16/06/2009

A Foto

Quando entrei na sala das luzes todas acesas, comecei por me rir para as paredes. A foto, dissera o homem que provavelmente não existe, naquele murmúrio que sibilava rouco do fundo do capuz cinzento. Procura a foto, ordenara com firmeza, continuando depois a não existir. Na sala que tinha as luzes todas acesas, uma imensidão de retratos cobria cada palmo de estuque, ocultando a própria cor dos muros.

Se essa cor seria vista por alguém, acaso as fotografias lhe consentissem espaço para tanto, era coisa que ficava ainda por determinar. Não parece com efeito provável que uma pouca de tinta mural, por melhor que a houvessem aplicado, lograsse fazer ouvir o seu brilho por entre aquela sinfonia clamorosa de luz e imagens. Havia ali paisagens e grupos de gente, e prados e praias e mares, e árvores altas como montanhas, montanhas nevadas como sorvetes, e sorvetes mais vibrantes que uma árvore viva de seiva, derretendo com alegria brincalhona nas mãos das crianças que brincavam nos prados e nas praias. Eu próprio aparecia em muitas das fotografias.

Percorri a sala banhado num riso divertido, riso que era muito mais prazer que escárnio. Ria-me no gozo de contemplar toda aquela beleza, as praias batidas de marés cálidas onde eu corria à beira-mar, as sombras de arvoredos a que me acolhia com grupos de bons amigos, os sóis poentes que doiravam de sonhos os nossos repousos vespertinos; e ria-me da sombra ingénua que ali me mandara, na busca ridícula de uma foto entre milhares de fotos. Mas o riso morreu-me na garganta, e secou-me na alma, quando de súbito a vi. Um engano era impensável, não podia haver confusão. Aquela é que era, sem dúvida – a foto!

Era medonha, a foto. Em volta dela, deixava-se afinal ver um pedaço de estuque bilioso e carcomido, quase como se as restantes imagens fizessem questão de se afastar, e de se demarcar daquele lastimável documento, que semelhava um qualquer género de aterro infecto. Eu não aparecia naquela foto.

A desolação é uma coisa suportável, e tem até uma certa estética. Um ermo pedregoso, áspero amontoado de rochedos que sofrem a rapina de três ou quatro arbustos esquálidos, mal presos pelas garras finas das raízes à superfície ingratamente rugosa, sob os pesados agoiros de um céu tempestuoso – isso é desolador, e não deixa todavia de ter a sua graça; a foto não era desoladora – era uma lixeira.

Nada do que as outras exibiam lhe faltava a ela; tinha também os seus arvoredos, arvoredos mesquinhos e vis; os seus prados barrentos, viscosos; as suas praias onde um mar fétido batia um areal cor de alcatrão e cor de escarro; e tudo isto esverdecia sob a luz suja de um sol pusilânime, enfiado da vergonha de não alcançar pelo menos a serenidade forte de um luar franco e claro. Era cinzenta, aquela foto, e eu não figurava nela.

Ou será que figurava? Aquele monturo que desfeava o lado esquerdo tinha decerto uma impertinência familiar, como familiarmente corcovava a árvore de ramagens obscenas, e quem sabe se não era em mim que o esverdinhado sol agoniava o seu brilho baço? Examinei então mais detidamente as fotos que em redor rebrilhavam, e nelas atentei no meu avatar.

Não era eu! Parecia-se muito comigo, o sacana, mas não era eu. Não sei bem que coisa tinha diferente de mim, e se o soubesse, de resto, ele seria talvez eu. Mas eu não era aquele, eu era o infame que na foto ominosa agachava junto ao monturo de tons gangrenados, e tentava fingir que não trazia um capuz cinzento.

Nem nas acções nos assemelhávamos: o outro fazia rir enquanto eu fazia uma via sacra, fazia de conta quando eu fazia pena, fazia pensar quando eu fazia tenções de abjurar todo o pensamento e razão, fazia planos quando eu só ambicionava fazer tijolo. Fazia de resto um bonito efeito, naquelas fotografias bonitas e vivazes, mas nenhuma delas era o meu retrato. Em toda a galeria multicor, eu só aparecia naquele ratinhado pedaço de papel de fotógrafo, aquela foto cinzenta de pó. Não era foto que se emoldurasse, coisa que felizmente ninguém se lembrara de fazer.

Saí da sala pensativo, ou pelo menos tentei fazê-lo. Mas isso de pouco adiantou, que mais havia para pensar?

2 comentários:

Armindo S. disse...

A primeira imagem que me ocorre são os belíssimos quadros de Giorgio de Chiricco e de entre todos o Mistério e Melancolia de uma Rua. Não tanto por A Foto ser um texto surrealista mas por apresentar um sol verde. Agora vejo um autor debruçado sobre a palavra torcendo-a e modelando-a até se ajustar à racionalidade da frase e por vezes até, entrando em conflito com a primeira imagem imaginada do escritor. Coisas que surgem na torrente. Eis uma leitura simples de um texto belíssimo.

Adriano disse...

Puxa!
Mas este é comentário de 6 da manhã, a seco (a noite toda).

Puxa!