27/03/2009

Dar o corpo ao manifesto


Longe de ser um corpo sensual, eu tinha no entanto, um corpo perfeito. Perfeito, no que se consideram medidas criteriosas e socialmente aceitáveis. Sempre tentei ter uma relação amigável com o meu corpo, mas só de longe a longe é que experimentávamos uma agradável simbiose.
Até agora ainda não descobri se era o meu corpo que me obedecia ou se era eu quem tinha o papel de decisivo nas acções e nos pensamentos. Achei-me muitas vezes contrita com ele, principalmente nas dores físicas, na doença, ou, quando simplesmente, não me apetecia carregá-lo comigo para todos os lugares. Era sempre assim: se eu queria ver o mundo ou estar com alguém ou apenas estar sozinha, ele estava sempre presente, estóico fingindo que não me conhecia pretendendo que eu me esquecera dele como fardo. Contudo, não poderei negar que neste tempo infinito convívio ele já me proporcionou bons ensejos. Mas ainda assim, continuava a ser fatigante: lavá-lo todos os dias, manter a pele com ph equilibrado e bem oleada para disfarçar as agressões externas a que ele estava permanentemente sujeito. Alimentá-lo, agasalhá-lo com camadas de roupa que me atrapalhavam os pensamentos. Quantas noites, ele não se venceu pela insónia obrigando-me a adormece-lo com chás ou outras drogas. Sempre tentei dar-lhe o que me exigia, mas para ele, tudo era insuficiente. Em resultado castigava-me revelando o meu medo, a fragilidade, a vergonha ou outra expressão de embaraço. Eu combatia-o da forma que podia e sabia, mas verificava que meu combate era inglório por ser desigual.
A minha paciência não era sempre a mesma, por vezes era acometida pela ira e uma vontade tamanha de o ignorar para sempre. Mas reconheço-lhe soberania e inteligência, sendo que, não me resta senão obedecer-lhe para assim não sofrer represálias injustificadas.

Estávamos na época das insónias, fiz como de costume, droguei-o mas sem resultado. Provavelmente porque eu estaria a resistir contra o efeito da droga, enervava-me ter que lhe obedecer neste aspecto. Ele que comprasse a sua droga com o seu próprio dinheiro! Eu não beneficiava nada com estes pensamentos pois tinha a obrigação de o acompanhar em busca da sua própria paz, para consequentemente, ter a minha também.

Era de madrugada, chovia e fazia frio. Quando estávamos na rua eu deixei escapar um certo sorriso irónico por não ser apenas eu a única quem sofria. A minha irritação quando elevada era vingativa e quente ao contrário do que se pensa. Tinha apenas vestido um conjunto de fato de treino amarelo, cor que eu sabia que lhe desagradava. Ignorei-o quando ele ainda hesitou o passo dando a entender que queria voltar a casa para ir buscar o seu casaco castanho de felpa que tanto adorava.
Quando combinámos em sair não foi para ir a uma farmácia, porque sem receita médica ninguém nos venderia droga. O nosso acordo baseava-se numa ida ao The Tavern, uma discoteca/bar que ficava na de west end em Londres.
Quando chegámos fomos bafejados por uma espécie de ar sem ar, uma mistura de transpiração, luzes, cheiros difusos, fumo e vapor oral de centenas de bocas tendo como pasto uma atmosfera viciada.

