19/10/2009

0º 55’ 10’’N 29º20' 33''W

Hoje sei que foi duzentos metros a sudoeste que me encontrei com o penedo.
No meio da neblina (neblina rasando a água) náufrago, cinquenta anos de idade, pés em bolhas, demasiado tempo de imersão, sentir um golpe na coxa como um rasgão, a incerteza a deixar-nos em pânico. Cheguei a pensar em esqualos, esses bichos (selachimorpha) que aparecem em águas quentes quando e onde menos se espera. Nada disso, pelo menos na hora, encontro adiado.
Quando nos encontramos a boiar há pelo menos um dia e uma noite, a esperança por um fio, deverá parecer um sonho, ainda que sangrento sonho, encontrar zona rochosa onde encalhar.
O mistério do esbranquiçado nevoeiro a atrapalhar. Sentado em cima de uma rocha negra sangrando copiosamente da perna, algures no centro de nenhures no meio de névoas densas onde raio apareceu o penhasco? Do fundo do mar? Sim, como todas as ilhas. Primeiro uma agulha erguendo-se das profundezas ao longo de dois, três quilómetros, para o raio de um náufrago ali ir bater arrastado à deriva por uma corrente qualquer a partir do seu azarado afundanço fruto de uma inesperada tempestade tropical desencadeada dois dias antes.
O silêncio quebrado pelos ruídos são os das pequenas ondas num splash splash peganhento e constante, os gritos de algumas andorinhas-do-mar ou cagarras esforçando-se por lutar por um lugar no penhasco.
Lembro-me entretanto do conto “A toca” do escritor Franz Kafka que tão bem retrata os medos e o seu processo nascente embora a terra mole escavada pelo animal não dê para analogia com este mar assente em águas mornas.
E que poderei contar em cima de um penhasco?
Contar que me encontrem.
Contar os dias.
Contar o guano dos pássaros por metro quadrado? Difícil. Nem à pazada, mas isso seria um contar que cheira mal.
Posso contar com uma insolação quando o nevoeiro passar, com frio durante uma noite chuvosa e com impaciência durante o princípio do longo tempo que prevejo aqui ficar.
Um penhasco, apesar de terra firme, não deixa de ser uma prisão desconfortável com água a toda a volta e, como devem imaginar, não se vê passar os comboios nem ao longe.
Não será Alcatraz, mas a pena prevê-se mais dura. A expectativa resume-se: apanhaste perpétua, se fazes favor sobrevive, aguenta até ao fim.
Encontrar a zona de sombra do penhasco, subir para recolher a água da chuva, lutar com as aves nidificantes, roubar-lhes os ovos, espreitar pelo meio do nevoeiro tentando vislumbrar horizontes, procurar um Sexta-feira qualquer sabendo que não virá e mesmo inventá-lo na sua definitiva ausência para enganar o tempo. Envolver os peixes para ter algum- parco- alimento. Nadar para manter a forma. Imaginar o testamento que gostaria de ter deixado escrito. Esperar. Não desesperar.

3 comentários:

Margarida Tomaz disse...

Não é qualquer um que sobrevive à prisão do penedo e continua a reinventar a vida com olhos de poesia.

Lindo, poético, bem escrito e com a imaginação dos eleitos.
Parabéns!

apsarasamadhi disse...

Ar, Ar

encerrado em mistério, desdobra-se em cada acto-palavra o sentido norteador do título que descodifica o mapa das vontades, dos sentidos e corrói o tempo nesse mergulho incomensurável que combate em cada instante-respiração o medo, o escuro,a perdição. Tenho vontade de fotografar essa pintura maresiada, sem Vénus, em busca de Poseidon. A única pergunta que remanesce é se se essas coordenadas se repetissem ad aeternum, à maneira de um Sísifo no rochedo- DES- esperávamos?

MARgnífico,AR AR mindo

Guiomar Fernandes disse...

É difícil comentar de pois do que já foi dito. Para além de fazer minhas as palavras das comentadoras anteriores, resta-me dizer que há locais que conhecemos sem nunca os termos pisado. Sobre esses é o coração que fala, deixando voar a mente ao correr da pena. Parabéns!