30/11/2009

A porta é uma saída pela qual se entra

Na época em que vos conto esta história ainda não existia o conceito de subsídio-dependente, nem conceito nem sistema, simplesmente não existiam subsídios para os mais ou menos necessitados.
Elena, uma jovem mulher igual a tantos pobres, não teve outra solução senão a de se render à mendicidade para alimentar a família.
Na rua, Elena tentou várias vezes esticar a mão nua para que nela depositassem algum dinheiro, mas esta táctica nunca resultou, na sua mão apenas caíam propostas obscenas. E compreendia-se porquê, Elena possuía uma beleza fora do comum.
Como se calcula, era-lhe muito difícil conviver com a sua situação baixa, ter que necessitar e ter de se submeter, e por tudo isto, decidiu fazer-se à vida de pedinte à moda antiga: bater porta a porta, abrir o saco dizendo apenas dê-me alguma coisinha. Por vezes o saco até se abria para receber nele pão, enquanto outras, um tenha paciência – como se pode pedir paciência quando a necessidade nos grita silenciosamente… com mais pão.
Tendo aprendido que a paciência não é tanto uma virtude mas uma mágoa que contraria o espírito e o corpo, Elena continuou de porta a porta até que uma delas estava identificada com um nome – algo invulgar na sua cultura –, perante o rótulo colado na porta hesitou em bater nela por considerar que poderia ser uma empresa. Mas o destino, sempre indomável, obrigou-a a dizer truz-truz com os nós dos dedos.
Desculpe senhor, esta casa é uma empresa ou uma casa particular? Depende, respondeu Maslow. Pois… Disse ela acanhadamente. Pode ajudar-me com alguma comida, dinheiro, roupas…? Entre, entre, convidou Maslow.
Que encanto de rapariga, será que ela aceitará que lhe ofereça um banho…? Tenho a certeza que realçaria ainda mais a sua beleza. Maslow calou o convite e dirigiu-se à cozinha recolhendo alguns alimentos cozinhados no dia anterior para doar à miséria. Mas, o problema da coisa dar, é que esta pressupõe sempre uma troca – nem que seja um obrigado.
Maslow queria beijá-la apesar da ténue imundície de Elena. Ele surgiu da porta da cozinha sem utensílios à vista e verteu-lhe no saco os restos de comida de que já não necessitava. Obrigada, obrigada, agradeceu Elena.
A porta pela qual entrara era logo dois passos atrás dela, mas ambos ficaram a olhar-se como se o tempo tivesse parado – com um olhar comum, sobre o nada. Maslow, com os anos, deixou de pedir beijos, mas tal não significava que não necessitasse deles, apenas se esqueceu como se pediam.
Uma vez mais, agradeço muitíssimo a sua ajuda, disse Elena e virou-se para a porta. Olhe… não sabe que as portas não são saídas? Sei, sei, disse ela. Sei que servem para entrar e para sair. Oh, que inocência a sua… Ela não lhe prestou muita atenção e lançou a mão ao trinco, puxou-o à direita. E sem qualquer suspiro, Elena, desde o seu mais fino cabelo, transforma-se numa estátua de sal. Maslow, por sua vez, perante uma tão delicada e translúcida imagem, ajoelha-se diante da sua inofensiva imobilidade e com uma agitada excitação, começou a lambe-la enquanto lhe dizia, obrigado, obrigado.

28/11/2009

O Jantar do Blog

Caros bloguinstas,

terminou mais um encontro do nosso blog. Mais um sucesso! Ao invés do anterior, desta vez participaram quatro membros femininos (aliás, todos), estanto os membros masculinos dignamente representados pelo Armindo.
Desda vez podemos afirmar que o jantar foi óptimo, incluindo o próprio repasto. Diversão também não faltou, sendo que três dos elementos (esta vossa humilde secretária incluida), foram para a farra até estas horas...
Esperamos com anseadade o jantar em que conseguiremos reunir todo o grupo.
Até à próxima!
Um Abraço

26/11/2009

Jantar do Blog (Update)

Tal como previsto, o 2º jantar do blog realizar-se-á amanhã, 27 de Novembro de 2009, pelas 20h30. O local será o Restaurante Casa da Morna, sito na

Rua Rodrigues Faria nº 21,
1300-501 Lisboa,

O restaurante fica em Alcântara, por trás da esquadra do Calvário. Para garantir que ninguém se perde, fica aqui este mapa com a localização exacta.

