30/04/2009

Saudade(s)

Confesso: há venenos que nos deixam ocos, vazios. Venenos brancos, de espuma abstracta, que nos sugam a Vida, a Verdade e o Sonho que nos sai do corpo (mas primeiro do olhar).
A divisória encontrava-se envolta em fumo denso e, como habitualmente, a noite demorava a nascer. O olhar dos transeuntes, inundado desse vapor branco, cegara, não pela noite que tardava, mas pelas profusas horas que teimavam em existir.
A claridade assumia um peso excessivo que, lentamente, trabalhava as pálpebras da cidade. Os ruídos, poucos, avocavam um som metálico e áspero. Os ouvidos da turbamulta contraíam a gravidade da procura do sentido. De fora, cada esquina adquiria um outro perfil, sempre sem sombra. As casas, ígneas línguas que lambiam a alabastrina cidade, tornavam-se pequenos refúgios ao longo das simétricas alamedas desarvoradas. Indistintamente, no cimo de uma outra alfama por definir, uma janela interrompia o horizonte lácteo. Dessa janela para dentro, esse mundo submergia.
Sal descia, voluptuosa, os degraus salomónicos de uma divisória enfumada que servia de antecâmara a essa janela, cujo condão (embora ninguém o soubesse) era perspectivar o inesgotado do Sonho. Descia-os como se, num só passo, transpusesse essa alba crepitação que a todos, sub-repticiamente, tumulava. [Sal] voltara a existir, mas sem nome. Essa luz clarão, do-no-mundo-e-fora-do-mundo, que esculpia o precipício da meia-noite, trouxera-lhe o ansiado indício.
Sempre amara o lado abstruso da realidade, enquanto cada partícula de luz a atravessava como uma convulsão. Prezara os cheiros subterrâneos, no labor minucioso de reconhecer todas as estações. Porém, jamais reclamara o Sol interino que faltava àquela cidade. Agora, incitara a sua súbita transformação: clandestina, em horas de alucinação, moveu-se para fora das vidraças, para fora de si própria. Nesse limiar mágico do voo, e de corpo todo rasgado, redesenhou as mitologias, sem a ilusão de as ter criado. Jorrou, oscilante, das estrelas outros compassos e diversas geometrias. No asfalto da sua pele, cintilaram amanheceres ferozes que rompiam o céu ácido da memória. A cidade ecoava noite.
Hoje pouco resta desse percurso, desse mar, desse Sal.
Ela passaria à frente de si própria. Silêncio.
Era noite, jubilosamente noite.
Em todos os outros, essa amnésia que não cuida saber dos auspícios da existência, alagava os fogos por atear, as cerimónias sacrais que não podiam ser verdadeiras, anestesiava os peitos nus dos poemas, não obstante a procura contínua de uma qualquer convicção que remanescia nos caudais da memória. Submetiam-se a essa nova vida, obedecendo às normas, aceitando todos os nomes, vozes e deuses. Todos se encontravam nesse estado encoberto e miasmático. Rumo ao centro da cidade, já não sabiam se perseguiam ou fugiam de algo. Aproximaram-se. Adentraram um espaço ou vórtice espesso e leitoso onde o Tempo, jazendo, respirava. Foram engolidos, sem interrupção. Perderam-se irremediavelmente nas armadilhas da nostalgia. Foram corrompidos pela medúsicas teias da melancolia.
Era noite, pesarosamente noite.
Apenas Sal se salvou. Apenas ela encontrou o fio de Ariadne nesse labirinto incompreensível chamado Saudade.
Confesso: há contravenenos que nos deixam absolutos, plenos. Antídotos brancos, de brilho insondável, que nos alumiam o Caminho, inflamam o espírito e erigem o Ver.

28/04/2009

E será verdade?

Os tribunais, não há que negá-lo, são sítios deprimentes. Em toda a história da humanidade, não se regista que tenha alguém sugerido fazer de um tribunal um lugar alegre e bem disposto, ou sequer pintá-lo de cores vivas. Pelo contrário, os tribunais são desenhados para induzir nos infelizes que a eles se sujeitam os mais tenebrosos estados de espírito. Tal coisa é particularmente verdadeira nos julgamentos de divórcio.

