09/02/2009

A talhadeira

Naquele tempo, todos tinham um ar de quem tinha caçado gambuzinos em pequenos. Gambuzinos, aqueles bichos peludos e esquivos que se procuram de noite nos pântanos e redondezas. Não haverá terra de interior, aldeia recôndita ou povoação mais desligada do mundo que não tenha o seu pântano de caça ao gambuzino, ou pelo menos um charco e na falta dele, o riacho mais próximo serve na perfeição.Tinham o ar de quem tinha caído pelo menos uma vez. De noite, os buracos se são muitos, parecem ainda mais e à beira dos pântanos há sempre onde cair.
O ar detecta-se facilmente - ficam com os olhos arregalados, sempre bem abertos, procurando cumplicidades noutros olhares e um laivo irónico perpassa pelos cantos da boca para ficar a bailar como bandeira identificadora como que a dizer: eu também já cacei.
Espevitar os gaiatos, inocular-lhes coragem como quem atarraxa uma armadura para a vida. Eis o objectivo como iniciação sacra. A galhofa como prémio acumulado em contares diversos, uma recompensa mais condizente com o mentor, jamais com a vítima.
Aos anos que foi mas em surgindo oportunidade toca a reunir e voltar a fazer a malandrice. Todos os que já caíram, são os melhores para reproduzir com todo o requinte a malvadez.O oficiante, qual sacerdote rotinado - o Ti Alberto - combinava previamente com o seu confrade, o Zé da Paula a ida e vinda da “talhadeira”.
A construção estava quase pronta até a empena mais alta já ostentava o habitual ramo de final de obra.À improvisada mesa de refeições, duas tábuas equilibradas em dois simples cavaletes, durante a curta pausa de almoço, o capataz sugeriu ao aprendiz de trolha:
- Quando acabares de almoçar, vais ali, às Fontainhas, à obra do Zé da Paula, e dizes-lhe que vais da minha parte buscar a talhadeira que agora está aqui a fazer falta para o trabalho da parte da tarde. Muito urgente, não te distraias no caminho pois aqui a obra não pode ficar parada.
-Onde é que fica a obra do Zé da Paula?
-Mal entras na rua principal, passas a fonte, fica logo ali, ao virar da esquina.E nada de desculpas. Ele que a devolva pois já a lá tem há demasiado tempo.
O rapazito foi a correr para ir num pé e vir no outro. Nem sabia ele que teria de vir nos dois pés, que o carrego era redobrado. A combinação acertada para afinar aprendizes.A talhadeira – para quem não sabe (e a vítima nunca o sabe) - era uma pedra relativamente pesada dentro de um saco de lona cosido, fechado e sem pegas para que o carrego não fosse uma leve pena. O desconforto era uma constante nos quinhentos e tal metros que decorria o frete.
Quando lá chegou o Zé da Paula foi peremptório:
-Não deixes cair a talhadeira senão pode-se partir e o teu patrão dá cabo de ti. Olha que ela vai inteira, não me ponhas em trabalhos – disse ao despedir-se distribuindo um olhar gozão em torno dos seus homens.
A pé e num sobe e desce em calçada escorregadia, de estranhar era que a talhadeira não se partisse. Lá foi ajoujado na direcção da casa de partida, talhadeira ao ombro, sem quase parar para respirar. Ao chegar – a recompensa – o olhar malandro como máscaras coladas aos rostos num Carnaval serôdio. O riso a rebentar a toda a volta em gargalhadas de cascata num insulto incomensurável até doer lá no fundo.
Nunca mais. Buscar talhadeiras nem qualquer outro recado, nem para a obra, nem para patrão nenhum. Pouca paga e muito abuso.
E era logo ali, ao virar da esquina.

5 comentários:

Nuno Baptista Coelho disse...

Estive quase para comentar, naquele despudor arrogante que usamos mais do que gostariamos de admitir, algo assim como, Uma história da vida. Deu-me felizmente para reler, e corrijo o meu comentário: trata-se na verdade da história da vida, aqui belissimamente contada. Em boa verdade, das multiplas descrições que essa coisa fugidia a que chamamos vida tem suscitado, nenhume me ocorre que seja melhor que esta: a contínua aprendizagem de como evitar a caçada aos gambozinos. Alguns dirão que não, porque há o amor, e o sagrado, e tal, mais o clube de futebol, mas isso são prioridades que no fundo se resumem à busca do essencial, coisa que necessáriamente passa pela rejeição do superfluo, o tal gambozino que se faz mister reconhecer. Para quem desconheça a imprescindivel arte, recomendo sem reservas o curso de iniciação aqui exarado por mestre Armindo. Aprendam, que é para vosso bem que ele prega, com o adicional bónus de o fazer em belo cursivo da língua pátria. Se quiserem depois enfiar barretes, e emboscar em mata solitária o elusivo gambozino, saibam que estão por vossa inteira conta e risco, que o dever cívico dele está cumprido.

Muito boa, Armindo. Se as musas me ajudarem, conto um dia escrever textos tão significativos e uteis.

Um abraço,

Nuno.

Nuno Baptista Coelho disse...

As minhas desculpas pelas eventuais faltas de acentos nos comentários, bem como de uma ou outra gralha. A dependência do corrector do Word é assunto sobre o qual me debruçarei um dia.

Adriano disse...

Os gambuzinos, a talhadeira.
Caro amigo, nunca te imaginei a teres recordações destas, desculpa lá a pretensão. Fica o mais importante: "uma história da vida" ou "a história da vida", como diz o Nuno, verdade é que está bem contada.

PS.: Desculpa-me a mania, mas ficarão ainda umas vírgulas a discutir. Só que isso é coisa de detalhe maníaco.

Margarida Tomaz disse...

Gostei muito do modo como a história é contada, senti o suspense que se sente quando ouvimos os grandes contadores de histórias. Às tantas parece que estamos também denro da história, só que nunca cheguei a transportar uma talhadeira de pedra... Quanto a vírgulas, na minha opinião, o autor deve estudar um prontuário, nunca se sabe os gambuzinos que o esperam. O estilo, pode manter. Saramago também se burrifou e ganhou Nobel. Perdão para esta forma mundana de comentar, mas foi assim que me apeteceu.

Guiomar Fernandes disse...

Dizer o quê, depois de tão doutos comentários?
Muito bem escrito, sem dúvida.
Agora, desculpem, tenho de ir. Pediram-me que fosse buscar tinta para o selo branco.