A todos os que estarão presentes, renovo os meus votos de um excelente jantar literário.

22/11/2009

Porta sem casa

Há muitos anos, concluída a escola primária, ia-se da minha aldeia para a cidade. Ia-se, pode mesmo dizer-se, para o mundo, para um mundo novo, porque o mundo que qualquer criança nessa altura tinha, numa aldeia como a minha, era um mundo velho, com caminhos de terra batida, com ruelas empedradas há séculos e ruas de paralelos puídos. E as casas eram também velhas e gastas, como boa parte das pessoas que nelas morriam.

Há muitos anos, quando a gente miúda crescia e tinha muita sorte, e alguma queda para os livros, ia para a cidade.

Eu era ainda catraio, e apesar de não ser assim muito dado às leituras, que havia coisas mais importantes para dar sumiço ao pouco dinheiro, tive muita sorte, sobretudo porque, ao contrário de muitos amigos meus da aldeia, tinha um tio velho, daqueles da cidade, que era ou tinha sido inspector da educação, um tio muito influente e muito bondoso que achava que uma criança, ainda mais sendo da família, devia estudar muito para ser grande, como muitos outros grandes que havia na parentela. E os meus pais, numa humilde obediência a que se juntava algum orgulho, mandaram-me para a cidade para aprender a ser grande e entendido.

É claro que fui. Durante alguns anos fui sempre, sozinho e de camioneta, para o novo mundo que aos poucos me foi sendo familiar e cada vez mais pequeno, quase como a minha aldeia, mas isso foi só mais tarde, quando dali fui para a capital, e agora para o caso pouco interessa. O que agora importa é que eu ia e vinha, diariamente, e regressado a casa, deixada a mala carregada com livros e tudo, e mudada a roupa limpa por outra de trabalho, comia qualquer coisa à pressa e ala para o campo ou para o monte, ou para o monte ou para o campo, dependia das estações e do que se buscava na terra, que o pessoal por lá andava, a maior parte do tempo o dia inteiro, e eu não era nenhum fidalgo, como me lembrava o meu avô.

Mas o que me tornava grande mesmo, depois que comecei a ir para a cidade, era eu chegar à aldeia lá para as duas e meia ou três da tarde, correr rua acima, empurrar a porta ou o portão do alpendre, galgar o pátio enxotando as galinhas, ir direitinho ao lugar onde se escondia a chave de casa e depois, como dono de uma mansão, abrir a porta de entrada e entrar. Aquilo era tudo meu, e eu tinha uma chave, e uma porta para abrir sem ninguém dentro que me estorvasse.

Esse alpendre ainda hoje existe, também o pátio e também uma casa, mas já não há galinhas à solta nem mãos que lhes dêem comida ou boca que as chame pelos nomes. Quando ainda lá vou, por ir, à casa da minha aldeia, sei de cor o lugar da chave, mas não há ninguém no seu interior que me queira estorvar a passagem, só porque agora, simplesmente, a porta deixou de ter a minha casa dentro.

21/11/2009

Portas, para que vos quero?

A fábrica de portas suspendeu o que ainda restava da sua actividade numa anódina manhã de terça-feira, vindo a declarar falência no dia imediato. A dúzia e meia de funcionários que a fábrica ainda empregava encontrou sem dificuldade novas colocações, e a fábrica ali ficou, parada e inerte, à espera de um futuro que se prefigurava pouco auspicioso. Da outrora florescente empresa apenas restaram dois sócios perplexos e derrotados, tentando a todo o custo compreender por que bulas falhara aquele empreendimento.

A fábrica tivera todas as condições para triunfar, e isso não fora fruto de um acaso fortuito. Pelo contrário, a área de negócio fora cuidadosamente escolhida com a intenção de assegurar o sucesso. O produto tinha procura, caramba, toda a gente precisava de portas, estava ali um mercado garantido. E mais do que garantido, era um mercado exclusivo, pois nenhuma outra empresa fabricava portas em toda aquela região. E no entanto, eis que se viam falidos. O sócio principal, que se comprazia em ostentar o título de Presidente da Companhia, jurou não descansar antes de descobrir o que causara a lamentável derrocada, e partiu em demanda dos enigmáticos factos.