Ninguém caminha alegre para o seu divórcio, coisa talvez mais explicável que a alegria que tanto se usa por ocasião do matrimónio. Sendo ambos processos civis, o segundo reveste uma mais óbvia componente legal, mormente se é litigioso. E as componentes legais são coisas que, com toda a franqueza, acagaçam um bocado...

“Juro perante Deus que hei-de dizer toda a verdade e só a verdade”. Mesmo a republicanamente instituída possibilidade de delegar na sua própria honra o arcaico papel desse Deus lhe suscitava algumas questões – se já em tempos imemoriais havia descrido inteiramente deste último, acontecia-lhe por outro lado ser justamente o naufrágio da primeira aquilo que o trazia a cortes.

Fosse como fosse, era um juramento bonito. Até mesmo profundo, acabou por meditar, profundo e solene. Justamente a frase perfeita, a bacorada ideal a preceder este holocausto, a definição de mim próprio pela via judicial, o sacrifício destes tantos anos da minha vida no altar das circunstâncias. Seja então a verdade. Toda a verdade, e só a verdade, e assim me assista a graça desse estranho deus, que via de regra não tem mesmo graça nenhuma.

(O meu diabinho ainda coaxou um protesto em relação a “toda a verdade”, mas calei-o com um pano encharcado nas ventas, que isto de diabinhos é coisa que não requer senão firmeza. O juiz martelou afirmativamente o meu compromisso, e teve início a batalha pela verdade.)

O subsequente decorrer do processo acabou todavia por confirmar em todos os pontos a perspectiva cínica do diabinho, pois essa verdade total nem no próprio céu se usou jamais, sob razão maior de ser pelo menos um contrasenso. Estivesse aqui o velho Pôncio Pilatos, e seguro seria que o ouvissemos inquirir do magistrado, “Mas de que raio é que estás para aí a falar, com essa conversa de Verdade, e logo Toda, assim de uma vez, não querias mais nada. Toma”. (Não será muito bíblica a terminologia, mas é pelo menos plausível).

Ninguém mentiu, naquela sessão em que não ouvi nunca toda a verdade. Estava desde o início seguro que a não ouviria, nem que o meritíssimo estendesse as audiências pelos vinte e tantos anos que essa verdade durou, sobrevivendo quantas vezes à custa de umas quantas mentiras, não digo aqui se muitas ou se poucas, que não quero entrar por aí. Mas nem com esses anos todos lá iriamos, que as coisas gastam sempre mais tempo a relatar do que aquele que gastaram a acontecer.

Muita questão de facto foi ali debatida: quem pôs os cornos a quem, ou seja, questionando de forma mais técnica, se a requerida assistência foi devidamente prestada, os deveres cumpridos, ou pelo contrário negligenciada a paternidade, todas essas clausulas do contrato em apreço. Dito de outro modo, quem pôs os cornos a quem.

É um pormenor que sempre se exagera, esse dos cornos. Ora veja-se, dá um esperançoso casal início a um jubiloso matrimónio, que em devido tempo celebra sob a égide da vaca sagrada, tida em grande apreço por múltiplas culturas; orbita o mundo umas quantas vezes e, quando mal se precatam, porfia cada um dos nubentes no dissimulado esforço de enfeitar o parceiro com os adornos com que se exibia o esposo da dita bovina. Chegam por fim a vias de facto, e é mais certo que nascer o sol à direita de quem está virado para Braga, que o pomo da discórdia será a frondosa medida da armação que cada um dedicou à cara-metade. Ora, mesmo o boi, que sob o mais nobre apodo de toiro é corrido nas arenas, tem o discernimento de vislumbrar que o seu problema de bandarilhas decorre sobretudo do toureiro, e não do metal com que os ferros foram feitos. Mas a inteligência de um boi não está ao alcance de todos.

