27/08/2009

Opus 25

A liberdade é um estado de espírito.
Dentro de uma caixa, o desejo de sair quando o mais difícil foi entrar.
Poder sair e não querer ou a sensação de estar preso.
Sentado num sofá, umas mãos postiças agarrando as barras de ferro de uma janela encaixada numa parede de contraplacado rebocado a estuque envelhecido numa patine de inscrições de prisioneiros desgastados. Ilusão perfeita - para quadro surrealista, falta o céu verde. Um alçapão no fundo do palco.
Fuga de Bach em ré maior e, nas costas, uma praia a perder de vista e um sol cansado.
Toneladas de areia como um deserto infindo.
Fugir de quê? De um mêdo? De uma limitação imposta?
O cárcere como libertação ou a prisão em espaço amplo escandalosamente aberto.
Uma fuga para a frente, um preenchimento sempre, sempre descontente.
Um passo seguindo outro e outro rodeando uma coluna. Um passo seguindo outro deixando para trás um desconforto. Poderia ter começado assim:
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Um dia, ele veio ter comigo e contou-me que tinha um túnel quase acabado.
O buraco foi feito e o ludíbrio dos guardas, perfeito.
Na noite da fuga, á saída, no meio de um canavial, confessou-me:
- Com um pouco de sorte chegaremos ao mar ou à estrada. E aí logo se verá.
Encontrando-me do lado de fora dos muros olhando para este quarto crescente, juro-te que não voltarei atrás.
- Ainda bem que assim falas, pois é agora nesta encruzilhada que terei de contar-te um segredo:
“Os cães, os helicópteros, todos os GPS do mundo se unirão para nos barrar a escapada. É uma luta da tua inteligência contra a dos outros. Os meios dão-lhes vantagem e até o tempo, se, inicialmente, por surpresa, joga a nosso favor, rapidamente como grande meretriz travestida se coloca do lado deles e se, só por um grande acaso de sorte acumulada, com a dose certa de desânimo, desgosto e desmotivação do lado perseguidor, essa grande puta voltar para o nosso lado, aí a vantagem chegará encorpada e crescida a clépsidra revelar-se-á aumentada a distância entre ti e o teu desconforto. Ouve bem, portanto, o que te vou dizer:
O meu bisavô ao erguer a sua casa em Cinfães, no início do século passado, guardou um tesouro no interior da estrutura. O seu único filho nunca quis derrubar as paredes do solar que tinha herdado. Por sua vez, o meu pai ouviu este mesmo segredo à hora da morte do meu avô e tratou de o passar, muito antes de se finar, a mim e ao meu irmão que foi morto, por uma mina anti-carro, na guerra do ultramar. Por respeito a seu pai e seu avô fez de igual maneira e o solar continuou preservado.
Eu nunca precisei até agora e os deuses proveram-me com talento suficiente para passar sem ter que levantar uma pedra.
Por isso, e por paga da confiança que mereci nesta fuga que partilhaste sem querer nada em troca, vou descrever-te qual a rua, número da porta e qual o muro a derrubar.
Separamo-nos aqui, mas aquele de nós que tiver a sorte de chegar a Cinfães deverá usar o passaporte para a liberdade. Meio passaporte em ouro chegará para dar duas voltas à Terra e se eu chegar primeiro encontrarás a tua parte neste local...
E eu poderia ter ouvido o resto da conversa passada no meio de um canavial à beira do rio, onde tinha ido pescar nessa noite, à luz de uma lua pouco crescida, não fora o ladrar dos cães ao longe.

3 comentários:

Guiomar Fernandes disse...

Que fuga!
Um desfecho totalmente inesperado, que nos força so riso, perante o pedaço de conversa ocultado pelos cães.

Nuno Baptista Coelho disse...

Genial!

Podia escrever mais, mas que importa? Com todo o prazer desenvolverei o comentário à volta de uma mesa bem fornida. Aqui, as minhas palavras ficariam sempre aquém desse final, cereja a culminar bolo já de si muito bem elaborado. Bravíssimo.

apsarasamadhi disse...

Mais do que a de-Cifração da liberdade ou do cárcere, o sentido íntimo de ouvir outras vozes além da nossa, escutar os murmúrios de outras vidas, pertencer de modo latente a outra existência que não a nossa e, no fim, lançar o olhar intrépido sobre o que somos, o que fomos, o que podemos ser, o que queremos ser e tudo ao som de um latido crepuscular, à maneira de Bach, que impulsiona a vontade de ser mais. Serão cães ou esfinges? Sem mais, querendo mais.