Um primeiro vislumbre da verdade atingiu-o assim que entrou numa aldeia, e percorreu com um olhar lento e inquisitivo a fileira de casas sem porta que se perfilavam ao longo da rua principal. Não era que se desse o caso de não terem essas casas nenhuma entrada, pois que todas ostentavam a convencional abertura rectangular, emoldurada de ombreiras, mas que nenhuma porta fechava. Ao longo de toda a rua, simpáticas vivendas e modestas choupanas escancaravam o seu interior a quem quer que passasse.

O Presidente deteve-se na contemplação de um desses interiores, notando a mobília de razoável qualidade, a mesa posta para o almoço que se aproximava já, a televisão de bom tamanho, sintonizada num canal popular. Preparava-se para observar mais detidamente uma pintura que lhe captara a atenção, quando recuou com embaraçada alacridade ante o proprietário da casa em questão, que irrompendo de algum recanto interior lhe vinha dirigir a palavra.

Os fragmentários pedidos de circunstanciais desculpas foram atalhados pela bonomia do dono da casa, que sorridente de gosto, quase de ansiedade, lhe rogava satisfizesse sem peias a sua curiosidade, que entrasse mesmo, para melhor apreciar cada pormenor, e deles dizer de sua justiça. O Presidente velou o melhor que conseguiu uma agradecida recusa, mas tentou ainda assim vender-lhe uma porta, ou pelo menos a ideia de porta.

− Uma porta?, espantou-se o outro. Homessa, e para que quereria eu uma porta? Não é que me desse realmente muito trabalho ter uma porta, teria apenas de me lembrar de a fechar quando estivesse dentro e quando saísse, de a abrir quando quisesse passar, e de trazer comigo a chave, para não ficar na rua. Mas o que teria eu a ganhar com uma porta?

− O que teria a ganhar? Bem, suponho que ganharia privacidade, e também segurança. O tipo de coisas que as pessoas pretendem, sabe, quando compram uma porta. Veja a sua casa, por exemplo: está sentado à mesa a jantar, sente-se aborrecido e desabafa com a sua família; passa um desconhecido e vê o que o senhor janta, ouve a sua queixa, inteira-se da sua vida. Isso é coisa que lhe pareça bem?

− Honestamente não lhe sei dizer se me parece bem ou mal, acho que teria de esperar até que tal coisa realmente acontecesse, mas desconfio que ficaria à espera até às calendas gregas. O que de facto se passa aqui, a cada dia e todos os dias, é que ninguém liga às portas abertas, nem está realmente interessado em atravessá-las, ou sequer espreitar lá para dentro. As pessoas passam por casas abertas e olham em frente, encontram tudo à vista mas não querem saber. Suspeito mesmo que se alguém se desse ao trabalho de colocar o recheio da sua casa na via pública, toda a gente iria apenas passar como se a rua estivesse vazia. Ninguém se interessa, essa é que é a verdade, e não se precisam portas se não há quem as queira atravessar.

O Presidente agradeceu e partiu para fora desta história, sentindo-se um pouco mais sábio e bastante mais velho. A fábrica permaneceu encerrada, e a falência veio eventualmente a concretizar-se. Um curto parágrafo num jornal referiu ter a empresa encerrado as suas portas, o que não deixa de constituir uma imprecisão. A própria empresa havia já em tempos reconhecido a inutilidade das portas, tendo por decisão superior prescindido inteiramente das mesmas. A fábrica lá ficou escancarada, retendo no seu interior maquinaria e segredos tecnológicos e muitas outras coisas de inegável interesse, mas ninguém se deu ao trabalho de ir lá ver o que estava à vista de todos.

18/11/2009

SORRY, AMIGOS...

Desculpem, mas o tempo não nos larga, e a mim não me dá para nada. Fica um abraço, um veneno desfasado de qualquer tema, servo apenas do nosso lema: conto contigo, conto com todos:

DURBAN POISON

A impotência de dizer
surpreende-nos na inquietação
do dia a dia,

e por isso não há tempo a perder.

Se os homens se rebolam frenéticos
na confusão das esquinas,
a vida acontece com certeza
longe das conversas de café,

e por isso não há tempo a perder.

Se as palavras se enrendam indefesas
na teia das circunstâncias,
o melhor mesmo é caminhar
no silêncio das dúvidas,
ao abrigo das certezas dos outros.

Por isso, não há tempo a perder.

E se sentimos que apontam a dedo
o berro do bêbado que a plenos pulmões
rasga a noite na vaidade de ser livre,
o melhor mesmo é gritar como ele
e nunca trocar o sonho
e o veneno
e a vida
por um pedaço de carne bem comportado.

