27/07/2009

No vazio nada se teme

Há um tempo atrás vivi uma cena sinistra na minha rua quando me preparava para levar a minha filha ao infantário.
Um polícia que andava a multar carros na zona contemplou-me e pediu-me os documentos. Informei-o que não os tinha comigo, que o carro era do meu marido, mas que mais tarde, depois dos meus afazeres os apresentaria na esquadra mais próxima. Mas eis que, quando eu ia a entrar para o meu carro, o polícia com ar de louco meteu-se à frente a gritar, que eu só abandonaria o local por cima do seu cadáver.
Fiquei espantadíssima com a sua reacção, mas encontrei firmeza de espírito e disse-lhe que me ia embora, ele que desse seguimento aos trâmites que um processo destes requer. Tentei entrar no carro, mas ele meteu-se à frente da porta vedando-me a entrada. A situação estava a ficar cada vez mais estranha e incoerente. A minha filha começou a chorar e pedi ao estranho homem – que por coincidência se parecia com o meu marido – que ma deixasse levar para casa. Mas o homem sempre aos berros negou-me essa espécie de favor como de algo absurdo se tratasse.
Passados uns cinco minutos, tentei, estranhamente, entrar pela porta de trás do carro, e mais uma vez ele impediu-me a entrada. Tive esperança de poder enganar um louco, subestimando-o. Nesse momento comecei eu a chorar de raiva. Empurrei-o, forçando a entrada do carro e sentei-me ao lado da minha filha, e, numa última tentativa, de o chamar à razão, pedi-lhe que contactasse imediatamente uma patrulha da esquadra.
A sua atitude alterou-se totalmente, ficou mais calmo e num tom informativo disse-me que estava somente a cumprir a lei, pegou no aparelho de comunicação e cheio de orgulho, chamou os agentes da brigada de trânsito ao local.
Enquanto os seus colegas não chegaram, o louco, insistia na apresentação dos documentos, nem que fosse verbalmente – mas eu não entendia o que significava “verbalmente”, mas também não lhe pedi explicações e por fim, adoptei por uma posição silenciosa e fiquei dentro do carro uma eternidade à espera que a brigada chegasse. Entretanto a minha filha não parava de chorar ao mesmo tempo que me dava a conhecer o seu maior receio: que nos prendessem. Tentei acalmá-la com beijos lacrimosos. E quebrando o silêncio com o polícia, pedi-lhe uma vez mais, permissão de a levar a casa para que ela não assistisse à chegada dos outros agentes. Os meus soluços não me deram firmeza à voz, mas eu pouco me importei com esse pormenor e disse-lhe que tanto eu, como a criança, estávamos cheias de medo, já que ele não me subtraía a esse desconforto, que ao menos a poupasse a ela. Ele não se comoveu e acabei por insultá-lo dizendo-lhe que não era bom da cabeça. O doido, na sua inflexibilidade continuava a afirmar que eu não saia dali, ao ponto de se pôr à frente do carro de pernas e braços abertos, desvairado, que tanto causava dó, como um medo sem definição.

*

Na ala Este do Hospital Sonhos Felizes, o meu relatório onírico foi entregue ao terapeuta no serviço de urgência. Por minha parte, gostaria de ter tido a possibilidade de acrescentar mais alguns pormenores, mas o doutor foi peremptório ao informar-me que este não era o departamento indicado para interpretar sonhos. Ao médico não lhe interessava a simbologia onírica mas a sua correcção e portanto, o que tinha lido no relatório bastava-lhe para concluir um diagnóstico e prescrever um tratamento. E nestas condições, se eu ainda estivesse interessada, em poucos minutos daria início à sua tarefa terapêutica.
Deitaram-me e adormeci sem qualquer dificuldade, como se tivesse entrado num jardim de ócio e me tivessem furtado as vontades mais elementares. E daí em diante revejo-me no mesmo sofrimento: o polícia a anotar as matrículas no seu bloco. Neste segundo sonho queria ir-me embora antes da aproximação do louco. Mas o acto de abandonar os sonhos é acordar e creio que o terapeuta pressentiu a minha intenção de despertar e para meu bem, não o permitiu. A minha preocupação fundamental era a minha filha, mas ela já não estava no banco traseiro, havia, isso sim, muito material fotográfico e fotografias dela reveladas.
Agora, o polícia que antes estava louco já não tinha a mesma figura desvairada nem se parecia com o meu marido. Aparentava uma modesta presença perante um outro condutor que discutia com ele por causa de uma multa injusta.
Meia dúzia de metros separavam-me do polícia, os meus poros alargaram-se para esvaírem gemidos através da pele e não da garganta, o débil estímulo da minha mão precipitou-se para o manípulo da porta do carro com a intenção de a abrir e pôr-me em fuga.
Mesmo a dormir, deduzi que o médico me injectava substâncias cujo efeito actuavam para me retirarem a força física e mental. Sentia-me cada vez mais lânguida. E que tal se me baixasse para que o polícia não me visse? Mas não havia espaço para me esconder, o terapeuta conhecia demasiado bem a sua profissão e impediu que me escondesse, colocando quantidades absurdas de rolos fotográficos espalhados por todo o automóvel.
Eu não estava nada satisfeita com o rumo que este sonho estava a adquirir. Se no primeiro experimentei sentimentos medonhos, no segundo, sofri o mestre de todos eles: a angústia. Que me desorientava e paralisava. Nem a vontade frustrada de chorar desaparecia. Que terapia seria esta que não tinha nada de tranquilo? Comecei a ter sérias dificuldades em acreditar que a denominação do hospital – Sonhos Felizes – fosse de facto uma realidade.
Optei por me manter calada quando o polícia, que agora já não evidenciava sinais de loucura, me cumprimentou e solicitou gentilmente que o fotografasse. Disse-me que precisava de tratar de uns documentos e que me tinham recomendado uma boa fotógrafa. Perguntou-me ainda, se o achava apresentável e bem penteado. Eu começava a pensar que o polícia estaria agora mais louco que no primeiro sonho e receei que a qualquer momento ele endoidecesse definitivamente. Olhei-o e concordei fotografá-lo. Mas, surpreendentemente, quando voltei a retirar a objectiva do meu olho transpirado, o polícia tinha mudado de fisionomia.