Também nós revolteamos sobre esse ponto, confesso-o. Acabámos por concluir que ninguém encornara o parceiro, medida talvez insalubre do que fomos nós dois.

Inquietei-me, confesso, com certas perguntas que poderiam muito bem ter sido feitas, perguntas de cuja resposta não me posso gabar.. Mas não, nenhuma dessas me foi inquirida, e a coisa veio a acabar na sentença, o que me têm dito ser frequente, nisto de tribunais.

A pancada do martelo, ao que parecia, fazia de nós duas pessoas apartadas, convivendo contudo em algo que dava pelo nome legalistico-abstruso de paternidade partilhada, forma jurídica de explicar que a Martinha era minha em certas ocasiões, da mãe em outras, de si própria vez nenhuma.

Saí do moderno edificio a pensar naquilo da verdade. É que eu vivi-a, essa verdade, e ela não esteve presente naquele tribunal, nem vejo como poderia ter estado. A Verdade é coisa fugidia, bem sabemos, e acaba por ser consensual que cada um tenha a sua. Nós lá nos safámos com o melhor arremedo que cada um podia arranjar, e a coisa por sorte não descambou. Mas a Martinha é que vai ter de viver com isso, não somos nós.

Não, nós apenas teremos de viver connosco, com a nossa realidade que aquele tribunal arranjou maneira de definir, por mais impossível que parecesse a tarefa. Com uma verdade de totalidade discutivel, mas que está decretada e transitou em julgado, sendo portanto para cumprir. Não sei mesmo se não seremos nós os mais traumatizados por tudo o que se passou.

Mas não, isso é um disparate. Nós somos adultos, e os adultos não se traumatizam. E essa é que é a verdade.

