23/04/2009

VERDADE SEJA DITA

Assim ao leme do lápis, não é fácil navegar à bolina da verdade. Recicla-se o possível da espuma que se vai rasgando, e pelo meio fica a palavra, logo essa, única certeza. Fica, ou devia, porque no fundo resta tão só o sussurro dela. Todos a cortejam, a bordeiam. Uns fazem-lhe diligente cabotagem, outros dela se apartam em rumo de ponto cardeal único, poucos a beijam e raros a possuem, tresvario de risco.
O Manel Cada Olho, porém, era homem de palavra. Coisa assumida, coisa garantida. Teve foi a infelicidade de ficar pelo beiço, logo que encarou a Panca d’Ares. Moça do centro da vila, embora residente na Rua do Poço, em casa de telha vã junto ao muro da Quinta do Saloio, não era fruta de se deixar colher por um qualquer. Dizia-se até que nem sequer do ramo alguma vez tombaria. Mas o Cada Olho, perdido de amores desde a feira dos alhos, não deu o braço a torcer diante dos amigos e do diz-se por aí. Qual galã de fotonovela, tanto lhe rondou os ares e as missas ao domingo que acabou por levar a água do poço à sua horta. A Panca d’Ares tombou do ramo, perdida de madura e de pé contra o muro do Saloio, num final de tarde e folhas douradas a rodopiar ao lusco-fusco, regressava ela de rezar as vésperas.
Não foi muito repetida, a aventura. Em sabendo que o Benfica deixara de jogar em casa, Manel Cada Olho cuidou de todos os trapinhos, sem dar azo a murmuração. Desmaiada de cores, salvo no negro dos olhos e cabelos escorridos, a mulher era um anjo, a seu ver e amar simples. Contudo, a Panca d’Ares saíra à falecida mãe. Herdara-lhe o sobrenome, o hábito, o sangue e os humores. Saia preta plissada e camisinha branca, de casa para a igreja. Ou saia preta comprida e camisinha roxa, da procissão para a Rua do Poço. Acresce, ainda, que tal como à progenitora sucedera três vezes, também a si e logo à primeira lhe aconteceu a desgraça de não conseguir levar a bom termo a gravidez. Perdido o rebento, que na sua convicta devoção a Sto. António seria rapaz e futuro franciscano, embrenhou-se de vez num esconso sentimento de culpa, que Cada Olho, então ainda de poucos copos, mas muitos calos e leiras, desistiu de entender.
Passaram-se meses e meses de velas acesas, com cada vez mais santos nas paredes e cantos da casa, de S. Teotónio à Rainha Santa Isabel e da Beata Sancha de Portugal e irmãs ao então também Beato Nuno, passando por um longínquo S. Torcato e quase todos os lá de fora, mais venerados. O todo era completado de esmolas e terços e vigílias e ainda o jejum à sexta e a catequese ao sábado. Sem calor, Cada Olho esmoreceu. Eram distantes, os fins de tarde e as folhas douradas a cantarem vésperas. Uma feira de Sto. André trouxe-lhe, em boa hora, bom negócio e melhor bebedeira inicial. Vendeu a leira, desceu à casa de telha vã habitada de incenso e imagens, deixou metade do lucro no altarzinho de Nossa Senhora das Dores, subiu de novo ao largo, apalavrou uma motorizada vermelho berrante, entrou na Perdiz Branca e acabou a noite numa das bermas da Rua do Poço. Quando o fresco da madrugada e os galos o acordaram, seguiu em direcção ao Canal e à oficina do Ti Adelino. Com o sol ainda à sua esquerda, já rolava estrada fora e aos ziguezagues, sabe-se lá para onde.
Não foi longe. Ficou-se pelos confins do Lugar dos Moinhos, em casa térrea cedida por um primo, com vista para eucaliptais e apito de comboio de quando em vez. Trocou a lavoura pela talocha e a colher de trolha e só voltou à terra anos após, ao saber que a mulher se havia finado como uma virgem, sentada num banco corrido da sacristia, de terço nas mãos. Nem um santinho lhe testemunhara o passamento. Fora-se sozinha, agarrada à sua crença. O Manel Cada Olho custeou-lhe o enterro, mas não abdicou da sua razão. Afinal, a verdade tem sempre três lados, e a ele já pouco lhe importava qual o certo, se o seu, se o dela, se o outro, mar onde só em aflição se navega à bolina.
Do funeral foi direito a uns branquinhos na Ti Constança, depois na Tasca do Jagoz, depois na Perdiz Branca, onde deixara a motorizada. Com a mão de Deus à pendura, lá chegou a casa. Adormeceu sentado num mocho, meio encostado à parede da cozinha, com os pés encharcados de sopa e tinto, entre os cacos de uma malga e de uma garrafa partidas. Daí em diante, nunca mais curou a bebedice. De capelinha em capelinha, aos tombos ou aos esses na martirizada motorizada, tornou-se popular em todas as redondezas do Lugar dos Moinhos, onde nunca alguém arriscara abrir uma taberna, pequena e escura que fosse.
Acarinhado ou alvo de troça, todas as noites tentava o regresso. Mais de uma vez cambaleou quilómetros, por não conseguir pôr a trabalhar a fiel companheira. Mas nunca desistiu, pelo menos até dar lume a uma alma penada. É que ele há frios fantasmas fumadores, posterior palavra de Manel Cada Olho. O caso ocorreu por via de uns amigos da onça, sempre prontos para mangar com ele. Dessa feita, vendo-lhe o estado, chegaram-se à motorizada e tiraram-lhe o cachimbo da vela, de modo a que não desse pela marosca. Depois, conhecendo-lhe os passos, encheram um balde com gelo e plantaram-se no escuro dos ciprestes, junto à porta do cemitério.
Ao vê-lo aproximar-se aos palavrões a cada tropeção, um deles mergulhou as mãos no gelo, tirando-as do balde apenas quando deixou de as sentir. Saiu então da sombra, curvado e perguntando:
– Ó amigo, arranja-se aí um cigarrinho e lume?
Por entre os vapores do costume, Cada Olho não estranhou nem a figura esbatida na noite nem o pedido meio cavernoso. Levou as mãos ao bolso do colete, sacou o maço de Definitivos e à terceira tremelicante tentativa estendeu-lhe um cigarro. Mais cambaleio, menos cambaleio, seguiu-se o hesitante fósforo aceso. O outro, de mãos em concha para proteger a chama, roçou-lhe nos seus os dedos roxos:
– Porra, homem! Você tá gelado!
– Pudera, amigo! Tou ali enterrado há dezoito anos, saí agora só pra fumar um cigarrito...
Parece que a resposta lhe sarou de imediato a bebedeira interminável. Dizem que foi só olhos, boca aberta e pernas para que vos quero. Dizem, mas o certo é que no dia seguinte o ouviram a praguejar junto à motorizada, que arrancou logo depois em alta rotação. Não entrou na tasca, e a quem lhe disse bom-dia tartameleou apenas a impressão da alma penada a cravar-lhe tabaco. Ninguém mais o viu. O primo foi dar com ele na cama, sem vida, uma mão na boca atulhada de cigarros e outra, cerrada, amachucando um maço de Definitivos.
Verdade seja dita, certos aqui só os nomes. E a casa nos confins do Lugar dos Moinhos. A vista é a mesma, o comboio ainda apita. Todavia, está toda em ruínas. Silvas, ninho de vespas, armário de roupa grosseira, traças e baratas. Uma televisão a preto e branco perdida no escuro, uma enxada de pontas enferrujada, dependurada numa das traves do tecto do telheiro, mesmo por cima de uma EFS 301M Dunia, cinquenta centímetros cúbicos de cor indefinida, talvez vermelha, junto a uma janela sem vidros, aberta para os eucaliptais. Um tresvario de recordações.

