23/06/2009

A foto esmaecida

“A fotografia estava tão esmaecida que quase nada se notava, por isso, estranhava-se a conclusão a que as autoridades forenses tinham chegado.”
- Era a minha avó – dissera ela.
“Um crime hediondo perpetrado em condições insólitas.” – trazia o jornal a abrir.
O dia tinha chegado ao fim e a chuva não conseguira lavar a imagem do sangue seco nas lages e nos mosaicos da saída para o quintal onde dias antes tudo acontecera.
As sebes altas, aquele feitio introvertido e as habituais ausências prolongadas inibiram a vizinhança de inquirirem muito tempo antes. Teve que ser o intenso odor a denunciar a trágica ocorrência. A raiva permanecia à solta.

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A fotografia estava tão esmaecida que quase nada se notava, por isso, foi com acentuada precisão do olhar que reparei no bebé ao colo daquela mulher idosa que sorria.
Um olhar de amor, proveniente de um passado tão remoto que ficou preso no tempo profundo onde as memórias lutam com a infância para permanecerem indemnes, era dirigido a quem lhe tirou a fotografia e não a mim.
O amor que distribuiu foi sempre o Amor, primeiro de filha, depois de mulher, e a seguir a imagem naquele anúncio tatuado no soldado que foi à guerra e que tendo conseguido voltar lhe deu um neto, portanto também amor de mãe e por fim o amor a mim, esse sublime amor que pude experimentar antes de se sumir numa fotografia sépia ou num quadro feito de brancos, ou na memória desses objectos e pelo meio muitas dores e angústias, incertezas até ao confronto último preparando a ausência que, desde então, sempre me veio doendo.

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Sentados na esplanada virada ao mar, quem observava veria um casal a espalhar lágrimas num jornal aberto sobre a mesa ao ritmo das vagas que salpicavam as vidraças.
Algo tinha nascido duas semanas atrás ou estava a nascer de cada vez que os olhares se cruzavam e tão diferentes podem ser dois olhos ou dois pares.
Duas semanas atrás riam-se quando se cruzaram com os meus e riam-se quando, ao mesmo tempo, nos voltámos para trás e riam-se quando corri para eles para perguntar de quem eram os olhos que se riam assim para mim. Tinha sido tudo tão rápido.
Agora molhavam o papel aberto sobre a mesa e até a fotografia sépia que eu tirara da carteira e colocara sobre o jornal.
Duas avós, dois destinos tão diferentes.
Que descendência?

2 comentários:

Guiomar Fernandes disse...

Brutal, Lindo, Comovente!
Parabéns!

apsarasamadhi disse...

A redenção da vida na força dos contrários (mas não contraditórios): Redenção e Prisão. Olhar e Cegueira. Morte e Amor. Identidade e Alteridade. Três quadros fotomórficos a romper o gosto por fotos antigas com cheiro a cânfora e a tantas viagens (dentro) prometidas!

Grata, solarmente grata, Armindo!