28/04/2009

E será verdade?

Os tribunais, não há que negá-lo, são sítios deprimentes. Em toda a história da humanidade, não se regista que tenha alguém sugerido fazer de um tribunal um lugar alegre e bem disposto, ou sequer pintá-lo de cores vivas. Pelo contrário, os tribunais são desenhados para induzir nos infelizes que a eles se sujeitam os mais tenebrosos estados de espírito. Tal coisa é particularmente verdadeira nos julgamentos de divórcio.

Ninguém caminha alegre para o seu divórcio, coisa talvez mais explicável que a alegria que tanto se usa por ocasião do matrimónio. Sendo ambos processos civis, o segundo reveste uma mais óbvia componente legal, mormente se é litigioso. E as componentes legais são coisas que, com toda a franqueza, acagaçam um bocado...

“Juro perante Deus que hei-de dizer toda a verdade e só a verdade”. Mesmo a republicanamente instituída possibilidade de delegar na sua própria honra o arcaico papel desse Deus lhe suscitava algumas questões – se já em tempos imemoriais havia descrido inteiramente deste último, acontecia-lhe por outro lado ser justamente o naufrágio da primeira aquilo que o trazia a cortes.

Fosse como fosse, era um juramento bonito. Até mesmo profundo, acabou por meditar, profundo e solene. Justamente a frase perfeita, a bacorada ideal a preceder este holocausto, a definição de mim próprio pela via judicial, o sacrifício destes tantos anos da minha vida no altar das circunstâncias. Seja então a verdade. Toda a verdade, e só a verdade, e assim me assista a graça desse estranho deus, que via de regra não tem mesmo graça nenhuma.

(O meu diabinho ainda coaxou um protesto em relação a “toda a verdade”, mas calei-o com um pano encharcado nas ventas, que isto de diabinhos é coisa que não requer senão firmeza. O juiz martelou afirmativamente o meu compromisso, e teve início a batalha pela verdade.)

O subsequente decorrer do processo acabou todavia por confirmar em todos os pontos a perspectiva cínica do diabinho, pois essa verdade total nem no próprio céu se usou jamais, sob razão maior de ser pelo menos um contrasenso. Estivesse aqui o velho Pôncio Pilatos, e seguro seria que o ouvissemos inquirir do magistrado, “Mas de que raio é que estás para aí a falar, com essa conversa de Verdade, e logo Toda, assim de uma vez, não querias mais nada. Toma”. (Não será muito bíblica a terminologia, mas é pelo menos plausível).

Ninguém mentiu, naquela sessão em que não ouvi nunca toda a verdade. Estava desde o início seguro que a não ouviria, nem que o meritíssimo estendesse as audiências pelos vinte e tantos anos que essa verdade durou, sobrevivendo quantas vezes à custa de umas quantas mentiras, não digo aqui se muitas ou se poucas, que não quero entrar por aí. Mas nem com esses anos todos lá iriamos, que as coisas gastam sempre mais tempo a relatar do que aquele que gastaram a acontecer.

Muita questão de facto foi ali debatida: quem pôs os cornos a quem, ou seja, questionando de forma mais técnica, se a requerida assistência foi devidamente prestada, os deveres cumpridos, ou pelo contrário negligenciada a paternidade, todas essas clausulas do contrato em apreço. Dito de outro modo, quem pôs os cornos a quem.

É um pormenor que sempre se exagera, esse dos cornos. Ora veja-se, dá um esperançoso casal início a um jubiloso matrimónio, que em devido tempo celebra sob a égide da vaca sagrada, tida em grande apreço por múltiplas culturas; orbita o mundo umas quantas vezes e, quando mal se precatam, porfia cada um dos nubentes no dissimulado esforço de enfeitar o parceiro com os adornos com que se exibia o esposo da dita bovina. Chegam por fim a vias de facto, e é mais certo que nascer o sol à direita de quem está virado para Braga, que o pomo da discórdia será a frondosa medida da armação que cada um dedicou à cara-metade. Ora, mesmo o boi, que sob o mais nobre apodo de toiro é corrido nas arenas, tem o discernimento de vislumbrar que o seu problema de bandarilhas decorre sobretudo do toureiro, e não do metal com que os ferros foram feitos. Mas a inteligência de um boi não está ao alcance de todos.

Também nós revolteamos sobre esse ponto, confesso-o. Acabámos por concluir que ninguém encornara o parceiro, medida talvez insalubre do que fomos nós dois.

Inquietei-me, confesso, com certas perguntas que poderiam muito bem ter sido feitas, perguntas de cuja resposta não me posso gabar.. Mas não, nenhuma dessas me foi inquirida, e a coisa veio a acabar na sentença, o que me têm dito ser frequente, nisto de tribunais.

A pancada do martelo, ao que parecia, fazia de nós duas pessoas apartadas, convivendo contudo em algo que dava pelo nome legalistico-abstruso de paternidade partilhada, forma jurídica de explicar que a Martinha era minha em certas ocasiões, da mãe em outras, de si própria vez nenhuma.

Saí do moderno edificio a pensar naquilo da verdade. É que eu vivi-a, essa verdade, e ela não esteve presente naquele tribunal, nem vejo como poderia ter estado. A Verdade é coisa fugidia, bem sabemos, e acaba por ser consensual que cada um tenha a sua. Nós lá nos safámos com o melhor arremedo que cada um podia arranjar, e a coisa por sorte não descambou. Mas a Martinha é que vai ter de viver com isso, não somos nós.

Não, nós apenas teremos de viver connosco, com a nossa realidade que aquele tribunal arranjou maneira de definir, por mais impossível que parecesse a tarefa. Com uma verdade de totalidade discutivel, mas que está decretada e transitou em julgado, sendo portanto para cumprir. Não sei mesmo se não seremos nós os mais traumatizados por tudo o que se passou.

Mas não, isso é um disparate. Nós somos adultos, e os adultos não se traumatizam. E essa é que é a verdade.

5 comentários:

Margarida Tomaz disse...

Gosto de todas as histórias que me põem a pensar e a esta não lhe faltam argumentos.

Uma ideia em que nunca tinha pensado tão arquitectonicamente: os lugares onde mais se discute a verdade, são os mais deprimentes, seja em ditadura, seja em democracia. E quando exposta ao sol, talvez seja mesmo aquilo que viram os olhos de Eça, "o manto díáfano da fantasia".

Guiomar Fernandes disse...

Não tenho qualquer dúvida que a verdade sempre andou arredada dos tribunais. Talvez por isso, as partes não prestem o juramento legal... pelo menos mentem, mas não juraram dizer a verdade.
A taciturnidade da verdade, a sua imponência e o seu desconforto.

PS: Por deformação profissional, tenho pena que me tenham ressaltado várias falhas processuais, mas está muito bom.

Armindo S. disse...

Humorístico q.b..Genial, sempre. Nuno já há muito apetecia ler um original teu.Verdade!

Adriano disse...

Deves ser bruxo, Nuno.

Claro, no sentido engraçado do povo: acertaste na verdade que me estava mesmo aqui debaixo da língua. Vou é ainda ter de escaranfuchar (palavra feia. é assim que se escreve?)no sótão a memória da coisa.

Abraço e força.

apsarasamadhi disse...

mais do que o tema (que é sempre caro a qualquer alma lusitana) o modo, a cor e a forma do escrito içaram a consciência à realidade espumosa e apolínea desses dias de verdade! A ausência dessa verdade (tribunais e afins burrocráticos) é que poderá trazer o ventre a VERdade. Parabéns Nuno que tens o (talvez doloroso) dom de sublimizar o quotidiano!