05/10/2009

Parado em queda livre.

No fim da estrada ficava o penhasco. O homem ainda não sabia disso, e percorria sem preocupações a estrada, essa estrada que terminava num penhasco que não existia, tal como nenhum penhasco existe.

Dá jeito por vezes falar de penhascos, ou até escrever qualquer coisa sobre eles, mas isso não os faz existir. Nenhum penhasco existe, como não existe o frio ou a escuridão. O frio é só a ausência de calor, a escuridão não passa da ausência de luz, e um penhasco é apenas a ausência de algo a que nos possamos agarrar, de um solo onde possamos assentar a nossa própria existência. Podemos verificar se a quantidade de calor é excessiva ou insuficiente, discutir se a luz é escassa ou se é demais, e constatar se estamos bem seguros ou em desequilíbrio. Mas o vazio não se contabiliza, e sobre o vácuo nada há a dizer.

O homem chegou ao fim da estrada e caiu no penhasco. Melhor dizendo, caiu nessa não existência onde nada havia, fosse luz ou calor ou um mundo que o pudesse segurar. A queda foi longa e vazia, e também ele foi deixando de existir.

Não soube se chegou a tocar o fundo, nem sequer se haveria esse fundo, ou em que estado ele próprio lá chegaria. O grande nada que é o penhasco continuou a existir, vazio como sempre. O nada não ocupa espaço, e ele também já não.

4 comentários:

Margarida Tomaz disse...

Hei!!!...
E agora o que faço ao meu homem que continua a caminho do penhasco?!!!...

Solilóquio:
Homessa!... Lá tenho eu de deixar passar mais uns tempos a engendrar nova teia!... E esta hein!... C'os diabos!
Raios parta o raio do homem! Maldita a hora em que não tirou o brevet!

Armindo S. disse...

Surpreendente.Qualquer ser humano que pense assim faz de qualquer penhasco um Evereste e ergue-se acima desse penhasco com a sua determinação pois conquista heroicamente o lugar inacessível que é a luta pela vida a cada dia que passa, com toda a inteligência. Isso é um valor absoluto apesar do grão que possa ser um simples penhasco do tamanho do Evereste.

apsarasamadhi disse...

O paroxismo estático-vertiginoso do título aponta para a desconstrução daqueloutro olhar costumeiro que cansa a existência, por não a saber cantar! Au contraire, Nuno, o teu olhar/cântico profundo e sem véus (ao qual nos habituaste e sem o qual nenhuma escrita persiste ou existe) desConstrói essa rotina que, como um vírus, habita na retina mais distraída. Salvé. Salvé esse Nada/Tudo que sem espaço se torna ataráxico. Metalinguístico. Todo essência.

Guiomar Fernandes disse...

O tudo e o nada, a existência de não ser, a negação da matéria! Um conto, um poema, uma dissertação filosófica. Sempre com a qualidade de escrita que te é característica. Obrigada Nuno!