21/11/2009

Portas, para que vos quero?

A fábrica de portas suspendeu o que ainda restava da sua actividade numa anódina manhã de terça-feira, vindo a declarar falência no dia imediato. A dúzia e meia de funcionários que a fábrica ainda empregava encontrou sem dificuldade novas colocações, e a fábrica ali ficou, parada e inerte, à espera de um futuro que se prefigurava pouco auspicioso. Da outrora florescente empresa apenas restaram dois sócios perplexos e derrotados, tentando a todo o custo compreender por que bulas falhara aquele empreendimento.

A fábrica tivera todas as condições para triunfar, e isso não fora fruto de um acaso fortuito. Pelo contrário, a área de negócio fora cuidadosamente escolhida com a intenção de assegurar o sucesso. O produto tinha procura, caramba, toda a gente precisava de portas, estava ali um mercado garantido. E mais do que garantido, era um mercado exclusivo, pois nenhuma outra empresa fabricava portas em toda aquela região. E no entanto, eis que se viam falidos. O sócio principal, que se comprazia em ostentar o título de Presidente da Companhia, jurou não descansar antes de descobrir o que causara a lamentável derrocada, e partiu em demanda dos enigmáticos factos.

Um primeiro vislumbre da verdade atingiu-o assim que entrou numa aldeia, e percorreu com um olhar lento e inquisitivo a fileira de casas sem porta que se perfilavam ao longo da rua principal. Não era que se desse o caso de não terem essas casas nenhuma entrada, pois que todas ostentavam a convencional abertura rectangular, emoldurada de ombreiras, mas que nenhuma porta fechava. Ao longo de toda a rua, simpáticas vivendas e modestas choupanas escancaravam o seu interior a quem quer que passasse.

O Presidente deteve-se na contemplação de um desses interiores, notando a mobília de razoável qualidade, a mesa posta para o almoço que se aproximava já, a televisão de bom tamanho, sintonizada num canal popular. Preparava-se para observar mais detidamente uma pintura que lhe captara a atenção, quando recuou com embaraçada alacridade ante o proprietário da casa em questão, que irrompendo de algum recanto interior lhe vinha dirigir a palavra.

Os fragmentários pedidos de circunstanciais desculpas foram atalhados pela bonomia do dono da casa, que sorridente de gosto, quase de ansiedade, lhe rogava satisfizesse sem peias a sua curiosidade, que entrasse mesmo, para melhor apreciar cada pormenor, e deles dizer de sua justiça. O Presidente velou o melhor que conseguiu uma agradecida recusa, mas tentou ainda assim vender-lhe uma porta, ou pelo menos a ideia de porta.

− Uma porta?, espantou-se o outro. Homessa, e para que quereria eu uma porta? Não é que me desse realmente muito trabalho ter uma porta, teria apenas de me lembrar de a fechar quando estivesse dentro e quando saísse, de a abrir quando quisesse passar, e de trazer comigo a chave, para não ficar na rua. Mas o que teria eu a ganhar com uma porta?

− O que teria a ganhar? Bem, suponho que ganharia privacidade, e também segurança. O tipo de coisas que as pessoas pretendem, sabe, quando compram uma porta. Veja a sua casa, por exemplo: está sentado à mesa a jantar, sente-se aborrecido e desabafa com a sua família; passa um desconhecido e vê o que o senhor janta, ouve a sua queixa, inteira-se da sua vida. Isso é coisa que lhe pareça bem?

− Honestamente não lhe sei dizer se me parece bem ou mal, acho que teria de esperar até que tal coisa realmente acontecesse, mas desconfio que ficaria à espera até às calendas gregas. O que de facto se passa aqui, a cada dia e todos os dias, é que ninguém liga às portas abertas, nem está realmente interessado em atravessá-las, ou sequer espreitar lá para dentro. As pessoas passam por casas abertas e olham em frente, encontram tudo à vista mas não querem saber. Suspeito mesmo que se alguém se desse ao trabalho de colocar o recheio da sua casa na via pública, toda a gente iria apenas passar como se a rua estivesse vazia. Ninguém se interessa, essa é que é a verdade, e não se precisam portas se não há quem as queira atravessar.

O Presidente agradeceu e partiu para fora desta história, sentindo-se um pouco mais sábio e bastante mais velho. A fábrica permaneceu encerrada, e a falência veio eventualmente a concretizar-se. Um curto parágrafo num jornal referiu ter a empresa encerrado as suas portas, o que não deixa de constituir uma imprecisão. A própria empresa havia já em tempos reconhecido a inutilidade das portas, tendo por decisão superior prescindido inteiramente das mesmas. A fábrica lá ficou escancarada, retendo no seu interior maquinaria e segredos tecnológicos e muitas outras coisas de inegável interesse, mas ninguém se deu ao trabalho de ir lá ver o que estava à vista de todos.

3 comentários:

Margarida Tomaz disse...

Em 1º lugar só tenho de te dar os PARABÉNS! A escrita fluida, a novidade na forma de perspectivar o que ninguém vê e que está à vista de todos e o potencial de reflexão que oferece é simplesmente - (peço licença ao autor do neologismo) - espantástico!

Em 2º lugar, dá vontade de perguntar: onde está o coração das palavras?

Uma história que dá vontade de reler.

Armindo S. disse...

Uma fábrica que vendesse ausência de portas, uma espécie de buraco dentro de um buraco maior e que ainda assim chegasse á falência poderia ser a reflexão possível para uma ética renascida nestes tempos estranhos e conturbados.

Nuno Baptista Coelho disse...

Armindo,

Podia, sem dúvida. Mas isso seria outra história. Muito mais interessante, com toda a probabilidade - concedo isso - mas não seria esta.

Mas a proposta é boa, e merece consideração. Acho que muita coisa pode ser dita em torno disso. Aconteceu apenas que não foram essas as coisas que eu pretendi dizer neste momento. Com o que todos ficaram a perder.

Obrigado pela achega, e um abraço,

Nuno