Eu estava exausta, mas não tinha outra solução senão ajudar terminantemente o meu corpo a cansar-se. Ele quis dançar e beber, e eu, obedeci providenciando-lhe na perfeição uma imagem normal de quem está só. Ele sabia que eu estava contrariada, dizia-me para eu descontrair, deixar-me ir... mas ir para onde? eu apenas aspirava uma cama.
A madrugada avançava e ele sem dar sinais de cansaço. Eu sabia que dali a horas eu é que sofreria com isto tudo: iríamos estar invertidos, ele a desejar uma cama e eu a tentar concentrar-me para executar correctamente o meu trabalho, com tanta bebida era óbvio que se adivinhava uma valente ressaca. Para minha surpresa, ele deixava-me beber alguma água evitando assim uma maior dor de cabeça. Com tanto líquido era inevitável que eu o não carregasse de 5 em 5 minutos para a casa wc.
O acesso ao wc era pitoresco, as portas eram iguais àquelas que vêem nos filmes de cóbois, abriam ou fechavam de par em par. Às vezes era complicado e até perigoso se alguém se cruzasse, podendo entalar os dedos ou mesmo o nariz. Mas esse facto importava mais ao meu corpo do que a mim, eu desfrutava do seu sofrimento como forma de o fazer desistir da bebida.
No wc fomos vedados por uma rapariga ebriamente bem disposta que perguntou se eu procurava alguma coisa. O meu corpo ficou hesitante enquanto eu, lhe respondi que estava à procura de mim mesma. Ela sorriu e disse que eu não estava ali, se estivesse, ela já me teria visto antes. O meu corpo começou a agitar uma das pernas como que a dizer-me que teria de urinar. Eu não queria acompanhá-lo, pois pressenti que a rapariga ainda me veria a ser útil. Dada a insistência da necessidade física, não tive outra alternativa senão ousar e pedir à rapariga que me esperasse por dois rápidos minutos.

Enquanto urinava o meu corpo tinha-me dito que não queria estar parado a falar, apetecia-lhe dançar. Eu calmamente disse-lhe para ele ter paciência e inventei que queria falar um pouco com a rapariga porque suspeitava que ela tinha droga. Ele concordou em manter-se quieto recomendando-me ainda assim, que não me entusiasmasse muito e não o esquecesse, disse-o com um tom de desdém e de ameaça, fazendo-me prometer que eu seria breve na minha vulgar sedução.

Enquanto lavava as mãos, vi pelo espelho que a rapariga continuava a sorrir.
Ao longo da minha existência nunca encontrei suficiente aptidão para falar de nada elevado, ficava-me por perguntar o nome ficando à espera do que sucedesse. Desta vez nem o nome lhe perguntei e ela fez o mesmo. Perguntou, isso sim, porque é que eu tinha uns olhos tão bonitos. O meu corpo reagiu de imediato – este assunto afinal era com ele. A sua questão colocou-me numa armadilha, eu não percebia se a questão era retórica ou não. E ela continuou a dizer que tinham uma cor indizível e eu pensei que ela estaria com alucinações pelo que bebera, mas não dei voz a esse pensamento, apenas respondi com um sorriso agradecendo o elogio. O meu corpo avançou para ela como a comunicar um certo magnetismo, eu não queria ser assim tão atiradiça, mas não conseguia controlar esse movimento. Assim, mais perto dela, verifiquei que também ela tinha olhos bonitos mas não lhe perguntei o porquê. Olhava-me com uma intensidade constrangedora elogiando-me agora a boca, perguntando-me uma vez mais, porque era assim tão bem desenhada e bela. Queria dizer-lhe que tinha resposta para essa pergunta mas era segredo, o meu corpo nunca assumiu aquela vez em que injectou uns miligramas de esticador. O meu corpo dengoso e insinuante chegou-se ainda mais à rapariga e ela que estava ébria mas não disléxica, colocou as mãos no meu corpo. E desta feita, como se não soubesse outro vocabulário, perguntou porque é que tinha um corpo tão aprazível apesar de não chamar à atenção. Este elogio foi tão eloquente quanto a proposta que lhe acabava de fazer: se o meu corpo te agrada, ofereço-to.
Ela inclinou a cabeça para trás mostrando as artérias inchadas do seu pescoço, mas eu não sabia bem o significado desse gesto: se ela estaria a analisar a oferta, ou se estava feliz e aliviada por encontrar um corpo, que com agrado, eu lho dava a troco de nada.
Por fim deu-me a sua morada, disse-me que estava acompanhada e não queria que a vissem sair com outra pessoa, precisava apenas de meia hora para comunicar que se iria embora. Anuí e combinámos encontramo-nos à entrada da sua casa.