O homem diferente era um outro polícia que se apresentou como chefe da brigada de trânsito. Nem me atrevi a colocar qualquer questão ao novo homem que surgiu por encanto, e, silenciosamente, questionei-me se eu ainda fazia parte desta bizarrice.
O chefe, no início tinha um aspecto indignado e perguntava – onde está o meu homem, onde está o meu homem? Neste momento percebi que eu não falava, não por medo, mas porque o doutor me havia retirado essa faculdade. E na falta de voz, apontei para a máquina fotográfica para que o chefe adivinhasse o que lhe queria transmitir. Mas ele não entendeu. Pediu desculpas umas atrás de outras, repetindo a dobrar cada frase – olhe que nem todos os polícias são iguais, olhe que nem todos os polícias são iguais – e mais duas vezes – pode, se quiser apresentar queixa, e aconselhou-me a sair dali sem demoras, mas antes, pediu-me o favor de o fotografar.
E assim fiz, submissa, tal como nos sonhos: orientei a objectiva, enquadrei a figura do chefe na mira, alinhei as coordenadas e a luminosidade, pressionei o botão do lado direito, a máquina disparou e o chefe desapareceu.

11 comentários:

Nuno Baptista Coelho disse...

Kafka revisitado e melhorado!... que mais se pode dizer?

A grande arte de Kafka é precisamente impedir que se compreenda o que é sonho e o que é real, e não é uma escrita fácil de dominar. Talvez ele se visse obrigado a fazê-lo porque não sabia distinguir uma coisa da outra. Talvez o fizesse porque não há mesmo nada a distinguir.

Eu próprio vivo, desde há algumas semanas, parte do tempo nesse universo, e confesso que me fizeste sentir bastante medo. Alguém estará seguro em algum lado, mesmo dentro de si próprio?

Parabéns por um belíssimo texto. E que faz medo. Um destes dias vou propor o tema "milionários", talvez nos consigas fazer isso também.

Armindo S. disse...

Os teus contos - sempre pude constatar - têm sempre muito de surpreendente. Que se pode pedir a um conto?
É claríssimo que continuo a gostar!

Guiomar Fernandes disse...

Medo?! Eu diria pânico!
Um conto fantástico, com a qualidade a que a Rosa já nos habituou.
Parabéns!

Margarida Tomaz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Margarida Tomaz disse...

Um erro crasso fez-me apagar o comentário anterior. Espero que não me atirem para a fogueira. Se for preciso, pago em Magalhães. É que encontrei um no contentor ecológico do meu bairro. Tem fracturas, mas ainda preserva o disco rígido e um som roufenho que se houve nas redondezas, todos os dias às mesmas horas: me... huuuggogogogo tchavez... quiero um nueco computador... p..pppp...pp...por favor...

Entretanto, deixem-me corrigir o TPC.

Margarida Tomaz disse...

E Rosa aqui vai a minha sincera opinião:

Na realidade, vale sempre a pena ler quando ficamos a recriar o mundo por outos imaginado. E esta história deixou-me a pensar no quanto o absurdo dos sonhos espelha sagaz e perniciosamente o drama de máscaras, onde indefesos coexistimos...

Quando escrever é divertido, o leitor também se diverte... Foi o que senti e por isso fico a aguardar mais histórias da Rosa.

Guiomar Fernandes disse...

Guida, necessitas mesmo de mudar de computador, o novo comentário também tem uma gralha...
(este nota-se mesmo que foi gralha)

Rosa Matilde disse...

Os vossos comentários foram muito estimulantes. Agradeço-vos por isso.
Confesso que me senti muito insegura em continuar a participar no blogue, estava a um passo de me ficar num só papel: o de leitora. Para além de me roubarem as ideias, vocês têm escrito coisas realmente excepcionais, em muitas direcções.
Eu sei que a imaginação e as ideias não bastam, eu sou a primeira ceguinha a dar-me conta que preciso de trabalhar muito a construção do português...
Quanto às gralhas da Margarida – tive uma leve certeza que te corrigisses. Assim o fizeste, e, eu senti-me sem “medo” de ti. Antes de te ler pensei: exigente como é, ora deixa cá ver o que fiz eu de errado desta vez… mas apenas cedi ao contentamento de não ter um Magalhães.

Temos que combinar outro jantar – desta vez, se ninguém me fotografar – gostava mesmo de aparecer e rir convosco.
Até breve

Guiomar Fernandes disse...

Rosa,
a qualidade da tua escrita integra-se perfeitamente no grupo. Qualidade não te falta! Não estás aquém de ninguém.
Quanto a um novo jantar, estou sempre pronta, de preferência com o grupo todo, sempre são mais gargalhadas.
(Já agora, noutro local, porque o jantar foi excelente, se não contarmos com a comida e com o preço)

apsarasamadhi disse...

Uma das temáticas mais hipnotizantes da literatura: o combate titânico entre o sonho e a realidade!
Transportou-me até aos enredos de Hitchcock no Spellbound, com a contribuição onírica de Dalí! Um dos meus predilectos!
Parabéns!
Mais!

Adriano disse...

No vazio eu acho que temia tudo.
Salvo se o preenchesse de palavras como aqui o escreveu a Rosa.