18/02/2010

You Have No Mail

Graças às novas tecnologias, já é possível reunir todas as formas de comunicação num simples dispositivo de bolso. Na palma da nossa mão juntamos a voz e o texto, o Messenger e o Gtalk, o mail e a internet… tantas formas de ouvir o silêncio…

Quando chegou, encontrou a casa vazia. Isso já era normal, a casa estava vazia desde que ela partira. Não, isto não é inteiramente verdade: a casa estava vazia muito antes disso, estivera vazia desde que ela deixara de lá estar, embora continuasse a habitá-la. Mas agora a situação resolvera-se, e ela habitava outra casa qualquer, pouco interessava qual, nada interessava onde. Depois de tantos anos em vão, a casa estava finalmente vazia.

Melhor assim, pensou, antes esta verdade de uma casa efectivamente vazia, do que viver a ficção de uma família que não existia já, de uma relação que há tanto tempo deixara de o ser, isso se alguma vez tivesse chegado a sê-lo. Pela força do hábito, consultou o ecrã do telemóvel, que não tinha mensagens. Com um encolher de ombros, tirou do frigorífico uma refeição já preparada.

O telemóvel andava com manias nestes últimos dias, e esquecia-se de verificar o mail, talvez fosse melhor forçar a ligação. Fê-lo mecanicamente, sem saber que correio esperava receber, ou quem de resto lhe escreveria, e não constituiu grande surpresa que nada viesse em retorno. Não deixou todavia de consultar amiúde o diminuto ecrã enquanto comia o que quer que fosse que retirara do frigorífico, nem sabia bem o quê. Não que isso importasse realmente.

A casa estava realmente vazia, oca de gente e espíritos. Mesmo o fantasma que um dia fantasiara por entre aquelas paredes tinha partido para outras paragens, deixando apenas uma vaga saudade da sua não-existência. Disparate, pensou, um fantasma não é companhia, e de resto os fantasmas não existem. Consultou de novo o telemóvel, sem que qualquer novidade lhe viesse alterar a existência.

Num desespero de vazio enviou umas quantas mensagens escolhidas, bem como um ou dois mails. Nada de muito óbvio, nada que explicitamente convocasse uma resposta que estava ciente que não viria. Publicou ainda um post recôndito, e permitiu-se fingir que não estava à espera de nenhum comentário. Verificou novamente o telemóvel antes de se deitar. Como sempre, nada!

O fantasma que um dia habitara a sua casa apareceu nessa noite, mas vinha apenas buscar algumas coisas que deixara esquecidas, e não se demorou.

17/02/2010

Vergonha(s)

Arrasto ainda na memória aquela tirada que tantas vezes me arremessavam sem mais nem porquê, era eu miúdo de escola ou pouco mais. Bastava que me negasse (enfim, que me desculpasse) a cumprir um ou outro mandado com o sábio argumento de que tinha “vergonha” – como ter de ir a casa da Tia Rita, da Tia Saudade ou do Ti Domingos levar um recado, ou então ir à loja do Salgado ou do Salvador ou do Fernando Simões ou da Irene Mona comprar um punhado de qualquer coisa –, e zás, lá tinha que ouvir um «Vergonha é roubar!».


É claro que deveria haver outras más acções igualmente vergonhosas para além de subtrair bens alheios, mas esta era sem dúvida uma das mais sérias lá por casa, sobretudo para a boa formação de uma criança como eu, que, na altura, não pensava noutras mais ousadas, como agora conheço e são, afinal, muito comuns em gente adulta.


Também aprendi desde cedo que “Quem tem vergonha, passa fome” – variante de outros ditos que nos dias de hoje são apanágio de alguns autarcas mais temerários –, e que por isso era preciso por vezes passar a perna aos outros colegas-putos da escola e da vizinhança, que a esperteza era o escape para quem aspirava igualmente abrir bem e cedo os olhinhos, como os coelhos.


Porém, quando se abria demasiado pronto a pestana, o responso era logo “Quem não tem vergonha todo o mundo é seu”. E isto dava para os dois lados, ora como elogio, ora como reprimenda, que uma coisa era arriscar, outra ultrapassar os limites do recomendável.


O que eu então não suspeitava, catraio ainda, é que a flexão em número, para além da quantidade, podia alterar em muito a qualidade, e para melhor. De vergonha para vergonhas era um salto gigantesco, um salto de nos fazer corar. Esta foi, reconheço, uma das muitas bondades que a escola me facultou, a de desocultar os mistérios da gramática. E a de ler, sem vergonha, coisas muito bonitas, de vergonhas modeladas.


