02/08/2009

Estilhaços de VERtigo

VERtigo.

De todas as ruas, aquela era tanto mais velada, quanto cobiçada. O fascínio que a invadia era tanto que o pulsar de cada pegada ou vestígio, olhar ou vislumbre, provocava na restante cidade um estremecimento vestibular, prestidigitador, como se aí se re-velasse a desértica clareira do Ser, como se, de modo imperceptível, fossemos engolidos pelas mandíbulas ferozes de um qualquer predador.

Fruto dessa fome, a rua permanecia, porém, imaculada, pura e ímpar na sua elevada solidão. Magnetizava, por um lado, as atenções dos itinerantes e, por outro, expelia, num movimento de gato a regurgitar bolas de pêlo, os inglórios transeuntes que a tentavam dominar. Até à data, não houvera ninguém que resistisse aos seus labirínticos encantos, nem que escapasse ao seu genuíno sortilégio.

A sua enigmática robustez conduziu a alguns ditos, estes tornaram-se contos que, amiúde, se converteram em mitos. Entre estes conta-se que numa incauta noite, uma mag(n)a mulher lhe houvera, devotamente, consagrado o leite, que escorria vigorosamente do seu desnudo peito, destinado ao amamento do seu único filho. Desfecho dessa entrega total, transformara-se a mulher num caudal espesso e virginal, porção da rua onde todas as aparições, nascenças, origens e inícios aconteciam. Outras vezes, rememora-se a oferenda de uma lágrima, única, vertida por um homem que, ao conceder-lhe a sua musicalidade, renunciou o fragmento mais cristalino da sua temporal intimidade: a eternidade.

VERtigo não fora ainda habitada, contrariando as copiosas visitas que geograficamente a ampliavam. Perguntavam, não poucas vezes incrédulos, como seria possível uma rua animar-se: oscilar sempre que a perscrutavam; tamborilar, embora não ao som de qualquer ritmo ou andar, os gestos que a exaltavam; pulular entre os olores a sândalo e cânfora que, particularmente, a apraziam e até espirrar, já que sofria de hipersensibilidade ao pólen, acarinos e, sobretudo, a sentidos de posse e jugo. Uma das muitas peculiaridades que a perfilava, talvez para combater essa inusitada alergia, era o despretencioso facto de não haver nenhuma esquina que não fosse janela, precedida fisicamente de uma tontura.

Durante o dia, o excesso de movimentação despertava-lhe uma legítima indolência, sobretudo, nos parapeitos do lado esquerdo da alma que, abscôndita e lânguida, espreitava o horizonte com impassibilidade, já que as persianas permaneciam inacessíveis à luz do dia. Esse torpor diurno revestia-lhe as fímbrias, como se se tratasse de um mecanismo de defesa contra todos aqueles olhares insuspeitos e indiligentes que a confundiam com apenas mais um jornadeio turístico, embora apenas de rua se tratasse a sua visível aparência. Porém, pela noite, galgava os céus de andaime em andaime, encarrapitava-se no canto superior direito da estrela do Norte, abria de par em par os olhos atelhados, arranhava, com os seus braços alcatroados, as raízes mais fundas das milenares árvores, farejava, de nariz em fumeiro alteado, todos os presságios e conjecturas e, quase doutrinalmente, (pois era de certo modo empertigada e senhora do seu nariz), giranboleava toda a cidade de coração vidrado, entendam-se desafogadas janelas!

Deste ritual profético, praticado desde os seus tretaruavós, em busca de um estilhaço hereditário que há muito se houvera sumido, emergiu a sua redenção: encontrara, furtivo, junto ao caudal em forma de lágrima que a cingia, um fragmento de mulher, melhor dito, o seu umbigo! A demanda ancestral dessa artéria da cidade havia cessado por fim e com ela todos os despenhamentos e precipícios auto-infligidos se haviam dissipado.

Afinal, qual seria a pretensão dessa estranha união: a de um umbigo a querer ser rua, a da rua a querer ser mulher ou a de uma mulher cujo umbigo era a rua? De entre todos estes estilhaços não são os que vertiginosamente compomos que contam, mas os que vertiginosamente Somos!

3 comentários:

Rosa Matilde disse...

O discorrer que se esgota intencionalmente nas fragilidades labirínticas do nosso interior, que se revelam em flutuações internas à procura do “barro com que pensamos ser feitos”.
Continuo adorar, estupidamente, e sem conseguir expressar objectividade.

apsarasamadhi disse...

Para quando um novo recontro da irmandade dos contos? Ansiosa por estar convosco novamente, noite dentro, a romper auroras!!!

(nesta viagem vertiginosa é bom saber que não caminhamos sozinhos, por mais diversos que sejam os percursos!)

Armindo S. disse...

Esta história remeteu-me para o Blade-Runner. Revisitar esse som com cenários de Lima de Freitas (insisto)ainda a torna mais fantástica.
Respondendo ao repto da autora,
proponho, desde já, a primeira quinzena de Setembro mas com o trabalho de casa feito (se bem se lembram)...