29/01/2010

Sonhos sobrantes

A vida bem pode ser isto mesmo: espaço entre nada e nada, uma caminhada, breve ou longa, em simulacro. Uma estrada cujo início desconhecemos, por não termos memória capaz, uma estrada cuja curva não evitamos por não a divisarmos. O poeta sabia disto como poucos, e afirmou-o, tendo nele apenas todos os sonhos do mundo.
E embora a gente não acredite nas palavras, ou faça por não acreditar totalmente nelas, acaba por admitir um bocadinho, às escondidas, que alguma verdade há-de haver em haver mistério.


Os passos que palmilho pela
fímbria da praia
por entre gestos inusitados que
me desvelam os segredos
apagam-se breves e
mudos

os anseios que alindo pela
fúria das águas
por entre vagas quiméricas que
me ateiam a sede
somem-se doídos e
mansos

os caminhos que cruzo e
sei
nunca me trazem de volta nem
nada


Se ao menos sobrassem os sonhos…

21/01/2010

O prometido

Íamos no nono dia

Do nono mês

Era o nono da fila

Em demanda do tesouro

Nove vezes prometido

Ninguém sabe quem é

Ninguém sabe onde mora

Um dia

(dizem)

virá

O nono no riso

E o nono de muito siso…

16/01/2010

O Nono Corredor

Eram nove corredores. Apenas isso, nove bocas rasgando de breu as paredes rugosas da caverna, nove túneis de mistério, promessa e ameaça. O nono, tinham-me antes avisado, era de todos o mais tenebroso, um horror sem nome que a todo o custo urgia esquivar. Experimentei então o primeiro dos túneis, mas tinha dragões.

O segundo era um caminho aprazível, passagem luminosa e acetinada, mas que em cada curva estreitava, até que me foi por fim impossível prosseguir. Retornei sobre os meus passos, e tentei o terceiro corredor, escura cova de cuja humidade pingavam morcegos viscosos, que se agarravam às minhas roupas com garras pequeninas e invejosas. O quarto túnel era um lamaçal, onde cedo desisti de patinhar.

A quinta passagem foi promessa logo atraiçoada às primeiras curvas, e a sexta desiludiu sem quase chegar a prometer. Enveredei então pelo sétimo túnel, que era longuíssimo. Era também o mais variado de todos os corredores, e tanto atravessava lanços resplandecentes de risonha claridade, como logo mergulhava em extensas léguas de escuridão, a escuridão de um crepúsculo sujo e mal apagado. A cada volta do caminho ia encontrando larguezas que alegravam o coração, para na esquina seguinte me roçar em paredes que se estreitavam, no desejo maldoso de me tolher a passagem. Mas prossegui, e acabei finalmente por avistar a luz, a famosa luz ao fundo do túnel.

Parecia-me familiar, aquela luz, e a suspeita que insidiosa me foi possuindo, enquanto a luz crescia para mim, acabou por se resignar à indesmentível confirmação: a saída do sétimo túnel era simplesmente a entrada do oitavo, e eu estava de novo na caverna. Restava-me o nono.

Hesitei, presa de um receio sem nome, o receio de quem não sabe ainda que coisa recear. O nono túnel, bem me lembrava de mo terem dito, é de todos o mais terrível, um pesadelo mais negro que as piores fantasias que possas até aí ter experimentado. Mas não via que outra coisa podia fazer, em semelhantes circunstâncias, e entrei no nono corredor.

Era o mais bonito de todos, e não houve volta que me não deslumbrasse, nem trecho onde me não detivesse em contemplação. Esquecera já os túneis que passara antes, esquecera o horror e o medo, esquecera tudo menos a expectativa do que traria cada nova curva.

Tudo me voltou de chofre à memória quando dobrei a última esquina do túnel. E com a memória, chegou igualmente a compreensão de que a jornada findara. Os avisos eram verdadeiros, não havia exagero nos augúrios. A verdadeira essência do terror, o bloco de gelo em que a alma por destino último se encolhe, estavam ali, puros e sem disfarce, após a última esquina. O nono túnel terminava numa parede fria, lisa e inamovível.

12/01/2010

O meu irmão

- O meu irmão, em tempos, fazia esta avenida, cruzando as dez ruas que a atravessam, em cinquenta e sete segundos.


- Não acredito. Impossível.

- Testemunhado por bem mais de uma dezena de assistentes. Na altura, ele angariava admiradores a um ritmo quase tão alucinante quanto a velocidade com que atravessava essas ruas.

As apostas faziam-se sempre por volta da meia-noite, na esplanada do Arcada, por entre o arrumar das cadeiras e o varrer do chão, enquanto se emborcava as últimas cervejas. Nunca zarpava antes das três e meia que era quando o camião do lixo descia o último troço da alameda e quando a noite arrefecida amainava o fragor do movimento. Até lá, conversava-se acerca de tudo que pudesse ter uma ligação a desportos motorizados, mas sobretudo com ênfase na dinâmica dos motores e nas preparações das máquinas.

Mal o camião curvava na décima rua para a praça e o barulho se sumia no sorvedouro do silêncio nocturno, instalava-se um certo zunido residual.

Era a altura exacta que ele escolhia, no meio de um dramatismo previamente estudado, para saltar através da janela aberta do carro. Pendurava as mãos no tejadilho, num salto acrobático que fazia lembrar os forcados pegadores de touros quando saltam para a arena – dizia que era como os pilotos das corridas Nascar. Calçava um par de luvas de dedos cortados, em pele fina de uma extravagante cor laranja, - dizia que era para dar sorte - lançava um sorriso desafiador e depois arrancava deixando muita borracha transformada em fumo e uns guinchos que perduravam na memória, muito depois de ter cruzado a décima rua.

Invariavelmente, todas as terceiras sextas-feiras o fazia. Até que, numa noite, houve um corte no sistema eléctrico, no nono cruzamento e os semáforos entraram em laranja intermitente. Ele teria que ceder prioridade a quem se apresentasse pela direita e dessa vez o camião do leite descia a rua com toda a confiança pois tinha a prioridade, apesar dos semáforos laranja.

Da precisa cor das luvas de dedos cortados que o leiteiro logo vislumbrou por entre os ferros retorcidos.