapalhar. Sentado em cima de uma rocha negra sangrando copiosamente da perna, algures no centro de nenhures no meio de névoas densas onde raio apareceu o penhasco? Do fundo do mar? Sim, como todas as ilhas. Primeiro uma agulha erguendo-se das profundezas ao longo de dois, três quilómetros, para o raio de um náufrago ali ir bater arrastado à deriva por uma corrente qualquer a partir do seu azarado afundanço fruto de uma inesperada tempestade tropical desencadeada dois dias antes.
O silêncio quebrado pelos ruídos são os das pequenas ondas num splash splash peganhento e constante, os gritos de algumas andorinhas-do-mar ou cagarras esforçando-se por lutar por um lugar no penhasco.
Lembro-me entretanto do conto “A toca” do escritor Franz Kafka que tão bem retrata os medos e o seu processo nascente embora a terra mole escavada pelo animal não dê para analogia com este mar assente em águas mornas.
E que poderei contar em cima de um penhasco?
Contar que me encontrem.
Contar os dias.
Contar o guano dos pássaros por metro quadrado? Difícil. Nem à pazada, mas isso seria um contar que cheira mal.
Posso contar com uma insolação quando o nevoeiro passar, com frio durante uma noite chuvosa e com impaciência durante o princípio do longo tempo que prevejo aqui ficar.
Um penhasco, apesar de terra firme, não deixa de ser uma prisão desconfortável com água a toda a volta e, como devem imaginar, não se vê passar os comboios nem ao longe.
Não será Alcatraz, mas a pena prevê-se mais dura. A expectativa resume-se: apanhaste perpétua, se fazes favor sobrevive, aguenta até ao fim.
Encontrar a zona de sombra do penhasco, subir para recolher a água da chuva, lutar com as aves nidificantes, roubar-lhes os ovos, espreitar pelo meio do nevoeiro tentando vislumbrar horizontes, procurar um Sexta-feira qualquer sabendo que não virá e mesmo inventá-lo na sua definitiva ausência para enganar o tempo. Envolver os peixes para ter algum- parco- alimento. Nadar para manter a forma. Imaginar o testamento que gostaria de ter deixado escrito. Esperar. Não desesperar.

05/10/2009

Parado em queda livre.

No fim da estrada ficava o penhasco. O homem ainda não sabia disso, e percorria sem preocupações a estrada, essa estrada que terminava num penhasco que não existia, tal como nenhum penhasco existe.

Dá jeito por vezes falar de penhascos, ou até escrever qualquer coisa sobre eles, mas isso não os faz existir. Nenhum penhasco existe, como não existe o frio ou a escuridão. O frio é só a ausência de calor, a escuridão não passa da ausência de luz, e um penhasco é apenas a ausência de algo a que nos possamos agarrar, de um solo onde possamos assentar a nossa própria existência. Podemos verificar se a quantidade de calor é excessiva ou insuficiente, discutir se a luz é escassa ou se é demais, e constatar se estamos bem seguros ou em desequilíbrio. Mas o vazio não se contabiliza, e sobre o vácuo nada há a dizer.

O homem chegou ao fim da estrada e caiu no penhasco. Melhor dizendo, caiu nessa não existência onde nada havia, fosse luz ou calor ou um mundo que o pudesse segurar. A queda foi longa e vazia, e também ele foi deixando de existir.

Não soube se chegou a tocar o fundo, nem sequer se haveria esse fundo, ou em que estado ele próprio lá chegaria. O grande nada que é o penhasco continuou a existir, vazio como sempre. O nada não ocupa espaço, e ele também já não.