08/02/2009

O Consumo

Bem, o melhor é pôr logo as cartas na mesa, e arrumar de uma vez por todas a questão dos olhares revirados em exaspero, dos suspiros enfartados, dos desabafos rosnados entre dentes, coisas assim como, “boa, mais uma história na linha de ‘boy meets girl’, que original”. Para que ninguém seja levado ao engano, que nos tempos que correm é coisa grave enganar o consumidor, desde já esclareço que versa o presente conto o caso de um rapaz, e também de uma rapariga, e do mais que entre eles sucedeu. Ficando o amável consumidor lealmente advertido, prossigamos.

Nunca, até ter conhecido a Elsa, ocorrera a Raul preocupar-se em demasia com a questão das raparigas. Não se quer com isto dizer que não fosse ele apreciador, muito pelo contrário, já que era bem raro encontrá-lo desprovido de uma qualquer companhia feminina, calhando por vezes tratar-se da mesma da véspera, mas mais frequentemente de alguém inteiramente diferente. Não que não fosse selectivo, que nenhuma delas se apresentava de feição a envergonhar o seu acompanhante, mas isso é artigo de que há um vasto mercado, desde que se saiba escolher, e Raul não hesitava em fazer valer as suas mais-valias, passe a aparente redundância. Foi então que lhe aconteceu Elsa.

Elsa era a primeira estrada de dois sentidos que encontrava, a sua primeira transacção a dois, novel especulação que o fascinou, e cedo se desataram a consumir um ao outro. Rapidamente esgotando os dividendos dessas aquisições de impulso que se iam mutuamente perpetrando, decidiram fidelizar-se cada um à oferta do outro, e casaram.

Durou ainda uns sólidos seis meses, aquela maratona desenfreada de consumo, em que a mobília do quarto assistiu a caprichos aquisitivos de bradar ao kama-sutra, numa vertigem de melhor se adquirirem, melhor e sobretudo mais, sempre mais. Peritos não solicitados, gente em todo o caso experimentada nestes mercados matrimoniais, foram alertando para o risco da bancarrota eminente, mas eles pouco caso fizeram de tais avisos, que a fidelização era total, e o apelo de um deles se deixar vislumbrar numa montra vinha sempre a ser a perdição do outro.

Foi de chofre que Raul se capacitou da sua precária situação financeira, corporizada num extracto bancário de frondosas hastes, e percebeu que o pior acontecera: tinha atingido a falência. Naquela balança económica de consumo mútuo, esgotara o seu capital sem ter adquirido tudo o que desejava, porque o tudo é algo por definição impossível de adquirir. Não dispondo o consumidor de recursos à altura da oferta, Elsa partira naturalmente para a exploração de novos mercados.

O novo Raul, divorciado e encornado, embora não necessariamente por essa ordem, é muito menos visto na companhia de raparigas, e consta que dedica grande parte do seu tempo livre a meditar esta questão do consumo. Compreendeu já que isto de mercados é assunto complicado, em que há sempre a certeza de alguém sair a perder. Não é que pretenda parar de consumir, falta-lhe só aprender a arte de evitar ser ele esse alguém.

3 comentários:

Adriano disse...

Puxa, meu caro. Que inspiração! Muito bem, mesmo muito bem.

Guiomar Fernandes disse...

Acho que acontece a muito boa gente... São as vicissitudes de uma sociedade de consumo.
Gostei muito.

Margarida Tomaz disse...

A história está bem pensada mas gostei bem mais da forma como é contada, "com engenho e arte".