23/04/2009

VERDADE SEJA DITA

Assim ao leme do lápis, não é fácil navegar à bolina da verdade. Recicla-se o possível da espuma que se vai rasgando, e pelo meio fica a palavra, logo essa, única certeza. Fica, ou devia, porque no fundo resta tão só o sussurro dela. Todos a cortejam, a bordeiam. Uns fazem-lhe diligente cabotagem, outros dela se apartam em rumo de ponto cardeal único, poucos a beijam e raros a possuem, tresvario de risco.
O Manel Cada Olho, porém, era homem de palavra. Coisa assumida, coisa garantida. Teve foi a infelicidade de ficar pelo beiço, logo que encarou a Panca d’Ares. Moça do centro da vila, embora residente na Rua do Poço, em casa de telha vã junto ao muro da Quinta do Saloio, não era fruta de se deixar colher por um qualquer. Dizia-se até que nem sequer do ramo alguma vez tombaria. Mas o Cada Olho, perdido de amores desde a feira dos alhos, não deu o braço a torcer diante dos amigos e do diz-se por aí. Qual galã de fotonovela, tanto lhe rondou os ares e as missas ao domingo que acabou por levar a água do poço à sua horta. A Panca d’Ares tombou do ramo, perdida de madura e de pé contra o muro do Saloio, num final de tarde e folhas douradas a rodopiar ao lusco-fusco, regressava ela de rezar as vésperas.
Não foi muito repetida, a aventura. Em sabendo que o Benfica deixara de jogar em casa, Manel Cada Olho cuidou de todos os trapinhos, sem dar azo a murmuração. Desmaiada de cores, salvo no negro dos olhos e cabelos escorridos, a mulher era um anjo, a seu ver e amar simples. Contudo, a Panca d’Ares saíra à falecida mãe. Herdara-lhe o sobrenome, o hábito, o sangue e os humores. Saia preta plissada e camisinha branca, de casa para a igreja. Ou saia preta comprida e camisinha roxa, da procissão para a Rua do Poço. Acresce, ainda, que tal como à progenitora sucedera três vezes, também a si e logo à primeira lhe aconteceu a desgraça de não conseguir levar a bom termo a gravidez. Perdido o rebento, que na sua convicta devoção a Sto. António seria rapaz e futuro franciscano, embrenhou-se de vez num esconso sentimento de culpa, que Cada Olho, então ainda de poucos copos, mas muitos calos e leiras, desistiu de entender.
Passaram-se meses e meses de velas acesas, com cada vez mais santos nas paredes e cantos da casa, de S. Teotónio à Rainha Santa Isabel e da Beata Sancha de Portugal e irmãs ao então também Beato Nuno, passando por um longínquo S. Torcato e quase todos os lá de fora, mais venerados. O todo era completado de esmolas e terços e vigílias e ainda o jejum à sexta e a catequese ao sábado. Sem calor, Cada Olho esmoreceu. Eram distantes, os fins de tarde e as folhas douradas a cantarem vésperas. Uma feira de Sto. André trouxe-lhe, em boa hora, bom negócio e melhor bebedeira inicial. Vendeu a leira, desceu à casa de telha vã habitada de incenso e imagens, deixou metade do lucro no altarzinho de Nossa Senhora das Dores, subiu de novo ao largo, apalavrou uma motorizada vermelho berrante, entrou na Perdiz Branca e acabou a noite numa das bermas da Rua do Poço. Quando o fresco da madrugada e os galos o acordaram, seguiu em direcção ao Canal e à oficina do Ti Adelino. Com o sol ainda à sua esquerda, já rolava estrada fora e aos ziguezagues, sabe-se lá para onde.
Não foi longe. Ficou-se pelos confins do Lugar dos Moinhos, em casa térrea cedida por um primo, com vista para eucaliptais e apito de comboio de quando em vez. Trocou a lavoura pela talocha e a colher de trolha e só voltou à terra anos após, ao saber que a mulher se havia finado como uma virgem, sentada num banco corrido da sacristia, de terço nas mãos. Nem um santinho lhe testemunhara o passamento. Fora-se sozinha, agarrada à sua crença. O Manel Cada Olho custeou-lhe o enterro, mas não abdicou da sua razão. Afinal, a verdade tem sempre três lados, e a ele já pouco lhe importava qual o certo, se o seu, se o dela, se o outro, mar onde só em aflição se navega à bolina.
Do funeral foi direito a uns branquinhos na Ti Constança, depois na Tasca do Jagoz, depois na Perdiz Branca, onde deixara a motorizada. Com a mão de Deus à pendura, lá chegou a casa. Adormeceu sentado num mocho, meio encostado à parede da cozinha, com os pés encharcados de sopa e tinto, entre os cacos de uma malga e de uma garrafa partidas. Daí em diante, nunca mais curou a bebedice. De capelinha em capelinha, aos tombos ou aos esses na martirizada motorizada, tornou-se popular em todas as redondezas do Lugar dos Moinhos, onde nunca alguém arriscara abrir uma taberna, pequena e escura que fosse.
Acarinhado ou alvo de troça, todas as noites tentava o regresso. Mais de uma vez cambaleou quilómetros, por não conseguir pôr a trabalhar a fiel companheira. Mas nunca desistiu, pelo menos até dar lume a uma alma penada. É que ele há frios fantasmas fumadores, posterior palavra de Manel Cada Olho. O caso ocorreu por via de uns amigos da onça, sempre prontos para mangar com ele. Dessa feita, vendo-lhe o estado, chegaram-se à motorizada e tiraram-lhe o cachimbo da vela, de modo a que não desse pela marosca. Depois, conhecendo-lhe os passos, encheram um balde com gelo e plantaram-se no escuro dos ciprestes, junto à porta do cemitério.
Ao vê-lo aproximar-se aos palavrões a cada tropeção, um deles mergulhou as mãos no gelo, tirando-as do balde apenas quando deixou de as sentir. Saiu então da sombra, curvado e perguntando:
– Ó amigo, arranja-se aí um cigarrinho e lume?
Por entre os vapores do costume, Cada Olho não estranhou nem a figura esbatida na noite nem o pedido meio cavernoso. Levou as mãos ao bolso do colete, sacou o maço de Definitivos e à terceira tremelicante tentativa estendeu-lhe um cigarro. Mais cambaleio, menos cambaleio, seguiu-se o hesitante fósforo aceso. O outro, de mãos em concha para proteger a chama, roçou-lhe nos seus os dedos roxos:
– Porra, homem! Você tá gelado!
– Pudera, amigo! Tou ali enterrado há dezoito anos, saí agora só pra fumar um cigarrito...
Parece que a resposta lhe sarou de imediato a bebedeira interminável. Dizem que foi só olhos, boca aberta e pernas para que vos quero. Dizem, mas o certo é que no dia seguinte o ouviram a praguejar junto à motorizada, que arrancou logo depois em alta rotação. Não entrou na tasca, e a quem lhe disse bom-dia tartameleou apenas a impressão da alma penada a cravar-lhe tabaco. Ninguém mais o viu. O primo foi dar com ele na cama, sem vida, uma mão na boca atulhada de cigarros e outra, cerrada, amachucando um maço de Definitivos.
Verdade seja dita, certos aqui só os nomes. E a casa nos confins do Lugar dos Moinhos. A vista é a mesma, o comboio ainda apita. Todavia, está toda em ruínas. Silvas, ninho de vespas, armário de roupa grosseira, traças e baratas. Uma televisão a preto e branco perdida no escuro, uma enxada de pontas enferrujada, dependurada numa das traves do tecto do telheiro, mesmo por cima de uma EFS 301M Dunia, cinquenta centímetros cúbicos de cor indefinida, talvez vermelha, junto a uma janela sem vidros, aberta para os eucaliptais. Um tresvario de recordações.

