02/03/2009

Ao Virar da Esquina

A espera, a interminável espera por algo novo, diferente. Uma fada que apareça, com a sua varinha de condão, e mude esta vida monótona e comezinha. Algo que transforme esta sobrevivência numa verdadeira vida.
Não se podia dizer que tivesse muitos problemas, que não sabia como resolver a sua situação. A questão era exactamente não ter. Não tinha alguém com quem partilhar aquela solidão ensurdecedora, nem um trabalho particularmente agitado, filhos que lhe dessem preocupações ou uma mãe velhinha e entrevada, de quem tivesse de cuidar.
As cartas+que recebia eram, essencialmente, contas para pagar, ofertas de crédito e outras mensagens publicitárias.
Há muito que mandara retirar o telefone fixo, que só servia para receber chamadas de telemarketing. A sua janela para o mundo era o seu computador, onde, através da internet, comunicava com centenas de desconhecidos, para os quais criava as mais diversas personagens.
Experimentou tudo; ser homem, mulher, médico, bombeiro, engenheiro, cozinheiro, etc. Cada vez que ligava o computador, decidia quem iria ser nesse dia. Poderia depender dos mais diversos factores; de algo que se passara no trabalho, de alguém com quem se tivesse cruzado na rua, de um filme que tivesse visto ou de uma noticia de jornal. Então, passava uns momentos a interiorizar a personagem, traçava mentalmente as linhas gerais da sua personalidade, do seu aspecto físico, da sua história de vida. Mergulhava no seu mundo virtual, já perfeitamente incorporado naquela pessoa que decidira ser. Entrava em salas de conversação, entabulava conversa com alguém que lhe despertasse a atenção ou que me metesse com ele. O tema não era previamente seleccionado, nem a sua opinião sobre um mesmo tema era constante. Não era a sua posição pessoal que transparecia, mas a da personagem que estava ali a representar. Por vezes estabelecia contactos com um teor mais íntimo. Teve mesmo vários relacionamentos, que duraram algum tempo, mas isso coloca-lhe alguns problemas de conflito de personalidade. Se era o engenheiro que inicia a relação, no dia seguinte, não podia ser o padeiro a aparecer. Havia dias em que tentava manter conversas paralelas; o bombeiro falava com uma pessoa, enquanto a bailarina falava com outra. Mas isto acabou por provocar sempre lapsos difíceis de explicar, com o bombeiro a falar do maravilhoso Lago dos Cisnes e a bailarina a referir-se a si própria no masculino.
Uma vez começou a falar com uma professora, trinta e seis anos, alta, cheiinha, mas sem ser gorda, que partilhava os seus gostos melódicos e literários. Nesse dia era o bibliotecário. A conversa foi fluindo sem qualquer dificuldade. Tinha a certeza da sua sinceridade.
As outras personagens foram postas de lado. Todas as noites tinham longas conversas através da internet. Dai passaram para o telemóvel. Como a voz dela era terna... Sentia um certo peso na consciência. Desde a sua primeira conversa, tinha contado varias mentiras; desde a profissão à sua aparência física, passando pela idade. À medida que se foram conhecendo, primeiro pelo computador, depois por telefone, ia-se sentindo pior, especialmente por estar seguro da sinceridade dela. Como quem não quer a coisa, foi-lhe dizendo que tinha engordado uns quilos, que estava um pouco envelhecido para a idade. Ela respondia-lhe que não avaliava as pessoas pela sua aparência, que o valor humano estava na essência. Ganhou coragem, convidou-a para um café. Primeiro, ela mostrou-se reticente, mas acabou por aceitar.
Marcaram encontro numa esplanada. Ela levaria uma revista “cor-de-rosa” na mão e vestiria um casaco vermelho; ele levaria uma rosa vermelha e usaria um fato azul. Estava muito nervoso, não sabia como ela iria reagir. Por certo ficaria decepcionada, pois ele não correspondia ao que tinha dito. Resolveu chegar atrasado, talvez pudesse ficar a vê-la de longe, seria mais fácil aproximar-se depois.
Acabou por se atrasar mais do que pensava, o metro avariou. Já não teve tempo de se posicionar estrategicamente para a observar, porque assim que entrasse na rua, teria logo a esplanada no primeiro prédio.
Ao virar da esquina reconheceu-a imediatamente. Aliás, a esplanada estava praticamente vazia, além dela, estava apenas um sujeito barbudo a ler um jornal. Lá estava a sua mulher misteriosa, casaco vermelho, revista “Maria” ostentada como uma bandeira, uma mini-saia (que quase não se via) amarela, que condizia perfeitamente com o seu cabelo louro oxigenado, com umas consideráveis raízes grisalhas. Umas meias de rede faziam as suas pernas parecerem dois rotis bem fartos, prontos a entrar no forno, encimavam um par de sapatos de salto alto, descascado, de plástico vermelho. O conjunto finalizava numa maquilhagem que juntava uma sombra azul-turquesa com um baton vermelho vivo, que se abria num largo sorriso.
- Leonardo?- Desculpe? Está a falar comigo? Deve estar enganada. Boa tarde.

5 comentários:

Nuno Baptista Coelho disse...

Qualquer juízo de valor é necessariamente subjectivo, por isso prefiro resistir à tentação de classificar este conto como o melhor do blog. Mas foi, sem a menor dúvida, a leitura que mais prazer me deu até agora (sem desprimor para outros excelentes textos, como é evidente). E ainda, por cima dos méritos de narração que estão bem à vista, tem ainda um outro, talvez menos evidente: de todas as abordagens até agora tentadas a esta problemática das esquinas, é provavelmente o que melhor explica essa coisa enganadora e fugidia, e faz tudo isso sem praticamente falar de esquinas. A isto costumava o Camões chamar engenho e arte!

Pensei há tempos, lendo um ou outro texto, que este blog prometia. Agora já tenho mais experiência, e digo sem hesitar que este blog não promete, este blog cumpre.

Keep up the good work.

Adriano disse...

Surpreendente.
E o resto já o Nuno o disse. Obrigado, Guiomar

Armindo S. disse...

Este conto fez-me lembrar no desfecho Angústia para o Jantar do já desaparecido mas sempre na memória Luís de Sttau Monteiro. Esse livro é só um dos que mais releio de tempos a tempos. Obrigado Guiomar por me confrontares com as memórias.

Rosa Matilde disse...

“Ai, Guiomar, Guiomar, que vêm aí os algozes e talvez nos separem para sempre”.
O desencantamento como resultado da incansável busca. Eterna sobrevivência das almas claudicantes.
O fim podia ser, talvez mais trabalhado em termos de construção… mas isso, é que menos importa para uma pessoa com a tua subtileza despretensiosa.
Gostei imenso de te ler

Guiomar Fernandes disse...

Meus caros, o meu ego adora-vos! Agradeço os vossos comentários. Espero que voltemos todos ao activo brevemente. Juro que vou tentar.
Saudações bloggistas