22/11/2009

Porta sem casa

Há muitos anos, concluída a escola primária, ia-se da minha aldeia para a cidade. Ia-se, pode mesmo dizer-se, para o mundo, para um mundo novo, porque o mundo que qualquer criança nessa altura tinha, numa aldeia como a minha, era um mundo velho, com caminhos de terra batida, com ruelas empedradas há séculos e ruas de paralelos puídos. E as casas eram também velhas e gastas, como boa parte das pessoas que nelas morriam.

Há muitos anos, quando a gente miúda crescia e tinha muita sorte, e alguma queda para os livros, ia para a cidade.

Eu era ainda catraio, e apesar de não ser assim muito dado às leituras, que havia coisas mais importantes para dar sumiço ao pouco dinheiro, tive muita sorte, sobretudo porque, ao contrário de muitos amigos meus da aldeia, tinha um tio velho, daqueles da cidade, que era ou tinha sido inspector da educação, um tio muito influente e muito bondoso que achava que uma criança, ainda mais sendo da família, devia estudar muito para ser grande, como muitos outros grandes que havia na parentela. E os meus pais, numa humilde obediência a que se juntava algum orgulho, mandaram-me para a cidade para aprender a ser grande e entendido.

É claro que fui. Durante alguns anos fui sempre, sozinho e de camioneta, para o novo mundo que aos poucos me foi sendo familiar e cada vez mais pequeno, quase como a minha aldeia, mas isso foi só mais tarde, quando dali fui para a capital, e agora para o caso pouco interessa. O que agora importa é que eu ia e vinha, diariamente, e regressado a casa, deixada a mala carregada com livros e tudo, e mudada a roupa limpa por outra de trabalho, comia qualquer coisa à pressa e ala para o campo ou para o monte, ou para o monte ou para o campo, dependia das estações e do que se buscava na terra, que o pessoal por lá andava, a maior parte do tempo o dia inteiro, e eu não era nenhum fidalgo, como me lembrava o meu avô.

Mas o que me tornava grande mesmo, depois que comecei a ir para a cidade, era eu chegar à aldeia lá para as duas e meia ou três da tarde, correr rua acima, empurrar a porta ou o portão do alpendre, galgar o pátio enxotando as galinhas, ir direitinho ao lugar onde se escondia a chave de casa e depois, como dono de uma mansão, abrir a porta de entrada e entrar. Aquilo era tudo meu, e eu tinha uma chave, e uma porta para abrir sem ninguém dentro que me estorvasse.

Esse alpendre ainda hoje existe, também o pátio e também uma casa, mas já não há galinhas à solta nem mãos que lhes dêem comida ou boca que as chame pelos nomes. Quando ainda lá vou, por ir, à casa da minha aldeia, sei de cor o lugar da chave, mas não há ninguém no seu interior que me queira estorvar a passagem, só porque agora, simplesmente, a porta deixou de ter a minha casa dentro.

4 comentários:

Armindo S. disse...

Quando a porta se encerra e as ervas começam a crescer, daí até os musgos rebentarem com os muros e
a casa dentro começar a evolar-se demora tão pouco com a sépia a separar gerações e memórias de fantasmas cada vez mais evanescentes que nem damos conta que em breve a sépia somos nós e depois o gás dos fantasmas e pouco depois nem isso. Belíssimo.

Margarida Tomaz disse...

Belíssimo o conto, belíssimo o percurso, belíssima essa arte pura de contar.

Unknown disse...

E de repente, encontrei-me, catraia, à porta do Ria.
A porta 'inda lá está, de braços abertos, solícita...
Mas deixou de ter o Café dentro.
Grande abraço daqui de Aveiro, Souto.
Mena

António Souto disse...

Mena,
Se me lembro do Ria, e dos cigarros que ali comprei e fumei como gente grande, e das laranginas C com muitas borbulhas e um gostinho distante, e das torradas bem untadas que ali se faziam a preceito, e dos cariocas de limão que ali tomava quando achava que era tempo de deixar os cigarros e dedicar-me a correr para libertar o fumo e ganhar medalhas que não chegavam nunca, e do empregado que agora recordo que gostava de pintar e acho que mais tarde se tornou mesmo pintor...
Se me lembro do Ria... e do Palácio e do Trianon e dos outros todos que já não sei...
Catraios nostálgicos, Mena, mas com alma dentro!
Abraço.