17/07/2009

Estilhaços de Uma Vida

Faziam anos de casados. Ela estava sentada na sala de jantar. Mesa posta para dois, com copos altos, velas (ainda apagadas), uma garrafa de vinho branco num frapé de casquinha, com gelo quase derretido. Num dos pratos encontrava-se uma caixa preta pequena, com um pequeno laço dourado.
Ela levantava-se, amiúde, e assomava à janela aberta, por onde entrava um ar cálido, naquela noite de estio.
O relógio de parede batia as dez da noite. A mulher, à janela, espreitava em todas as direcções e tornava a sentar-se. Outras vezes dirigia-se à mesa, retocava a disposição dos guardanapos ou das velas. Sentava-se novamente com um olhar de pesar.
Passava já das vinte e três horas quando ouviu a chave na porta. Ergueu-se de imediato e ajeitou o vestido, já um pouco amarrotado.
Ele entrou torpe na sala. Fato desalinhado, gravata laça ao lado e exalando um odor pestilento.
- Olá... o jantar ainda não esta na mesa?
- Boa noite. Está pronto, deixei-o no forno para não arrefecer. demoraste...
- Alguém tem de trabalhar cá em casa, já que tu não fazes nada.
- Eu trabalho - retorquiu ela numa voz sumida.
- Passas oito horas por dia a engatar gajos no escritório. Ou pensas que eu não sei?
- Deixa-te dessas coisas - disse num tom de suplica. Respirou fundo, forçou-se a um sorriso e prosseguiu - sabes que dia e hoje?
- Mais um dia como os outros, em que chego a casa e estas sentada na sala.
Ela tentou ignorar o comentário, embora sentisse as pernas a tremer.
- Fazemos vinte anos de casados. Preparei um jantar especial.
- Aprendeste a cozinhar ao fim de vinte anos?! O que e que há para comemorar? Aturar-te há este tempo todo? Andares metida com todos? Seres a maior vaca do bairro?
- Pára! Não aguento mais! Eu nunca andei com ninguém, há vinte anos que te sou fiel e que aturo as tuas bebedeiras e os teus insultos.
- Insultos?! Sua vaca de merda! - e desferiu-lhe um murro no olho direito, deitando-a ao chão.
- Desculpa, não faças isso, por favor!
- Não faço isso o que? Sua cabra. Levanta-te e vai buscar o jantar.
Ela levantou-se do chão, quase sem equilíbrio e foi a cozinha. Voltou com um tabuleiro que continha carne assada.
- Isso tem aspecto de seco. Deve estar uma merda (para não variar).
- Está pronto há mais de três horas, acabou por secar no forno.
- Não fazes nada que preste! - dizendo isto deu um pontapé na mão direita da mulher, fazer voar o tabuleiro.
Agarrou-a pelos longos cabelos já grisalhos e atirou-a contra a parede.
- Por favor, pára! Peço desculpa. Vou fazer-te outra coisa para jantares.
As lágrimas rolavam sobre as faces feridas. Na sua mente passavam imagens de agressões anteriores, das vezes que tinha acabado no hospital, dizendo que caíra das escadas.
- Fazeres outra coisa para quê? Seria outra merda! Tu não sabes fazer nada!
- Então deixa-me ir embora… - suplicava em surdina, encolhendo-se num canto da sala.
- Isso querias tu, sua puta! Para poderes andar com quem quisesses. Já te disse que se não fores minha não serás de mais ninguém! – dizendo isto, desferiu-lhe dois pontapés nas costas. Levantou-a por um braço e arremessou-a contra a cristaleira que caiu sobre ela, juntamente com uma chuva de estilhaços de vidro que mais não eram que os estilhaços da sua própria vida.
Não foi de mais ninguém… Foi apenas dele… aquela vida que ele estilhaçou até a transformar em pó.


4 comentários:

Margarida Tomaz disse...

Começamos a ler e não queremos parar, face à força das palavras em bruto de um quadro que, infelizmente, continua bem real na sociedade portuguesa. Uma história que vale a pena ler e que nos deixa nos antípodas da indiferença.

Armindo S. disse...

Fizeste-me chorar em tão poucas palavras. Não porque tivesse tido exemplos assim em miúdo -felizmente - mas porque é Literatura. E eu sei bem o que andaste p'ra'qui chegar.

Rosa Matilde disse...

Infelizmente a ficção não supera a realidade, são no entanto, ambas, permutas de um mesmo quadro.

Já agora – apesar de este não ser o lugar ideal – aproveito para agradecer as críticas que me fizeram. Não foram em vão, igualmente relevo a forma como as transmitiram.
Darei notícias. Breve…

Obrigada Guiomar!

apsarasamadhi disse...

Arrepiante a força das palavras, a acutilância simples de tão brutal descrição. Senti o eco retumbante de todas essas vozes, corpos, rugas, lágrimas, sonhos e medos. A escrita tem sobretudo essa função: a catarsis da humanidade através da fundura do estremecimento.