11/02/2009

LOGO ALI, AO VIRAR DA DITA

Chegava ao fim do dia, vinda da banda de lá detrás do sol-posto. Vinha e era recebida com cerimónia, embora nunca desse cavaco a tanto salamaleque. Transpunha a porta, aceitava um copo de vinho e ia direitinha ao quarto, enquanto enchia a casa de um só seu odor a terra, ora erva cortada de fresco ora feno no estábulo ora goivos em noite de quase Verão, tudo com um travo a fado de viúva. O aroma da vida é afinal tão intenso quanto o do luto. Mas esta é comparação recente, ganha com o virar dos anos.
Assim, à distância do tempo, fica apenas a lembrança da velha de negro, vestida de mãos austeras. Uma de duas maleitas a trazia: ou tinha o miúdo virado o bucho ou nele andavam assustadas as lombrigas, infantis achaques provocados fosse pela traquinice de rédea solta fosse porque o pai tinha a mania de o atirar ao alto em bebé, para logo o resguardar no carinho dos braços. Brincadeira, em ambos os casos. Seja como for, certo é que emagrecia a olhos vistos.
Por isso, chegava a visita a cada entardecer, com as mãos calejadas untadas de jeito e azeite morno a massajar-lhe o ventre, mais a ladainha e as folhas de couve aquecidas ou a enxúndia de galinha apertadas em torno dos rins, no sufoco de uma toalha também quente. Choramingava, mas nada feito. A velha forçava-o à deita e virava costas, seguida da sombra solícita da avó. À hora da ceia, era a mãe quem lhe trazia o caldo. E era também comer e dormir, que ali se seguiam à risca as mezinhas da senhora de negro e não seria ele, um fedelho ainda, a virar-lhe a cabeça. Libertava-o do aperto e do cheiro das couves ou da gordura galinácea, entretanto arrefecidas, aconchegava-lhe os cobertores e, findo o Pai-Nosso, dava-lhe a bênção, apagava de um sopro a candeia e saía. Enfim. Com tantos desvelos, se o bucho tinha virado, direito ficou. Ou, se as lombrigas tinha assustadas, calmas ficaram. Recuperou peso e cabeça, virou a página da infância.
Fez-se homem. Contudo, quando de virar se tratava, sempre de pé atrás se deixava ficar. Surgisse ou não o verbo na ponta da língua do mais corriqueiro lugar-comum, logo ao olfacto lhe vinham as mãos da velha a dar-lhe a volta à barriga. Traziam-lhe pele de galinha, esses ditos populares. Arrepiavam-no tanto mais quanto todos, nas suas redondezas, neles insistiam para lhe apontar a dita malvada, a sina que a cada passo lhe virava a vida do avesso. A mulher enganou-o, virou-lhe a honra noutros lençóis. O banco de sempre virou o bico ao prego e negou-lhe o crédito prometido. O melhor amigo virou a casaca e nunca mais o recebeu em casa.
Tempos de crise, coisa antiga, tão velha quanto o buxo virado, as lombrigas aos saltos, as bexigas loucas que também lhe haviam acontecido. O mundo de pernas para o ar logo ali, ao virar da esquina. Mas essa era dita que não aceitava de qualquer jeito. Andou tempos sem fim à volta de ruas, por portas travessas e outras esperanças, à espera vá lá saber-se do quê. Para uns, aguardava-o a felicidade, a surpresa, a solução. Para outros, o azar, a tristeza, o pesadelo. Cansado, quase desistiu, convencido que a cada virar nada se sabe sobre o que pode acontecer.
Resolveu, aí, virar cada esquina no ponto exacto, opção volátil, tomada apenas pela absoluta necessidade de não fugir de nada, nem sequer dos incómodos do passado. A vida cheira tão forte quanto a morte, talvez. Ambas têm a vantagem de nunca se saber o que trazem, assim, de repente, ao virar da dita, seja ela a esquina do Sardinha, emblemática da terra e cantinho de reformados, ou canto tramado onde decisões se tomam, seja ela o fado de ficarmos sós, a olhar a sorte dos outros, nós, irmãos.

4 comentários:

Armindo S. disse...

O mistério que está em cada esquina por desvendar é algo que tem paralelo com cada dia novo que trilhamos.
Resolvido na grande esquina, o cabo das Tormentas, a suprema curiosidade: o grande mistério que a todos faz espécie. Perguntar a quem nesta viagem?

Margarida Tomaz disse...

A escrita mostra-nos que podemos olhar de frente cada virar de esquina. E o grande mérito deste conto é pôr-nos a pensar, de cabeça erguida, sobre o místério da viagem que por aqui vamos trilhando.

Guiomar Fernandes disse...

A problemática do mistério da vida, se o seu curso depende ou não daquilo que fazemos ou queremos. Muito bem escrito, muito bem contado.

Nuno Baptista Coelho disse...

Caro Adriano,

Se um dia me der para acrescentar a este blog uma caixa de créditos, tipo, animação a cargo de fulano, Guiomar Fernandes vestida por sicrano, não discriminação de atoardas garantida por Nuno Coelho, etc., uma linha de relevado destaque será sem a menor dúvida, Cheiros fornecidos por Adriano. E será indiscutivelmente uma das mais justas, atendendo à dimensão olfactiva que tão competentemente tens dado a este blog. Muito se pode dizer dos diversos textos (muito se tem de facto dito, embora talvez menos nos últimos tempos), mas foram sempre os teus que se deixaram cheirar, e deram assim um distintivo aroma ao blog. Este não é excepção.

Os vários odores de terra, com um travo a fado de viúva, aromatizam o decorrer do texto, até terminar na frase que resume e conclui, A vida cheira tão forte como a morte, talvez. Gosto particularmente do Talvez. Mas é justo advertir que eu sou um epicurista das palavras, já apontado por uma certa perversão de gosto (é o que dá assumir gostos), e a minha preferência por esse “talvez” poderá ser eventualmente discutível. Sê-lo-á, mas eu gosto na mesma.

Vou fazer um esforço para não comentar a parte mais imediata, a aplicação a tenros infantes de crendices mais ou menos patetas, e ocasionalmente um pouco repugnantes. Se enveredo por esse caminho, que vai da enxúndia de galinha aos bons rituais do senhor dos passos, ele que me perdoe as iniciais minúsculas, temos o caldo entornado, e ainda acabo por assustar as santíssimas lombrigas ao Vaticano. Coisa sobremaneira criticável, pois que por modo nenhum desejo fazer dos teus excelentes textos uma caixa de sabão para o meu mau feitio. O texto é excelente, honra lhe seja feita, como é de direito. O meu feitio, esse, continuará mau, mas o que se há-de fazer? Em persistindo os sintomas, é talvez de lhe aplicar umas enxúndias de galinha.

Um abraço.