Eu e o meu corpo ficámos ainda alguns momentos plantados no wc tentando cada um à sua maneira recompor-nos para nos fazermos ao caminho. Eu não queria dialogar com o meu corpo com receio de o dissuadir a mudar de ideias, e ele fez exactamente o mesmo pois estava cheio de lasciva prometida.
Felizmente que a rapariga morava perto, encontrámos a rua e depois a casa.
A noite de tão longa que ia tinha parado de chover, os degraus de entrada estavam secos e sentámo-nos neles: eu e a figura de fato de treino amarelo. Pelo menos duas meias horas passaram, o meu corpo começava a dar sinais de cansaço enquanto eu fingia adormecer para não lhe revelar o meu plano.
Quando a rapariga chegou pegou na figura amarela adormecida, carregou-a para dentro casa, enquanto eu, no sentido oposto, me esgueirava abandonando-os para finalmente apreciar a etérea liberdade de não possuir um corpo.

23/03/2009

CRÓNICA DE SONO E INSÓNIA

Penitencio-me, outra vez: este é ainda um texto antigo, reformulado só para quebrar o silêncio entretanto aparecido. É verdade que a vida nos atrapalha. Silenciar-nos é que acho que ela nunca conseguirá. Mas a escrita é tramada, outra verdade. Tento para uma próxima a história do Manel Cada Olho, que caberia melhor no tema em causa, se a conseguisse contar.
Abraço a todos.
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CRÓNICA DE SONO E INSÓNIA