22/04/2009

Sei Que Não Vens...

Sei que não vens, de qualquer forma resolvi preparar-me como se viesses. Assim, ainda que seja totalmente disparatado, sinto-me mais perto de ti. Tomo um duche prolongado, relaxante. Faço depilação integral. Sei que gostas de a sentir lisa e macia. Quero estar perfeita. Por fim saio da banheira, vou até ao quarto. Deito-me sobre a cama. Tenho a pele um pouco seca (é do frio). Sabes como detesto cremes mas vale a pena o esforço. Aplico creme no corpo para ficar com a pele mais macia. Quero agradar-te ainda que saiba que não vais saber que o fiz. Ponho aquele perfume. Observo-me ao espelho; estou gorda! Paciência, não posso fazer nada, pelo menos não hoje. Sei que não te importas mas gostaria de ser mais magra, gostava de ter um corpo, com curvas, mas de músculo e não de celulite. Dentro do possível, não está mal. Há uma coisa que não está bem: o cabelo. Não posso deixar secar o cabelo naturalmente porque vai ficar todo desalinhado. Volto para a casa de banho e seco o cabelo cuidadosamente; ondulado atrás e esticado à frente. Regresso ao quarto e ao espelho. Sim, agora estou preparada para ti, para te receber, para te dar tudo de mim. Sim, sei que não vens. Sei que é parvoíce porque tu nem vais saber que me arranjei para ti. Nem é concebível. Ainda assim, faço-o consciente de que é irracional mas na certeza que estou mais contigo, que faço amor contigo ainda que não o saibas. Ou será que sabes…?
Ai como te amo! Como gosto de te mimar de te fazer feliz. Aí reside a minha maior felicidade, na constatação de que te faço feliz. Aí tudo vale a pena. Toda a dor é recompensada. Todas as lágrimas evaporam pelo calor do teu sorriso. Tu fazes-me tão feliz! Consegues despoletar as minhas gargalhadas como ninguém. Eu rio e rio e esqueço que nem sempre há motivos para rir. Nesses momentos parece que nada nem ninguém pode interferir connosco, com as nossas gargalhadas, com a nossa felicidade. É tão maravilhoso partilhar contigo! Partilhar gargalhadas, sorrisos, beijos, pele, corpo. Partilhar as vitórias, as descobertas, um jogo de futebol, um café, uma paisagem, uma cama, uma cerveja, uma banheira, uma anedota parva, uma fantasia, um livro, uma viagem, uma memória, uma vida!
Esta é agora a minha forma de partilhar contigo.
Após passar algumas horas neste solitário convívio contigo, decidi vestir aquele vestido beige e bordoux, que adoras e ir ao teu encontro. De caminho, apanho um ramo de madressilva.
Subo a colina, passo o grande portão verde e dirijo-me àquela pedra branca e fria, que cobre agora esse corpo que conheço tão bem como o meu próprio. Pouso o ramo de madressilva, fecho os olhos e sinto o calor do teu sorriso.

