23/03/2009

CRÓNICA DE SONO E INSÓNIA

Penitencio-me, outra vez: este é ainda um texto antigo, reformulado só para quebrar o silêncio entretanto aparecido. É verdade que a vida nos atrapalha. Silenciar-nos é que acho que ela nunca conseguirá. Mas a escrita é tramada, outra verdade. Tento para uma próxima a história do Manel Cada Olho, que caberia melhor no tema em causa, se a conseguisse contar.
Abraço a todos.
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CRÓNICA DE SONO E INSÓNIA

Sono. Silêncio húmido. Tédio. Ninguém se passeia pelas sombras da cidade. Nada tuge, nada muge. Repentinos bramidos, trovoada longínqua. Presságios rasgando a luz o horizonte lá no fundo da Maxixe, do outro lado da baía. Breves suspiros de brisa carregam consigo mãos cheias de ar quente, despertando lânguidos suspiros na ramagem das palmeiras, enquanto me perco no meandro dos passos, no fio do pensamento, fantasma sem destino.
Um cão segue-me, fareja-me a meada dos sonhos. Não me teme. Não me liga. O faro sossega-o, fá-lo sentir a indiferença calma que só a confiança mútua gera por vezes, e o instinto assegura-lhe que como ele também sozinho lambo feridas, também enlevado acaricio saudades.
Um cigarro perto do mar. Perante o mar a solidão não se torna tão aguda, tão carcomida. As ondas embalam o abismo do céu, escuras, solidárias, constantes, sugerindo travessias e riscos, alísios e monções, outras paragens, outras viagens. As ondas são um apelo, talvez um grito que se receia e recusa. E a sua espuma, a espuma das ondas e dos dias, desfazendo-se branca na areia suja da praia ou do tempo, multiplica incansavelmente a verdade da terra, o cansaço da cidade.
A cidade. A cidade e os seus apesares. Apesar do enfado e da pouca vontade, da guerra e da pouca sorte, da esperança e da pouca fé ou das idas que se esperam e se não fazem, apesar de tudo e de nada, a cidade não nos priva assim tanto desta vida, deste embaraço.
Volto costas ao xicuembo negro da baía e sento-me na segura certeza de uma das pedras do esquecido cais. Ratos velozes disputam esquivos grãos de milho fugidos de atentas mãos que sôfregas os já haviam catado aquando do último descarregamento, derradeiro matabicho. As baratas deambulam indiferentes, cientes da sua imortalidade. Noutro canto, alguém lança num gesto infindável, num movimento paciente, uma outra vez uma outra linha à água. Num encolher de ombros sem sentido, também eu deito a beata ao mar, na inconsciente repetição do gesto infindável, do movimento paciente do pescador na outra ponta do cais.
Fixo então os olhos nos olhos do coração dela, da cidade tão mansamente entorpecida pelo sono, pelo tempo, perene cuidado. E é ao encará-la assim tão de caras, tão de chofre, que reconheço finalmente que a não possuo toda, que a sinto apenas. Acho que a desvendo. Será que a amo?
Outro cigarro, paciência. Vejo-a, escondida por detrás dos pálidos candeeiros da marginal, envergonhada por estar assim tão apagada. Vejo-a, afinal. Nua e irrequieta no sono. Caniço. Batuques na noite, altas bangas de sura, latas de água e suor, lenha e labirintos, ilusões e panos velhos, mamanas e pilões, coqueiros e mufanas, madalas e estórias, amores furtivos, sonhos fugitivos. Ou de pijama, esparramada entre lençóis e preconceitos. Cimento. Rádio Five no xirico, whisky de candonga, business e trabalhinho, directores e balalaicas, enferrujados carretos, amores furtivos, sonhos fugitivos. Pobre no caniço. No cimento pobre.
Mas atenção! Se a alegria ainda brota no antigo sorriso das mulheres, na roda de luz de um velho xiphefo, é porque na miséria deste agora sem dúvida longo, áspero, a esperança ainda reside decerto nas raízes aqui e ali endurecidas, de tão fundo enterradas na procura da água, na sede da vida.
A beata queima-me a ponta dos dedos no fio das palavras, espigas sem corpo. Largo-a com uma praga que uma rabanada transporta longe, empurrando a réstia de luz, breve a apagando. Um trovão clama bem alto o seu poder. Vibra o cais. Barcos rangem, assustados. Baratas e ratos escapam-se por entre grossas gotas de chuva. O cão abriga-se, rabo encolhido, debaixo de uma pilha de travessas de madeira. O pescador desapareceu por artes mágicas. As linhas retesam-se, assobiando o queixume do vento. Um fio de água arrasta impassível um impotente grão de milho, que cai na escura água do mar. Um rápido clarão deslumbrante acompanha-o, reaviva-lhe a cor de ouro, de suor, de pão, que o milho tem quando maduro na machamba que falta na xima das gentes.
Agiganta-se o temporal. A noite despeja agora uma espessa bátega de água, desabando tumultuosa sobre a terra, a insónia que me arrasa, me desperta. Entontecido, busco refúgio no abrigo ali mesmo onde se apanha o Mutamba, o barco para o outro lado, ali mesmo onde se espera. Um mufana dorme no frio mais cinzento do banco. Encolhido, procura proteger-se da chuva que lhe encharca o futuro. Nas quimeras do sono recria o aconchego do útero da mãe que lhe falta.
No seu sonho não há chuva, não há frio, não faltam machambas de xima. No seu sonho há palavras que se não dizem, frases que não se escrevem. No seu sonho há verdades que se berram alto.
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O Armindo alertou-me, e com razão, para a necessidade de esclarecer alguns dos termos presentes neste texto. Aqui fica, então, um pequeno "glossário":
- Balalaica: fato completo, de tecido leve, normalmente utilizado por burocratas e políticos;
- Banga: festa;
- Caniço: bairro de subúrbio;
- Machamba: horta, terreno cultivado;
- Madala: homem de idade;
- Mamana: senhora, mãe;
- Matabicho: pequeno-almoço;
- Mufana: rapaz, miúdo;
- Sura: bebida alcoólica, feita a partir da seiva do coqueiro;
- Xicuembo: feitiço;
- Xima: prato típico, feito à base de farinha de milho;
- Xiphefo: candeia artesanal
- Xirico: ave pequena; nome da única marca moçambicana de aparelhos de rádio fabricado.

1 comentário:

Guiomar Fernandes disse...

Que capacidade descritiva! Este conto é um quadro tão bem pintado, tão pormenorizado,tão sereno na agitação do silêncio. Estes contos do Adriano sobre Moçambique aguçam, ainda mais, a minha curiosidade em conhecer aquela terra mítica. Já agora, obrigada pelo glossário, ajudou. Parabéns!