Foi o caso de Camões, de Os Lusíadas, de um Canto quase todo espraiado por idílicos campos com assediantes vergonhas à solta, ou o caso de Pêro Vaz de Caminha, da sua Carta do Achamento da Terra de Vera Cruz, de certas decorosas passagens. Desta última jóia, repescamos estas:


“Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.”


“Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até ao quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo ela sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma.”


“Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.”


E se suspeitas houvesse nestas cândidas leituras, um carnaval bastaria, destes que nos chegam de terras do “achamento”, para nos convencer das generosas vergonhas que por ali abundam, em bundas e peitorais atributos, e que, de tão apetecíveis, não há vergonha que nos valha. Vergonha, mesmo, é não vê-las!

03/02/2010

Umas férias de tudo

Esta poderia ser a história do homem que era transparente, mas creio que, como história, terá de ficar para outra altura. Esse deixava passar quase tudo ou tudo passava por ele, sem que sequer o vissem. Oposto do homem transparente era um meu amigo, niilista.


Um dia reparou que eu ficava muito tempo a fazer nada e interpelou-me perguntando se eu estaria disposto a trabalhar para ele.

- Trabalhar para ti, nem penses, mas em sociedade aceito.

Ele concordou com os termos da minha proposta e começámos logo a fazer nada os dois.

As pessoas passavam e admiradas tornavam a passar e nada. Nós ali, sempre ali. Aquele local era óptimo para fazer nada. Carradas de nada, de sol a sol, e a plena satisfação do dever cumprido.

Ao fim do dia, mal nos levantávamos e como boa sociedade, combinávamos quase sempre ir tomar uns copos, discutindo se mudaríamos de local no dia seguinte, apreciando o filão que tínhamos deitado a baixo, adivinhando as suas potencialidades.

Calma tarde, os copos que nos puseram em frente, no balcão a que nos tínhamos encostado, permaneceram vazios e aquela sensação de workaholic instalou-se-nos de tal modo que, quando a casa fechou, não apetecia sair de lá. Excelente mina, nem sei se ficámos a marcar território ou se zarpamos dali para outro lado, o certo é que à mesma hora do dia seguinte lá estávamos encostados ao balcão em frente a dois copos igualmente vazios e foi um começo de um ritual a perpetuar-se.

Enquanto fazíamos nada, as ideias iam e vinham como os transeuntes de todos os locais onde nos estabelecíamos. Uma delas apareceu, sentou-se connosco e foi-se instalando:

- E se, com toneladas de nada recolhidas, nos puséssemos a vendê-las?

Foi assim que nos começámos a dedicar de corpo e alma ao ramo comercial.

Por tudo e por nada, sobretudo por nada, lá estávamos nós a vender.

E vendíamos, vendíamos. É certo que nada vendíamos mas era uma boa sensação. Vender nada tornou-se uma razão de vida e em franca expansão.

O êxito foi tal que passámos a exportar.

Já tínhamos vários clientes para lá da fronteira quando decidimos abrir franchisings por todo o lado. E aquilo é que era, não havia mãos a medir.

A propósito de fronteiras, até tenho uma boa para vos contar.

No início, quando o negócio ainda era artesanal, internacionalizar a coisa ia dando para o torto. Estava eu tentando atravessar a fronteira para expandir o mercado quando um guarda- fiscal mais teimoso perguntou:

- O que é que leva aí?

É óbvio que estão mesmo a imaginar a minha resposta:

-Nada.

Pois, nem queiram saber, fui inteiramente revistado da cabeça aos pés e quanto mais se davam conta que o que eu transportava era nada, mais se punham a espiolhar. Até lavagem ao estômago me fizeram, o que foi um pouco doloroso pois eu nada comia desde há uns dias para ir bem carregadinho.

- Este nada tem – deixemo-lo passar - disse o menos teimoso.

Até que lhes atirei:

- Se tivessem acreditado que eu nada tinha comigo escusávamos de estar aqui a perder tempo.

E lá segui eu a fazer nada para a terra dos outros.

Uns anitos mais e tornou-se uma praga.

Havia nada por todo o lado, cansado de fazer nada e de ver nada após cada esquina dobrada tentei fazer umas férias de tudo.