- Já viste bem aquilo? – perguntou a mulher indignada.
- O quê?
- Aquelas duas exibicionistas?
O casal, de meia idade, estava sentado numa esplanada, numa tarde estival, e a mulher referia-se a duas outras, que estavam numa mesa próxima, sendo obviamente, também elas um casal. Estavam de mãos dadas e uma delas acariciava a face da outra. Tinham os rostos iluminados pelo sorriso dos amantes e resplandeciam felicidade.
- Olha, conheço uma delas. – afirmou o homem.
- Conheces?! As pessoas com quem tu andas metido. Deve ser naqueles dias em que ficas a fazer serão no banco.
- Não sejas tola! A mais magra é filha do gerente lá do banco.
- Coitado… que desgosto. Já viste bem, ter uma filha assim e que, ainda para mais, anda aí a exibir-se. Que vergonha.
- Tu exageras, não estão a fazer nada de mais.
- Não estão?! Aquilo até devia ser proibido, duas mulheres… Ai virgem santíssima!
- Oh Gabriela, as raparigas só estão de mãos dadas. E olha que o pai gosta muito da namorada da filha.
- Credo! Como é que isso é possível? Ele sabe e gosta?!
- Ele contou-me que teve um grande choque ao início. Eu compreendo, ninguém está à espera que a filha seja assim.
- Deus nos livre e guarde! Ainda bem que as nossas são normais.
- Queres saber ou não? Estás sempre a interromper.
- Conta lá.
- Acho que elas estão juntas já há uns três anos. A outra é enfermeira. A Marisa, a filha do meu gerente, teve um acidente muito grande, no princípio do ano passado. Um condutor bêbado despistou-se e foi contra ela. A rapariga esteve internada seis meses. E a outra, foi de uma dedicação extrema.
- Também era melhor, sendo enfermeira.
- Ela é enfermeira, mas não no hospital onde a Marisa estava. Ia trabalhar e, quando saía, corria para o hospital e ficava lá as noites inteiras (ou os dias, conforme estava de serviço de dia ou de noite). Só ia a casa tomar duche e mudar de roupa. Nunca a largou. E quando ela teve alta, meteu férias para a poder acompanhar na recuperação.
- Olha, não sei se farias isso por mim! – exclamou a mulher.
- Sinceramente, também não sei se faria tanto…
- Realmente, as mulheres têm outra sensibilidade…
- Agora já as defendes?!
- Não estou a defender, mas as mulheres são muito mais dedicadas que os homens; Quando amam, dão mesmo tudo.
- Não te entendo, ainda agora estavas a dizer tão mal…
- Se entendesses é que eu achava estranho. Nunca me entendes. – disse ela irritada – Olha, elas é que têm razão. Pelo menos não aturam homens irritantes e insensíveis como tu!
4 comentários:
Isto é que é alta produção. Genial o toque do deslizar para terrenos movediços do diálogo. Cena de uma vida real a todo o vapor. Difícil de pintar num pequeno espaço o contraponto de gerações; de concepções; de amores.Feito com mestria.
Admiro cada vez mais o deslizar constante da opinião feminina... Vá, estou a brincar! Certo é que o diálogo corre com toda a naturalidade, o que não é nada fácil.
Cá para mim, o homem queria simplesmente alcançar o céu e teve uma parapraxia: o que ele pretendia inicialmente seria um Kit de acesso à santificação e respectivo ícone.
Escrever diálogos com tanta versatilidade não é para todos.
E é que não consigo. Palavra de honra, não é coisa de que me gabe; eu até sei (supostamente) escrever uma coisa ou outra, sem o que me não permitiria participar neste blog. Mas não consigo achar comentários para os teus textos, é que não consigo mesmo!
Sobre este, por exemplo, ocorreu-me dizer que descreve o mundo real. Mas nem isso é verdade: descrições do mundo real sobram por aí, mas o que escreveste é algo de diferente. O teu texto é o mundo real, na sua feia estupidez e condescendência e crueldade inconsciente (que é o pior tipo de crueldade, e, como dizia o Woody Allen, nem sei se ainda se fabrica). O teu texto consegue ser horrivel, o retrato de uma realidade repelente. E não é fácil escrever um texto desses. Muito menos comentá-lo.
Continua assim, a escrever textos destes, e a deixar-nos às aranhas para te responder ao irrespondível. São precisos muitos mais, são precisos muitos.
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