18/05/2009

A saudade

É claro que durante as férias grandes o tempo cresce como se tivesse levedura e as noites encontram suas estrelas em cada fim de dia ao som de grilos e cigarras enquanto o feno arrefece. Uma saudade desequilibrada, como todas as saudades. O equilíbrio não se compadece de velhos como eu. Tenho tantas saudades de ti.
As anacrónicas saudades de colheitas em terras arrendadas ao terço, exploração de subsistência em leiras de vizinhos e das tradicionais desfolhadas da eira comunitária na cobiçosa e vã tentativa de encontrar o milho rei, porque hoje, nem as eiras conservam seus tijolos, (ruínas de outras eras) com fartura de ervas daninhas numa conquista férrea aos interstícios, abençoada força da Natureza, garante do dia que há-de vir.
Levantar de madrugada e caminhar cinco quilómetros atravessando a estrada municipal (a única alcatroada à época, sinal evidente da sua importância) e deitar-me nela olhando as estrelas com uma claridade e nitidez na Via Láctea nunca mais vistas, sempre com a sensação de um carro a chegar aumentando a adrenalina e depois seguir os passos dos avós correndo para os apanhar. Chegar e vê-los a começar a apanhar o grão ou o feijão ou varejar azeitona e sentir o cheiro de juncos em terra arenosa como um arquipélago insalubre onde crescia relva boa para rebolar e onde a imagem da roupa acabada de lavar com sabão azul e branco estendida a secar ao sol permanecia por toda uma vida.
Fogueiras de Junho ardendo em grossos madeiros com faúlhas pelos ares, os saltos e todas as aventuras com o cheiro a fumo na roupa vestindo como ciganos, as histórias de outras eras e os cantos. Não fora o Giacometti e nem me recordaria sequer deles, tal como de Dodós esquecidos na racha de um tempo passado a flutuar na cabeça de um saudoso velhote. Canto chão arrastado até ao arrepio de uma memória instalada em frasquinhos.
Avô adaptado ao tecnológico e veloz século vinte e um, entertainer de crianças curiosas, em nicho de mercado como senhor de suíças cristalizado e embalado em vácuo para ressuscitar um lustre mais adiante, cheirando a naftalina e aparentando recantos embebidos em brometo de prata. Histórias do tempo em que os avós eram verdadeiros dinossauros de contar, cujas rugas cresciam na razão directa da aparição do riso efectivo em soalheiros fins de tarde com aquela bola no horizonte lembrando uma toranja suculenta a enfiar-se lentamente no chão da lonjura. E ainda dizem que a saudade é um fado. Quantas vezes depois disso a bola mergulhou. Os avós já desapareceram e eu tomei o lugar de um deles. Olhando este fim de tarde, medito com os olhos colados na linha do horizonte e os risos de netos e crianças da sua idade, lembrando sábados à tarde, dançando nos cabos dos telefones e das catenárias dos comboios.
- Avô ajuda-me com este jogo da Play Station .
- Diz lá Pedro, se eu souber… olha que no meu tempo os brinquedos faziam-me correr mais.
-Mas eu corro, avô.
E digo para dentro: é certo que as casas com rodas eram em muito menor número, rapaz, que culpa tens tu?

1 comentário:

Guiomar Fernandes disse...

Este conto transportou-me no tempo, até às minhas férias de infância no Alentejo. Há cheiros que não se repetem.
Obrigada