18/04/2009

A festa

Debaixo de um céu azul fleumático, com a fúria ávida da minha infância, corri em direcção aos limites geográficos que separavam a Azinhaga comprida onde eu vivia e que se estendia ao Quartel Militar da Pontinha.

Num dos bolsos do meu vestido/bibe levava rebuçados brancos, de côco, embrulhados num pequeno quadrado de papel branco e vermelho - cores pavlovnianas, cujo o resultado, era o de alimentar as cáries dos meus dentes de leite.

O meu irmão atrasava a família entretendo-se com o seu arco de uma bicicleta há muito extinta. A minha mãe e os restantes elementos da família vinham afastadas uns cinquenta metros atrás de mim. Todos quisemos ir à festa, mas eu queria chegar primeiro, para ser também, a primeira a ter uma opinião.

A rua acidentada desorientava-me os passos, tinha que me desviar constantemente para contornar as poças de água e lama. Do lado esquerdo havia um chafariz público, onde a água escorria livremente, gratuita para consumos úteis e inúteis. Esta água alimentava uma rua de quase um quilómetro onde, nenhuma planta escolheria tal lugar para nascer sem correr o risco de ser repisada até, não ser mais nada.

Como eu levava alguma vantagem no caminho, fui a primeira a passar pelo o canavial. Por detrás das canas estavam pelo menos duas pessoas que trocavam incompreensíveis gemidos de prazer. Embora eu não compreende-se tal exposição embriagada, era para mim tão banal como passar pelo chafariz, ou talvez, como quem observa mulheres e crianças, carregando jarros de plástico azul cheios de água para dentro dos seus lares, era tão banal como não haver água canalizada.

Sonho muitas vezes com esta Azinhaga. Voltar a ela é como falsear a ideia que tenho da nidificação. No meu sonho é sempre noite, na Azinhaga dos Besouros. Tudo está silencioso, a viela deserta de pessoas está, no entanto, cheia, velada pela névoa e pelo lusco-fusco dos paus de electricidade, que sustentam uma lâmpada tosca e debilitada, que vigiam os meus passos em direcção à loja, para roubar rebuçados de côco.

Atravessámos a estrada para, enfim, nos encontrarmos de frente para o Quartel Militar. Estávamos em Abril, no dia 25 de 1974, a minha mãe fazia anos, mas esse facto foi esquecido por todos os membros da família, mas ela, creio, que nunca nos censurou por isso.

Subitamente, os soldados começaram a elaborar uns estranhos jogos acrobáticos para apanharem os cigarros que o povo, forçosamente, lhes queria oferecer pelas janelas diminutas do quartel - eu também já tinha fumado uma vez, mas sem dúvida, preferia o outro presente, talvez por ser mais atraente e mais colorido: os cravos vermelhos.

A festa estoirou florida de vermelho, dando um enorme ânimo ao acontecimento. As pessoas chegavam fazendo muitas para depois se transformarem num único número. Nós riamos ao querer acompanhar uma ladainha cantada (“O povo unido, jamais será vencido”) de significado para nós alheio. Cada membro da família foi prendado com vários cravos e como éramos quinze pessoas ao todo, decidimos vendê-los. E por fim, acabámos numa pastelaria a comer bolas de Berlim e a beber laranjada.
Recordo que todos gostámos da festa. Creio que a para minha mãe, foi talvez o seu melhor aniversário. Quanto a mim, não mais voltei a encontrar um lugar para surripiar rebuçados de côco.