12/12/2010

Limiar

«Ver: aos onze anos de idade, perdi o dom de ver. Sobrou-me o dom de ouvir. E de pegar. De intuir e de farejar. Dons outros para o mar enorme dos entendimentos.» (“A voz da mulher do lado”, conto de Paulinho Assunção)


A gente aprende a ver. A gente aprende que ver também se aprende com os olhos que há, com as lanternas que sobram dos outros sentidos.

Nas noites de todos os dias, o silêncio permanece às escuras. O leito é grande, muito grande, excessivamente grande para os poucos metros quadrados da alcova. Como um rio cujas margens se não tocam nunca.

Esta noite, porém, terá uma sorte diferente. Será uma noite polar, e quem lá se acama vai saber o milagre da luz, dos raios de luz que há no alvoroço das mãos.

Ela chega-se. Ele chega-se. Tocam-se ambos na mudez da cegueira.

Com a ponta dos dedos, a gente viaja, a gente navega, a gente perde-se, a gente encontra-se. A gente descobre a orografia da vida, a geografia da alma.

À altura do umbigo, faz-se dia. Limiar. Um pontinho, no tempo dos corpos.

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