6 comentários:

Nuno Baptista Coelho disse...

"A Panca d’Ares tombou do ramo, perdida de madura e de pé contra o muro do Saloio, num final de tarde e folhas douradas a rodopiar ao lusco-fusco, regressava ela de rezar as vésperas."

A genialidade não se comenta, constata-se. Sobre este texto, verto o único comentário possivel: tomei conhecimento. E dizer mais seria sempre presunção.

Bravíssimo, Adriano. Esquivando-me um pouco ao campeonato dos melhores textos, não posso todavia deixar de colocar nos píncaros esta obra-prima. Que vale por muito mais do que a frase citada. Destaco, com muito agrado, o convite, que subjaz em toda a obra, ao pensamento crítico.

Se é por aí que vais, vou definitivamente contigo!

Um abraço,

Nuno Coelho.

Armindo S. disse...

SUBLIME!!!

Adriano disse...

Obrigado, Nuno e Armindo.

Mas olhem que tenho vertigens e as alturas não são lugar que preze muito. Receio que a vossa opinião seja responsabilidade a mais para um lápis tão pequeno como o meu.

Abraço.

Margarida Tomaz disse...

Pois, quando li, a palavra que me foi invadindo, num cescendo de perplexidade, foi: Soberbo!

Depois, alguém se adiantou e escreveu melhor, também numa só palavra.

Comentários para quê?

Guiomar Fernandes disse...

É difícil fazer um comentário a algo desta envergadura...
Bravo!!!

apsarasamadhi disse...

Sem adjectivações que pouco dizem sobre o muito, confesso apenas que o olhar (janúsico também, se cada olho é um par!) se rendeu de imediato ao ler o primeiro parágrafo! Sem elogios despropositados, a tua pena tange as mais intactas orbes e é um vero privilégio disfrutar de tão cristalina palavra!