Sono. Silêncio húmido. Tédio. Ninguém se passeia pelas sombras da cidade. Nada tuge, nada muge. Repentinos bramidos, trovoada longínqua. Presságios rasgando a luz o horizonte lá no fundo da Maxixe, do outro lado da baía. Breves suspiros de brisa carregam consigo mãos cheias de ar quente, despertando lânguidos suspiros na ramagem das palmeiras, enquanto me perco no meandro dos passos, no fio do pensamento, fantasma sem destino.
Um cão segue-me, fareja-me a meada dos sonhos. Não me teme. Não me liga. O faro sossega-o, fá-lo sentir a indiferença calma que só a confiança mútua gera por vezes, e o instinto assegura-lhe que como ele também sozinho lambo feridas, também enlevado acaricio saudades.
Um cigarro perto do mar. Perante o mar a solidão não se torna tão aguda, tão carcomida. As ondas embalam o abismo do céu, escuras, solidárias, constantes, sugerindo travessias e riscos, alísios e monções, outras paragens, outras viagens. As ondas são um apelo, talvez um grito que se receia e recusa. E a sua espuma, a espuma das ondas e dos dias, desfazendo-se branca na areia suja da praia ou do tempo, multiplica incansavelmente a verdade da terra, o cansaço da cidade.
A cidade. A cidade e os seus apesares. Apesar do enfado e da pouca vontade, da guerra e da pouca sorte, da esperança e da pouca fé ou das idas que se esperam e se não fazem, apesar de tudo e de nada, a cidade não nos priva assim tanto desta vida, deste embaraço.
Volto costas ao xicuembo negro da baía e sento-me na segura certeza de uma das pedras do esquecido cais. Ratos velozes disputam esquivos grãos de milho fugidos de atentas mãos que sôfregas os já haviam catado aquando do último descarregamento, derradeiro matabicho. As baratas deambulam indiferentes, cientes da sua imortalidade. Noutro canto, alguém lança num gesto infindável, num movimento paciente, uma outra vez uma outra linha à água. Num encolher de ombros sem sentido, também eu deito a beata ao mar, na inconsciente repetição do gesto infindável, do movimento paciente do pescador na outra ponta do cais.
Fixo então os olhos nos olhos do coração dela, da cidade tão mansamente entorpecida pelo sono, pelo tempo, perene cuidado. E é ao encará-la assim tão de caras, tão de chofre, que reconheço finalmente que a não possuo toda, que a sinto apenas. Acho que a desvendo. Será que a amo?
Outro cigarro, paciência. Vejo-a, escondida por detrás dos pálidos candeeiros da marginal, envergonhada por estar assim tão apagada. Vejo-a, afinal. Nua e irrequieta no sono. Caniço. Batuques na noite, altas bangas de sura, latas de água e suor, lenha e labirintos, ilusões e panos velhos, mamanas e pilões, coqueiros e mufanas, madalas e estórias, amores furtivos, sonhos fugitivos. Ou de pijama, esparramada entre lençóis e preconceitos. Cimento. Rádio Five no xirico, whisky de candonga, business e trabalhinho, directores e balalaicas, enferrujados carretos, amores furtivos, sonhos fugitivos. Pobre no caniço. No cimento pobre.
Mas atenção! Se a alegria ainda brota no antigo sorriso das mulheres, na roda de luz de um velho xiphefo, é porque na miséria deste agora sem dúvida longo, áspero, a esperança ainda reside decerto nas raízes aqui e ali endurecidas, de tão fundo enterradas na procura da água, na sede da vida.
A beata queima-me a ponta dos dedos no fio das palavras, espigas sem corpo. Largo-a com uma praga que uma rabanada transporta longe, empurrando a réstia de luz, breve a apagando. Um trovão clama bem alto o seu poder. Vibra o cais. Barcos rangem, assustados. Baratas e ratos escapam-se por entre grossas gotas de chuva. O cão abriga-se, rabo encolhido, debaixo de uma pilha de travessas de madeira. O pescador desapareceu por artes mágicas. As linhas retesam-se, assobiando o queixume do vento. Um fio de água arrasta impassível um impotente grão de milho, que cai na escura água do mar. Um rápido clarão deslumbrante acompanha-o, reaviva-lhe a cor de ouro, de suor, de pão, que o milho tem quando maduro na machamba que falta na xima das gentes.
Agiganta-se o temporal. A noite despeja agora uma espessa bátega de água, desabando tumultuosa sobre a terra, a insónia que me arrasa, me desperta. Entontecido, busco refúgio no abrigo ali mesmo onde se apanha o Mutamba, o barco para o outro lado, ali mesmo onde se espera. Um mufana dorme no frio mais cinzento do banco. Encolhido, procura proteger-se da chuva que lhe encharca o futuro. Nas quimeras do sono recria o aconchego do útero da mãe que lhe falta.
No seu sonho não há chuva, não há frio, não faltam machambas de xima. No seu sonho há palavras que se não dizem, frases que não se escrevem. No seu sonho há verdades que se berram alto.
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O Armindo alertou-me, e com razão, para a necessidade de esclarecer alguns dos termos presentes neste texto. Aqui fica, então, um pequeno "glossário":
- Balalaica: fato completo, de tecido leve, normalmente utilizado por burocratas e políticos;
- Banga: festa;
- Caniço: bairro de subúrbio;
- Machamba: horta, terreno cultivado;
- Madala: homem de idade;
- Mamana: senhora, mãe;
- Matabicho: pequeno-almoço;
- Mufana: rapaz, miúdo;
- Sura: bebida alcoólica, feita a partir da seiva do coqueiro;
- Xicuembo: feitiço;
- Xima: prato típico, feito à base de farinha de milho;
- Xiphefo: candeia artesanal
- Xirico: ave pequena; nome da única marca moçambicana de aparelhos de rádio fabricado.

