18/04/2009

A festa

Debaixo de um céu azul fleumático, com a fúria ávida da minha infância, corri em direcção aos limites geográficos que separavam a Azinhaga comprida onde eu vivia e que se estendia ao Quartel Militar da Pontinha.

Num dos bolsos do meu vestido/bibe levava rebuçados brancos, de côco, embrulhados num pequeno quadrado de papel branco e vermelho - cores pavlovnianas, cujo o resultado, era o de alimentar as cáries dos meus dentes de leite.

O meu irmão atrasava a família entretendo-se com o seu arco de uma bicicleta há muito extinta. A minha mãe e os restantes elementos da família vinham afastadas uns cinquenta metros atrás de mim. Todos quisemos ir à festa, mas eu queria chegar primeiro, para ser também, a primeira a ter uma opinião.

A rua acidentada desorientava-me os passos, tinha que me desviar constantemente para contornar as poças de água e lama. Do lado esquerdo havia um chafariz público, onde a água escorria livremente, gratuita para consumos úteis e inúteis. Esta água alimentava uma rua de quase um quilómetro onde, nenhuma planta escolheria tal lugar para nascer sem correr o risco de ser repisada até, não ser mais nada.

Como eu levava alguma vantagem no caminho, fui a primeira a passar pelo o canavial. Por detrás das canas estavam pelo menos duas pessoas que trocavam incompreensíveis gemidos de prazer. Embora eu não compreende-se tal exposição embriagada, era para mim tão banal como passar pelo chafariz, ou talvez, como quem observa mulheres e crianças, carregando jarros de plástico azul cheios de água para dentro dos seus lares, era tão banal como não haver água canalizada.

Sonho muitas vezes com esta Azinhaga. Voltar a ela é como falsear a ideia que tenho da nidificação. No meu sonho é sempre noite, na Azinhaga dos Besouros. Tudo está silencioso, a viela deserta de pessoas está, no entanto, cheia, velada pela névoa e pelo lusco-fusco dos paus de electricidade, que sustentam uma lâmpada tosca e debilitada, que vigiam os meus passos em direcção à loja, para roubar rebuçados de côco.

Atravessámos a estrada para, enfim, nos encontrarmos de frente para o Quartel Militar. Estávamos em Abril, no dia 25 de 1974, a minha mãe fazia anos, mas esse facto foi esquecido por todos os membros da família, mas ela, creio, que nunca nos censurou por isso.

Subitamente, os soldados começaram a elaborar uns estranhos jogos acrobáticos para apanharem os cigarros que o povo, forçosamente, lhes queria oferecer pelas janelas diminutas do quartel - eu também já tinha fumado uma vez, mas sem dúvida, preferia o outro presente, talvez por ser mais atraente e mais colorido: os cravos vermelhos.

A festa estoirou florida de vermelho, dando um enorme ânimo ao acontecimento. As pessoas chegavam fazendo muitas para depois se transformarem num único número. Nós riamos ao querer acompanhar uma ladainha cantada (“O povo unido, jamais será vencido”) de significado para nós alheio. Cada membro da família foi prendado com vários cravos e como éramos quinze pessoas ao todo, decidimos vendê-los. E por fim, acabámos numa pastelaria a comer bolas de Berlim e a beber laranjada.
Recordo que todos gostámos da festa. Creio que a para minha mãe, foi talvez o seu melhor aniversário. Quanto a mim, não mais voltei a encontrar um lugar para surripiar rebuçados de côco.

4 comentários:

Armindo S. disse...

Olá Rosa, é óbvio que fico muito contente por estares a produzir a bom gás.
Gostei bastante do teu conto, tanto mais que é nitidamente autobiográfico e desmonta através do teu olhar de criança, um aspecto pouco focado, uma perspectiva do povo, de como afinal sucedeu o 25 de Abril.Parabéns.

Nuno Baptista Coelho disse...

"Foi bonita a festa, pá, fiquei contente...". Uma agradável revisitação do tal 25 de Abril, que teve a ver, se bem recordo, com a entrada no nosso pais dessa coisa chamada democracia, que alguém definiu já como sendo o pior sistema de governo existente, com a possível excepção de todos os restantes.

Juntando a minha voz a todas as outras (e tarde é sempre melhor do que nunca), bem vinda, Rosa. Estendo aos teus textos as desculpas que já solicitei aos demais, com a promessa de tentar quebrar em breve o meu exílio, e desdobrar-me em comentários e outras participações (até já me lembrei de escrever um texto, por exemplo). Até lá, fico satisfeito por comprovar, em contos como os teus, e dos outros participantes, que pelo menos não estou a fazer falta nenhuma.

Um abraço,

Nuno.

Margarida Tomaz disse...

Hoje arranjei um niquinho de tempo para comentar. Peço desculpa pelo atraso. Para contar a Musa anda longe...

Gostei de rever este tema, até porque andei a reboque da minha mãe, nas manifestações, de dedos em V a dar asas à minha pobre voz. Foi aí que treinei. Depois, fui para professora. Dizem que tenho uma voz bem colocada. Mas às vezes grito e já fiquei afónica.

O escritor/a constrói-se escrevendo e aqui anda engenho, falta corrigir gralhas (vício de prof.). Avante com a escrita!

apsarasamadhi disse...

Querida Rosa, gostei da possibilidade de poder transpôr e intersectar conhecimentos apenas históricos (pois nessa altura encontrava-me numa outra via láctea) com a tua voz meninil, pincelada a memórias de rubra cor e rebuçados de côco (que tanto aprecio)!
(falta apenas a correcção de algumas gralhas- a par da Margarida, também sofro desse amok!)