21/10/2009

O penhasco

O PENHASCO

Ao volante, de mãos inflexíveis, o homem conduzia a carrinha com os olhos fixos no horizonte dividido. O som estafante do motor ressoava-lhe no cérebro enrijecido. Durante a viagem, lembrou-se de um filme francês, do silêncio, das pausas, do tempo das intermitências, e respirou fundo, entre os solavancos inebriados do motor.

Em frente, o penhasco elevava-se na linha do horizonte e pintava a negro aquele pedaço de céu adormecido na claridade do azul. Enquanto conduzia, o homem vislumbrava um rasto de névoa dos ventos de sudoeste, entre uma vastidão de areia, entrecortada pela linha da estrada. Os pensamentos transportavam-no a casa e à magia das filhoses, do crepitar da lareira, às saudações enrubescidas e à presença animada das crianças. O penhasco, continuava ali, negro, cortando a linha crepuscular. A certa altura, pareceu-lhe que estava próximo da fronteira e acelerou mais um pouco. A velocidade fê-lo sentir-se voar e, por momentos, fechou os olhos e sofreu a dureza do vento na pele. Aqueles segundos de olhos fechados pareceram-lhe uma eternidade… Ao som de Money for nothing, voltou à realidade e atendeu o telefone. Lá fora, um escorpião subia pela janela do pendura. Uma voz de mulher lembrou-lhe da ceia e da reserva de tinto que todos os anos o patrão lhe oferecia. Foi então que o homem reparou no escorpião e fechou a janela. O escorpião nem se moveu. Esticou-se o mais que pode e, com a gravata de que se havia libertado no início da viagem, bateu freneticamente no vidro, tentando espantar o lacrau que se movia lentamente. Desesperado, acelerou e o bicho encolheu-se e parecia ainda mais agarrado à janela. Depois de uma longa recta de horas, passou uma curva e, inesperadamente, a escuridão abateu-se sobre a viatura. A surpresa brusca da alteração de luz atordoou-o e sentiu o corpo soltar-se. O carro capotou e o homem foi projectado para cima de uma duna, a 9 metros da carrinha. Passaram segundos, minutos... e o vento evolara-se no enigma da viagem. Um lacrau retomava elanguescido a direcção da viatura. Uma voz de mulher, em pânico, fazia-se ouvir na histeria do telemóvel ensanguentado.

Em redor, o silêncio cortante do penedo deixou-se envolver lentamente por uma miríade de estrelas. Por detrás do penedo, a cidade acendera as luzes e abria as portas das igrejas aos cânticos de Natal.

O homem, atordoado, abriu os olhos e, lentamente, levantou-se e caminhou na direcção do penedo.

3 comentários:

Rosa Matilde disse...

Estou encantada! Sinceramente.
Por vezes não se consegue explicar a arte porque implica justificar a estética - a nossa, estética e não a colectiva - , muitas vezes falha o juízo e até a aproximação daquele que concebe a arte, isso seria explicar várias teorias que a arte carrega e em concreto, responde muito pouco… tirando isso, suspeito que está na nossa natureza deixar-se inebriar pelos abismos do escorpião como um inimigo imaginário.

apsarasamadhi disse...

Poder de descrição exímio:

é possível rever-me a caminho recto, nesse ângulo curvilíneo onde emerge esse penhasco-pessoa, como testemunha, a rasgar o idílio crepuscular inundado de memórias melífluas do que poderia ter sido esse final de dia se o escorpiónico lacrau não tivesse sido cúmplice tenaz (não admira!)de tão fatídica viagem. Porém, como até gosto de caudas escorpiónicas e aliado a isso o gosto por defesas indefensáveis ou realidade limítrofes, devo admitir que caso fosse o escorpião, e ficcionando uma consciência escórpico-iniciática, pensara: pudera eu ter um vidro ou janela para me elidir dessa viagem e, caso fosse impossível, aventava a mil a cauda sobre mim própria, sem tremores ou ventanias de vontade (é isso que me fascina e atemoriza num escorpião: o animal que proCria, ao pôr fim à vida)!

Guiomar Fernandes disse...

Fantástico! Todo o conto; o contraste entre a vastidão do local e os pormenores do interior do carro, a transformação de uma vida por um insignificante lacrau... Enfim, uma ecrita bela, envolvente e assustadora!