02/03/2009

Ao Virar da Esquina

A espera, a interminável espera por algo novo, diferente. Uma fada que apareça, com a sua varinha de condão, e mude esta vida monótona e comezinha. Algo que transforme esta sobrevivência numa verdadeira vida.
Não se podia dizer que tivesse muitos problemas, que não sabia como resolver a sua situação. A questão era exactamente não ter. Não tinha alguém com quem partilhar aquela solidão ensurdecedora, nem um trabalho particularmente agitado, filhos que lhe dessem preocupações ou uma mãe velhinha e entrevada, de quem tivesse de cuidar.
As cartas+que recebia eram, essencialmente, contas para pagar, ofertas de crédito e outras mensagens publicitárias.
Há muito que mandara retirar o telefone fixo, que só servia para receber chamadas de telemarketing. A sua janela para o mundo era o seu computador, onde, através da internet, comunicava com centenas de desconhecidos, para os quais criava as mais diversas personagens.
Experimentou tudo; ser homem, mulher, médico, bombeiro, engenheiro, cozinheiro, etc. Cada vez que ligava o computador, decidia quem iria ser nesse dia. Poderia depender dos mais diversos factores; de algo que se passara no trabalho, de alguém com quem se tivesse cruzado na rua, de um filme que tivesse visto ou de uma noticia de jornal. Então, passava uns momentos a interiorizar a personagem, traçava mentalmente as linhas gerais da sua personalidade, do seu aspecto físico, da sua história de vida. Mergulhava no seu mundo virtual, já perfeitamente incorporado naquela pessoa que decidira ser. Entrava em salas de conversação, entabulava conversa com alguém que lhe despertasse a atenção ou que me metesse com ele. O tema não era previamente seleccionado, nem a sua opinião sobre um mesmo tema era constante. Não era a sua posição pessoal que transparecia, mas a da personagem que estava ali a representar. Por vezes estabelecia contactos com um teor mais íntimo. Teve mesmo vários relacionamentos, que duraram algum tempo, mas isso coloca-lhe alguns problemas de conflito de personalidade. Se era o engenheiro que inicia a relação, no dia seguinte, não podia ser o padeiro a aparecer. Havia dias em que tentava manter conversas paralelas; o bombeiro falava com uma pessoa, enquanto a bailarina falava com outra. Mas isto acabou por provocar sempre lapsos difíceis de explicar, com o bombeiro a falar do maravilhoso Lago dos Cisnes e a bailarina a referir-se a si própria no masculino.
Uma vez começou a falar com uma professora, trinta e seis anos, alta, cheiinha, mas sem ser gorda, que partilhava os seus gostos melódicos e literários. Nesse dia era o bibliotecário. A conversa foi fluindo sem qualquer dificuldade. Tinha a certeza da sua sinceridade.
As outras personagens foram postas de lado. Todas as noites tinham longas conversas através da internet. Dai passaram para o telemóvel. Como a voz dela era terna... Sentia um certo peso na consciência. Desde a sua primeira conversa, tinha contado varias mentiras; desde a profissão à sua aparência física, passando pela idade. À medida que se foram conhecendo, primeiro pelo computador, depois por telefone, ia-se sentindo pior, especialmente por estar seguro da sinceridade dela. Como quem não quer a coisa, foi-lhe dizendo que tinha engordado uns quilos, que estava um pouco envelhecido para a idade. Ela respondia-lhe que não avaliava as pessoas pela sua aparência, que o valor humano estava na essência. Ganhou coragem, convidou-a para um café. Primeiro, ela mostrou-se reticente, mas acabou por aceitar.
Marcaram encontro numa esplanada. Ela levaria uma revista “cor-de-rosa” na mão e vestiria um casaco vermelho; ele levaria uma rosa vermelha e usaria um fato azul. Estava muito nervoso, não sabia como ela iria reagir. Por certo ficaria decepcionada, pois ele não correspondia ao que tinha dito. Resolveu chegar atrasado, talvez pudesse ficar a vê-la de longe, seria mais fácil aproximar-se depois.
Acabou por se atrasar mais do que pensava, o metro avariou. Já não teve tempo de se posicionar estrategicamente para a observar, porque assim que entrasse na rua, teria logo a esplanada no primeiro prédio.
Ao virar da esquina reconheceu-a imediatamente. Aliás, a esplanada estava praticamente vazia, além dela, estava apenas um sujeito barbudo a ler um jornal. Lá estava a sua mulher misteriosa, casaco vermelho, revista “Maria” ostentada como uma bandeira, uma mini-saia (que quase não se via) amarela, que condizia perfeitamente com o seu cabelo louro oxigenado, com umas consideráveis raízes grisalhas. Umas meias de rede faziam as suas pernas parecerem dois rotis bem fartos, prontos a entrar no forno, encimavam um par de sapatos de salto alto, descascado, de plástico vermelho. O conjunto finalizava numa maquilhagem que juntava uma sombra azul-turquesa com um baton vermelho vivo, que se abria num largo sorriso.
- Leonardo?- Desculpe? Está a falar comigo? Deve estar enganada. Boa tarde.