12/12/2010

Limiar

«Ver: aos onze anos de idade, perdi o dom de ver. Sobrou-me o dom de ouvir. E de pegar. De intuir e de farejar. Dons outros para o mar enorme dos entendimentos.» (“A voz da mulher do lado”, conto de Paulinho Assunção)


A gente aprende a ver. A gente aprende que ver também se aprende com os olhos que há, com as lanternas que sobram dos outros sentidos.

Nas noites de todos os dias, o silêncio permanece às escuras. O leito é grande, muito grande, excessivamente grande para os poucos metros quadrados da alcova. Como um rio cujas margens se não tocam nunca.

Esta noite, porém, terá uma sorte diferente. Será uma noite polar, e quem lá se acama vai saber o milagre da luz, dos raios de luz que há no alvoroço das mãos.

Ela chega-se. Ele chega-se. Tocam-se ambos na mudez da cegueira.

Com a ponta dos dedos, a gente viaja, a gente navega, a gente perde-se, a gente encontra-se. A gente descobre a orografia da vida, a geografia da alma.

À altura do umbigo, faz-se dia. Limiar. Um pontinho, no tempo dos corpos.

03/12/2010

Um tempinho

Subi ao sonho como à montanha.


Do cimo do sonho a paisagem é quase sempre mais desafogada e mais etérea, como na gávea de uma caravela. As nuvens tocam-se com os dedos e a alma cola-se ao céu como uma estrela-do-mar.


Do alto da serrania avisto o oceano ou a ilusão dele no horizonte. Não diviso as ondas nem a praia de areia espelhada, mas adivinho a escuma que emerge e sucumbe nas margens do olhar. Era capaz de jurar que todo aquele branco é de neve e que a brisa que corre é de natal, só porque é dezembro.


As falésias de outrora volvem-se sombras de campo. Quimeras.


Desço agora pelo acordar do sonho à montanha, atravesso o fim de tarde. Um geodésico vale com renas à solta e no sopé um trenó ao abandono. É o que resta de um pontinho no tempo.


Um tempinho de luz.