Porque o tempo passa
e não há tempo a perder.

Força aí. A 27 não vou poder estar.

17/11/2009

Nunca mais te quero ver

(Virou as costas e saíu)

E quando ela se fechou, um silêncio oco do tamanho de um caixão ecoou persistente como um diapasão vibrando em ondas subsónicas.
A mesma sensação residual entóptica de quando olhamos para o sol e em seguida fechamos os olhos, só que agora aplicada ao som ou à ausência dele. Ainda assim densa e intragável revoluteando, marcando uma presença incontornável, numa dor permanente.

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( - Nunca mais te quero ver)

Desenroscou o frasco que fez aparecer do fundo da mala e derramou sobre os seus próprios olhos.
Como num ritual acabado sentiu-se que tudo tinha sido dito.
Nem um ai, nem uma explicação, como um absurdo plenamente assumido apenas: nada mais.
Virou as costas e saíu.

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( - Espera )

- Não insistas, porque quando eu disser que não mais te quero ver, assim acontecerá.
- Não saias por essa porta, preciso de ti.
A chantagem emocional a crescer, daninha, na máxima força, como um vulcão prestes a rebentar.
- Nada mais temos a dizer um ao outo.
- Ainda não. Há muito por discutir. O que eu fiz pode ser reparado...
- Nunca mais te quero ver.

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( E agora uma mão no trinco da porta sublinhava uma iminente fuga)

- Uma vez que o dizes, reparo que só esta porta me separa deste momento sufocante e do nojo que é a tua presença.
- Tenho maneira de te explicar o que aconteceu.
- Nada há a explicar quando a evidência se derrama com tanta precisão.
- Espera...

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A porta contemplara tudo, como uma barreira de gelo, entre um presente calcinado e um futuro evaporado.
O que acontecera era por demais incompreensível, até para quem assistia.
- És horrendo...
- O que fiz não tem perdão, é certo...

E agora uma mão no trinco da porta sublinhava uma iminente fuga.

08/11/2009

Porta

Lassa

trago à porta

abandonada

a personalidade.

Desobrigada, embora o adeus estivesse há muito exonerado,

desencaixilho, com a antecedência de uma parteira que nunca pariu,

o enferrujado ferrolho desse prodígio-instante.

Mergulho o rosto imóvel nessa fresta

e ao respirar no intervalo dessa inauguração, antes de envelhecer,

desenho um outro começo, sem metáforas ou topografias,

uma aurora no rasgão do sem tempo ou memória.

Comprazo-me no frio desse orifício,

demoro-me

alongo o calendário da despedida à medida cega em que embalo a hidropisia,

acrescento os meridianos da sentença prescrita,

e logo a seguir, nessa homilia incontaminada da viagem

sobreponho as feridas do nascimento sem remendos

e, ao corrigir os delírios da confusão mental num só golpe de dança,

lembra-me o corpo

com pressão e gravidade

que, à revelia, ganhou uma senha mensal

para essa mesma ombreira triunfal.

Digo-lhe, não sem alguma irascibilidade,

e sem rosto (que estava ocupado em ser livre, ainda que preso nesse férreo hiato)

que para expiar a identidade,

é mister abdicar do esqueleto, sepultar a carne e atirar fora a densidade.

Pensara (ainda de cabeça atravessada na travessia): agora sim principio o anonimato!

Insatisfeito com a recusa, esgrime o corpo um arremesso contra parte de si

sem acordes lúgubres

seguiu as vozes que de fora gritavam que para ser montanha intacta

importa mais jugular o ardil, o embuço nessa incólume passagem.

Testemunha objectiva de fora de mim,

afastara-me em anúncio vagaroso,

e, do lado direito do só-corpo-que-se-queria-eterizar,

mirava o metálico desejo daquele se anular.

Do lado esquerdo da só-cabeça-sem-corpo-que-corpo-não-te-avisto,

esboçara-se, ainda que com algum esforço, um tácito pacto de renúncia arredada

e aquela em vão se lançou para essa outra morada

onde presa ainda não se emancipara.

De frente, a personalidade desprotegida,

sem medo da queda ou da salvação,

esquivou-se, sem desculpas ou demoras,

por esse atalho espontâneo da perpétua perdição.

Decidi, desde então, receber por inteiro todo o corpo,

procrastinar a mente e abrir o embude dessa porta-coração.