17/05/2009

A Pergunta.

Tanto quanto recordo, vocês não conhecem o Percival, pois não? Bom, justo é ressalvar que por esse nome nem a mãe dele o conheceria, ela que ainda em primórdios de berço lhe pespegou o Ernesto Maria que há mais de quatro décadas lhe faz fronstispício ao cartão de identidade. Mas uma embirração já vetusta pegou-lhe um dia naquele Ernesto e, fazendo uma prática torcida com o execrado Maria, imolou ambos na pira de uma renovada identidade, rótulo novo para embalagem que traz já uso, e isso que mal tem se as coisas, afinal, também contam pelas aparências.

Percival não é em si próprio um nome comum, e nunca foi, no caso dele, desprovido de significado. Ernesto revia-se realmente naquele nome, pela boa razão que, tal como o brumoso cavaleiro das lendas arturianas, honra e flor de Camelot, também ele empenhara a sua vida no altar de uma porfiada demanda. Se Sir Percival buscava o santo cálice, Percival, mais modestamente, buscava uma resposta. Se acaso o inquirissem sobre tal assunto, diria antes que buscava a resposta, querendo com isso na realidade dizer, A Resposta.

O que tal resposta poderia ser, foi coisa que sempre variou. Ainda jovem, especulou sobre a vida e a morte, sobre a sublimidade da condição humana, sobre as humanas iniquidades. Mais maduro e experimentado, meditou largamente a ordem social, e as possíveis formas de atingir nesta uma posição lucrativamente predominante. Depois de também isto falhar, e nem sequer com estrondo que se notasse, passou a empenhar-se por inteiro na busca do amor, procurando com os românticos arroubos consagrados pelo estilo uma cara-metade, que por inclinação pessoal preferia feminina, e que lhe proporcionasse a almejada resposta. Ficou por esta altura claro para toda a gente que a resposta ambicionada era, muito simplesmente, “Sim”.

Mas até uma reposta de tal simplicidade pode ser difícil de encontrar. Pareceu então a Percival que o mundo todo se resumia a um imenso mar de Nãos de todas as espécies e feitios, tais como os Nãos tipo carapau de corrida, que se esgueiram antes que de os podermos agarrar e discutir alternativas; os do tipo tubarão, que é melhor aceitar e fugir para longe, sem lhes dar tempo a elaborarem mais mordentes argumentos; os do género baleia, esmagadores; aqueles que são como estrelas do mar, apontando sempre em várias direcções ao mesmo tempo; os búzios, que depois de recusarem se fecham na concha; e as pescadinhas de rabo-na-boca, que dispensam mais descrições, quem é que não passou já por coisas dessas? O desejado Sim, pelo seu lado, era aparentemente a mítica sereia daqueles tempestuosos oceanos.

Mas até as sereias se deixam encontrar, se as procurarmos com suficiente afinco. Que o diga o sublime Odisseus, poderoso guerreiro que só a elas se rendeu, e parece que fez até questão disso; que o diga Percival, quando um dia achou nas turvas águas de um bar acanhado e fumarento a sua ninfa, aquela que plenamente lhe ofereceu o Sim. Passados uns tempos, casaram-se.

Não foram todavia felizes. O nosso Percival, honra lhe seja feita, deu o melhor que tinha para dar, mas aquele Sim que o lançou nos braços da sereia não parece, pura e simplesmente, ser capaz de levar a empresa mais avante. Ficou por esclarecer, ao que tudo indica, a que coisa deu ela o seu Sim, visto que agora não parecem capazes de se entender na mais pequena ninharia. Se ele quer comer ela quer dormir, se pretende beber ela prefere fumar, o branco que ele escolhe devia sempre ser preto – diz ela, e também diz o contrário -, e a discordância tornou-se a única coisa em que ambos concordam. Mas ela disse Sim, e nisso não mentiu – a prova, à vista de todos, é que continuam casados.

O meu amigo Percival, casado, encornado e acomodado, não abandonou todavia a demanda. Cavaleiro sans peur et sans reproche, contra tudo e contra todos, mudou apenas muito ligeiramente o objectivo da sua busca. Na moderna versão de si mesmo, não procura mais a resposta, quanto mais não seja porque já a encontrou. Muito pelo contrário, resumindo aqui a sucessão dos eventos, tudo o que Percival encontrou foi a resposta, e muita gente diria que não era pouca coisa, caramba! Mas ele é que não se satisfaz. A fazer fé no que contam, emprega agora os seus dias na busca “da pergunta”, certo como está que o desconhecimento desta esteve sempre na origem de todos os seus males.

E quem sabe se não terá razão?

2 comentários:

Armindo S. disse...

Deliciosa a famíla marinha. É sempre com prazer que se lê argumentos a favor do não, sempre mais fáceis e com leque de hipóteses a jusante para enfiar a cada impedimento. Difícil é o sim que implica sempre uma inevitável congregação muitas vezes a que preço.

Guiomar Fernandes disse...

Esse é o grande problema: buscar resposta sem saber formular a pergunta (por acaso ainda não formulei a minha).
Lindo enrolar e desenrolar de uma vida. Muito bem escrito (como sempre).