13/07/2009

Estilhaços à la minuta

A mesa era rectangular e trivial, banalíssima mesa de café, completa com o cinzeiro e o dispensador de guardanapos fazendo de anfitriões a umas quantas visitas de ocasião, o telemóvel e o maço de cigarros e as chaves do carro, aos quais se juntava um copo de cerveja quase vazio.

À mesa sentava-se um homem trivial, esboçado em linhas de certo modo rectangulares. Um primeiro relance não revelaria senão um vulgar trabalhador de colarinho branco, nó de gravata a encabeçar um fato completo, onde relevava contudo alguma porção da medida áurea de Fibonacci no corte rectangular dos ombros. A raiz quadrada de dois espreitava dissimuladamente por trás da aparente racionalidade da sua figura, e escorriam gráficos hiperbólicos das curvas correctas do seu nariz. Tudo considerado, é bem possível que Euclides não desdenhasse escrever um teorema inteiramente dedicado àquele homem, mas seria sempre um teorema banal.

O telemóvel escolheu uma obscura canção dos anos setenta como forma de estilhaçar o silêncio, projectando a mão do homem num movimento irreflectido, convulsão que desinquietou o maço de cigarros, tilintou o molho de chaves, lançou por fim o copo onde restava um fundo de cerveja numa parábola solta e larga, para a qual o recipiente não fora jamais desenhado. Oblívio a esta sucessão de eventos, o homem premiu o botão e atendeu a chamada.

Era do emprego, e era grave. De uma tal gravidade, aliás, que aquele já não era sequer o seu emprego, nem alguma vez voltaria a sê-lo. Aturdido, sufocado, o homem escutou de dentro da sua gravata a voz irritante que falava de sinergias e ópticas de gestão e racionalização de eficácia, e possivelmente também de ananases. Em pleno ar, o copo descrevia uma reviravolta sobre si próprio, enquanto convergia para o irrecusável destino.

A conversa era inútil, sendo o seu desfecho tão inevitável como a queda do copo. Nada disso bastou para deter a copiosa prolixidade da voz, que tergiversava agora sobre paradigmas. O copo, que batera esquinado e ressaltara, partia novamente em voo.

Uma nova oportunidade, insistia a voz, um recomeço e uma chance de fazer diferente a sua vida, essa vida que ninguém lhe perguntara se queria mudar. O copo fez um novo ressalto, sob o olhar embasbacado dos poucos circunstantes. Enquanto descrevia a curva final, a voz entreteve-se a infectar a conversa com o optimismo gratuito de Richard Bach e Saint-Exupéry. Maquinalmente, sem tomar sentido no que escutava, o homem foi concordando com tudo, e considerou provável que deus abrisse uma janela sempre que fechava uma porta, apreciou a perda do sol que lhe revelava as estrelas, e tentou ver com o coração a vil iniquidade que os olhos lhe haviam já revelado.

Depois caiu em si, num rompante que tinha a força espontânea de uma explosão, e despedaçou o telemóvel sobre os estilhaços do copo que tentara voar e falhara, exactamente como ele. Com admirável circunspecção, pagou a sua conta e saiu do café. É argumentável, mas duvidoso em extremo, que tenha alguém compreendido a mentira da frase anterior, onde se diz que ele saiu do café. Deixando de lado as conveniências, a verdade é que a porta se abriu num ranger fatigado, e dela irromperam estilhaços de uma existência agora finda.

O processo foi todavia pacífico e, como tantas coisas importantes, acabou por passar inteiramente despercebido.

4 comentários:

apsarasamadhi disse...

A excepcionalidade comum, diria até universal, do anonimato do rosto, das mãos, dos desejos por cumprir e das não poucas escolhas que nunca surgem e cinzelam a vida a um absurdo con-sentido. Fragmentos de pura poesia que içaram a memória aos rasgos de Kiéslowsky: da melodia azul (de quem não escolhe fora de si porque alberga em si todas as escolhas)ao silêncio branco de quem por dentro estilhaça dentro e sorri aos morangos e ananases silvestres, à medida ou sem medida de Bergman.E o vermelho? falta-nos o vermelho da submersão, das flautas encantadas dos vagabundos e das malas de cartão! Grata, Nuno, por uma nova constelação!

Armindo S. disse...

Não,não é prosa poética.
É poesia pura em corpo de prosa.
Que requintado alambique consegue apaixonadamente produzir tão sublime fluido?
Grande abraço, Nuno.
Krzysztof Kieslowsky sim, mas sob a batuta de Zbignew Preisner em La Double Vie de Veronique.
(que inveja)

Guiomar Fernandes disse...

É difícil comentar, depois do que já foi dito.
Uma escrita pictórica e cinematográfica.
Parabéns!!!

Margarida Tomaz disse...

Este texto, já devida e brilhantemente comentado, trouxe-me à memória um poema de Miguel Torga sobre o trabalho dos poetas, em demanda da pedra filosofal.

Parabéns!