Esta poderia ser a história do homem que era transparente, mas creio que, como história, terá de ficar para outra altura. Esse deixava passar quase tudo ou tudo passava por ele, sem que sequer o vissem. Oposto do homem transparente era um meu amigo, niilista.
Um dia reparou que eu ficava muito tempo a fazer nada e interpelou-me perguntando se eu estaria disposto a trabalhar para ele.
- Trabalhar para ti, nem penses, mas em sociedade aceito.
Ele concordou com os termos da minha proposta e começámos logo a fazer nada os dois.
As pessoas passavam e admiradas tornavam a passar e nada. Nós ali, sempre ali. Aquele local era óptimo para fazer nada. Carradas de nada, de sol a sol, e a plena satisfação do dever cumprido.
Ao fim do dia, mal nos levantávamos e como boa sociedade, combinávamos quase sempre ir tomar uns copos, discutindo se mudaríamos de local no dia seguinte, apreciando o filão que tínhamos deitado a baixo, adivinhando as suas potencialidades.
Calma tarde, os copos que nos puseram em frente, no balcão a que nos tínhamos encostado, permaneceram vazios e aquela sensação de workaholic instalou-se-nos de tal modo que, quando a casa fechou, não apetecia sair de lá. Excelente mina, nem sei se ficámos a marcar território ou se zarpamos dali para outro lado, o certo é que à mesma hora do dia seguinte lá estávamos encostados ao balcão em frente a dois copos igualmente vazios e foi um começo de um ritual a perpetuar-se.
Enquanto fazíamos nada, as ideias iam e vinham como os transeuntes de todos os locais onde nos estabelecíamos. Uma delas apareceu, sentou-se connosco e foi-se instalando:
- E se, com toneladas de nada recolhidas, nos puséssemos a vendê-las?
Foi assim que nos começámos a dedicar de corpo e alma ao ramo comercial.
Por tudo e por nada, sobretudo por nada, lá estávamos nós a vender.
E vendíamos, vendíamos. É certo que nada vendíamos mas era uma boa sensação. Vender nada tornou-se uma razão de vida e em franca expansão.
O êxito foi tal que passámos a exportar.
Já tínhamos vários clientes para lá da fronteira quando decidimos abrir franchisings por todo o lado. E aquilo é que era, não havia mãos a medir.
A propósito de fronteiras, até tenho uma boa para vos contar.
No início, quando o negócio ainda era artesanal, internacionalizar a coisa ia dando para o torto. Estava eu tentando atravessar a fronteira para expandir o mercado quando um guarda- fiscal mais teimoso perguntou:
- O que é que leva aí?
É óbvio que estão mesmo a imaginar a minha resposta:
-Nada.
Pois, nem queiram saber, fui inteiramente revistado da cabeça aos pés e quanto mais se davam conta que o que eu transportava era nada, mais se punham a espiolhar. Até lavagem ao estômago me fizeram, o que foi um pouco doloroso pois eu nada comia desde há uns dias para ir bem carregadinho.
- Este nada tem – deixemo-lo passar - disse o menos teimoso.
Até que lhes atirei:
- Se tivessem acreditado que eu nada tinha comigo escusávamos de estar aqui a perder tempo.
E lá segui eu a fazer nada para a terra dos outros.
Uns anitos mais e tornou-se uma praga.
Havia nada por todo o lado, cansado de fazer nada e de ver nada após cada esquina dobrada tentei fazer umas férias de tudo.
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2 comentários:
Genial! Absolutamente genial, tanto na concepção como na execução. E não posso mesmo dizer mais nada.
Bonito texto, bonito jogo de palavras, bonito encadeamento, bonita reflexão sobre o nada que é tudo, quase mito, quase um desejo de nós, amordaçado, quase vontade sôfrega de partilha, epidemia que controlamos porque no-la negam, por nada - ou por tudo e por nada...
Parabéns, ilustre, como com nada se pode (pudeste) fazer tudo!...
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