21/07/2009

Estilhaço de asno

1-estilha grande
2- cada um dos fragmentos ou lascas a que fica reduzido o vidro, a madeira, a pedra, após impacto violento ou explosão.
3- pedaço ou lasca de qualquer coisa; estilha ou farpa.
António Houaiss


Ninguém diz “estilhaço de asno” ou “ela era um grande estilhaço”. “Pedaço de” ou “grande lasca” já podem dizer.

Notícia de primeira página:
“Ao dealbar do dia de hoje, foram encontrados, na linha de Cascais, junto à estação de Santos, fragmentos de um corpo trucidado, até ao momento de identidade desconhecida. Pareciam estilhaços de uma explosão numa área de cerca de cem metros quadrados. ”


Nesta época neo-barroca, tão bem diagnosticada por Lipovetsky, onde tudo se pode conglomerar ou desagregar e onde toda e qualquer unidade pode ficar comprometida, desmembrada ou até perdida em favor de toda e qualquer corja de estilhaços resta-nos distribuir farpas ao jeito de estilhas e seja o que Deus ou os homens quiserem que, a mim, já tanto se me dá. E como dizia a minha mãezinha: a este rapaz tanto se lhe dá que o rio corra para juzante ou para montante. Outro sinal dos tempos: a geração da indiferença.

Quando nos contaram, em segredo, as razões para “aviar” aquele corpo ficámos espantados com tão absurda determinação.
Ao ouvirmos tal, inclinámo-nos para a denúncia de semelhante caso. Infelizmente o tempo não corria a nosso favor e menos ainda a favor da vítima.

Foi descoberto um manuscrito número 143 no espólio de Ricardo Reis, num baú encontrado ao começo da Rua do Salitre. Estava misturado com cânfora e com uma garrafa de Barca Velha e, dito deste modo, não há como experimentar uma brisa vespertina para as bandas do Mar da Palha. Ali, na boca do Cais do Sodré, salpicado de crepúsculo e de ruídos diversos, de cheiros de especiarias e azedos retardados.
No fragor da refrega, ouvia-se de modo sincopado como num motor cansado:
- Dá-lhe para que não se levante.
- Dá-lhe outra vez...
- Dá-lhe para que não se levante.
- Dá-lhe outra vez ...
A um ritmo deste não se levantaria nem que o despertador tocasse cem vezes ou que passasse um tsunami chegadinho de um sismo de grau oito.
- Há sacos de batata que enfardam menos.
- Ainda lhe aviava mais mas estou a ficar exausto.
Exausto de “aviar” ele há cada cansaço.
O rosto do homem era uma papa ensanguentada e permanecia inanimado.
- Estilhaço de asno, está quase a ficar dia, é hora de o puxarmos ali para o meio da linha.

Fragmento de notícia de última página-
O manuscrito 143 do espólio de Ricardo Reis, recentemente encontrado num baú no início da Rua do Salitre, terminava com uma frase enigmática:
- Estilhaço de asno, está quase a ficar dia, é hora de o puxarmos ali para o meio da linha.

2 comentários:

Margarida Tomaz disse...

Surpreendente, este escrever em fragmentos, como quem se diverte lá no Alto etéreo, jogando estrelas cadentes, deixando o leitor num arfar de fim dos tempos, em demanda da salvação, em naus de pedaços de pensamentos… E o mais curioso, é que, como num romance policial, fiquei mesmo intrigada com o raio do estilhaço de asno… Quem diz o quê a quem? Fantástico! Ou, se me é permitido, espantástico!

apsarasamadhi disse...

Embriagante esta escrita que nos alteia o olhar até ao baú pessoano com arquejos de sonho a rasgar poesia em tragos de vinhos e páginas soltas e de repente...zás trás... nos desperta nesse estilhaço de rua, à esquina de um cais, para a destruição desse olhar a ser pontapeado e arrastado junto ao mesmo cais, ao mesmo marulhar. Intrigante não é? como o olhar se torna cúmplice destas pulsões com cheiro a branco e vermelho. Impressionante!