06/05/2009

Saudade de Nós

Por imperativo da definição, ninguém tem saudade das coisas que são, mas apenas das coisas que foram. Os nossos suspiros mais fundos são os que exalam a mágoa de uma perda sentida. Saudade de algo que não temos, de algo que porventura já tivemos, em dias melhores. Ou nem isso, sequer.

Todos os dias recordo, com dolorosa nitidez, aquela eternidade tão breve em que juntos fomos felizes. O momento, de tão fugaz, não teve sequer o tempo de começar a acontecer, e permanece todavia a parte mais viva deste meu presente sempre pretérito, vida sem futuro perfeito à vista, e mal conjugada na pessoa errada.

Uma das memórias mais belas, de entre as muitas que guardo, é o contentamento sereno e risonho daquele dia passado no campo, à época em que tinhamos a casinha junto ao rio. Que dizes tu, meu amor, que não houve casinha nenhuma, nem jamais te quedaste à beira de um rio, vendo a meu lado os peixinhos de todas as cores? Talvez tenhas razão. Deves ter razão, isso decerto nunca aconteceu, ou não seriam tantas as minhas recordações desse dia, nem tão claras. Tivesse de facto acontecido, e seriam talvez menores as saudades.

De tudo conversámos nessa tarde, ou de quase tudo, que sempre uma coisa ou outra se cala, mesmo quando voamos nas asas do sonho. Lembro-me que corremos alegres até junto da nossa casa, e nos estirámos num relvado perfeito, vendo juntos o céu às avessas, e escolhendo nuvens que depois levámos connosco.

Estavas cansada quando comigo vieste para o quarto, esse quarto cuja perda sempre choro, e que veramente nunca existiu. Suavemente, para não perturbar a magia daquele dia assombrado, deitei-te na cama ampla (aquela velha cama de nogueira, recordas-te, que tinha o dossel alto como um leito real? Como um leito de princesa, disse-te eu). Acariciei-te o rosto e tu sorriste, depois bocejaste, e sorriste de novo, numa hesitação de quem a um tempo deseja dormir e despertar. Abri então uma caixa de rendilhados relevos, aquela velha caixa de música que vivia na poeira da cómoda antiga. A cristalina melodia de embalar encheu de suavidade o quarto, e tu adormeceste a sorrir.

Ainda hoje revivo esse dia em que não fomos, imerso nesta imensa saudade de ser-me. Mas agora a noite cai, e há que pôr de lado a minha vida. Há coisas para dizer, coisas para fazer. Com um esforço consciente, expurgo-me de toda a saudade, e fico preparado para enfrentar as ninharias da vida dita real. Estou vazio; estou pronto. Não posso contudo evitar, bem no fundo desse vácuo que agora sou, uma ponta de saudade pelo dia de amanhã.

5 comentários:

Armindo S. disse...

Comecei a coleccionar(desculpem não alinhar com o presente mas ando um pouco anacrónico ultimamente)máximas do Nuno e pelos vistos não páro. São deliciosas e nunca se sabe quando nos podem valer numa ocasião inesperada. Quanto ao texto lembrei-me das bonitas gravuras da Matilde Marçal, que culpa tenho ele empurrou-me suavemente para lá e por lá fiquei a contemplar esses tempos cristalizados em nevões de brilhantes dentro de cúpulas de vidro. Que saudade. Apetece dizer Rosebud.

Guiomar Fernandes disse...

Que linda aguarela pintada com cores de todas as emoções, sobre uma tela de sonho. Lindo!

Margarida Tomaz disse...

È bom sentir a animação de novo no blog com esta belíssima escrita de memórias tão cheias de sentidos.

apsarasamadhi disse...

Pudera viver sempre nesse leito etéreo onde respira vivo o esquecimento de sermos (porque apenas somos)! O estremecimento saudoso rompe desse futuro que a memória incumpre e a Vida dança!

Adriano disse...

Uma só observação:
Um poeta (Fernando Pessoa, acho)disse algures as suas saudades do futuro. E eu acredito nele. Ou sinto o mesmo: ter saudades é não se possuir qualquer coisa. Nesse sentido, sou capaz de ter saudades do que me há-de vir.
De resto, escrita límpida, sincera. Se corresponde ou não a memórias, isso pouco importa, acho.

Força a todos.