17/02/2010

Vergonha(s)

Arrasto ainda na memória aquela tirada que tantas vezes me arremessavam sem mais nem porquê, era eu miúdo de escola ou pouco mais. Bastava que me negasse (enfim, que me desculpasse) a cumprir um ou outro mandado com o sábio argumento de que tinha “vergonha” – como ter de ir a casa da Tia Rita, da Tia Saudade ou do Ti Domingos levar um recado, ou então ir à loja do Salgado ou do Salvador ou do Fernando Simões ou da Irene Mona comprar um punhado de qualquer coisa –, e zás, lá tinha que ouvir um «Vergonha é roubar!».


É claro que deveria haver outras más acções igualmente vergonhosas para além de subtrair bens alheios, mas esta era sem dúvida uma das mais sérias lá por casa, sobretudo para a boa formação de uma criança como eu, que, na altura, não pensava noutras mais ousadas, como agora conheço e são, afinal, muito comuns em gente adulta.


Também aprendi desde cedo que “Quem tem vergonha, passa fome” – variante de outros ditos que nos dias de hoje são apanágio de alguns autarcas mais temerários –, e que por isso era preciso por vezes passar a perna aos outros colegas-putos da escola e da vizinhança, que a esperteza era o escape para quem aspirava igualmente abrir bem e cedo os olhinhos, como os coelhos.


Porém, quando se abria demasiado pronto a pestana, o responso era logo “Quem não tem vergonha todo o mundo é seu”. E isto dava para os dois lados, ora como elogio, ora como reprimenda, que uma coisa era arriscar, outra ultrapassar os limites do recomendável.


O que eu então não suspeitava, catraio ainda, é que a flexão em número, para além da quantidade, podia alterar em muito a qualidade, e para melhor. De vergonha para vergonhas era um salto gigantesco, um salto de nos fazer corar. Esta foi, reconheço, uma das muitas bondades que a escola me facultou, a de desocultar os mistérios da gramática. E a de ler, sem vergonha, coisas muito bonitas, de vergonhas modeladas.


Foi o caso de Camões, de Os Lusíadas, de um Canto quase todo espraiado por idílicos campos com assediantes vergonhas à solta, ou o caso de Pêro Vaz de Caminha, da sua Carta do Achamento da Terra de Vera Cruz, de certas decorosas passagens. Desta última jóia, repescamos estas:


“Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.”


“Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até ao quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo ela sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma.”


“Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.”


E se suspeitas houvesse nestas cândidas leituras, um carnaval bastaria, destes que nos chegam de terras do “achamento”, para nos convencer das generosas vergonhas que por ali abundam, em bundas e peitorais atributos, e que, de tão apetecíveis, não há vergonha que nos valha. Vergonha, mesmo, é não vê-las!

1 comentário:

Maria Ribeiro disse...

"Conto Contigo": perfeitamente de acordo! Mas os pobres do "tempo do achamento" se poisassem ,por aqui, na Mealhada, por exemplo, cairiam para o lado e ... Adeus , CARNAVAL!
VIVA A "PINGA" eo LEITÃO!ABRAÇOS de
LUSIBERO