05/08/2009

Medo de A. (a Z)

«tudo se despedaçou.

O sonho, e o amor que é sempre tão breve.

O mundo dorme sob o vento. Só eu continuo acordado, em vigília.

Se houvesse agora uma catástrofe eu daria por ela.

Levantar-me-ia daqui para encarar a morte,

dizer-lhe que são inutilidades o que arrasta consigo.

Estou gasto. Dei-me sempre mais do que podia

(…) sou um alfabeto e não se se terei tempo para me decifrar.»

Al Berto, O Medo.

Temos que, em primeiro lugar, habituar o olhar. Talvez o melhor seja fechá-lo. Lentamente. Parece que vemos melhor assim, quando olhamos para dentro, sem esforço ou pulcritude, sem o turvar. Vês melhor, também? Olha, de seguida, para o gesto que a pele desenha e a carne devora. Consegues ver? Vá lá, não me digas que tens medo…vá, insta! Desce agora o olhar, degrau a degrau, o que vês por cima? Escuridão? Não! Cai mais um pouco. E agora? Consegues ver melhor o despontar de cada veia, como se se tratasse de uma disposição ou vocação do espírito, inscritas de modo desinteressado na pele? Diz-me se não tens vontade de gizar um mapa, encontrar os pontos cardeais, traçar o norte e adivinhar a aurora de um novo ascendente? Ou então desenhar uma cartografia remota que alvitre todos os passos, não os teus, mas os passos singulares de toda a Humanidade? Ou ainda se não te assoma um desejo de criação, como se ao morderes com arrojo a veia, explodisse, sem pretensões de eixos, um mundo inverso deste, feito da mistura desse crime de sangue e saliva? Já está.

Dá um salto, então. Como é que se salta de olhos fechados, perguntas?!- que parvoíce! como se se tivesse a parir, claro! Com consciência de todas as dores e contracções, como se tudo estivesse despedaçado e o mundo, lá fora, dormisse inane. É o único salto que conheço…Vá lá, não me digas que tens medo? Já está? Agora que conheces o ritmo quente e acelerado da pele, podes percorrer o novo corpo que te habita. Descoincidente. Com um volume e massa distintos certo, embora convirjam em absoluto. Começa. Mergulha. Sem medo. Mais rápido. Mas silenciosamente para que as muitas vidas que aí medram não ancorem a alma. Sim, sei-o. Desce por esse trampolim. Por onde?

Do lado direito desse músculo-motor. Sim, é necessário. Trata-se de encontrar a direcção certa, mesmo com desalinhos. Enfrentá-la como se se contemplasse, de frente, sem pestanejar, a morte e lhe disséssemos que nada disto importa, que são inutilidades o que a alicia. Entendes? Sem medo. Retira a mente ao corpo. Não mintas. Abandona essa península inconsolável. Despovoa-te da miríade de pensamentos que te habitam e principia a jornada. Precipita-te sobre ti próprio. Sofres de vertigens? Perfeito. Mas não te percas na periferia dos sentidos, nada antecipes. Desagua na paisagem árida do esqueleto. Não vês que todos os nossos ossos guardam uma estreita respiração, talvez o último fôlego desse corpo intangível ou resquícios de uma dívida de voo incumprido? Todos abrigam uma paisagem em ruínas que cinzela o rosto com rugas e catedrais, filhos pródigos de um continente que atámos à velocidade devoradora do tempo. Sim, aquiesço. Não há tempo para decifrações, o olhar habitua-se à gravidade etérea dos ossos e não sabemos quantos anos passaram desde o seu cerrar. Tudo é sempre tão breve.

Terminámos. No momento preciso da (o)pressão, ao sentires esse talhe metalino a bulir monotonamente a matéria, alaga os pulmões com todo o ar, como se te tivesses dado ao mundo por inteiro e estivesses gasto. Abraça a forma metálica e fria que espelha a tua ossatura, sustém a respiração por minutos, como se guardasses num baú todos os livros que leste e os quisesses incendiar para que ninguém os violasse, entendes? Respira apenas depois do STOP. Já está. Abre os olhos. Vou acender a luz. Daqui a uma semana podes vir levantar a assombrografia.

5 comentários:

Rosa Matilde disse...

Notável!
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Nuno Baptista Coelho disse...

É extremamente raro eu ficar sem palavras. Pelos vistos, ainda consegue acontecer-me. "Notável" não começa sequer a descrever este texto... que digo, esta obra maior.

Ando a tentar coibir-me do vício de ser hiperbólico. Neste caso a virtude é fácil, nenhuma hipérbole que me ocorresse estaria à altura da situação.

Parabéns!

Armindo S. disse...

Obra-prima!
Genial!
Esta viagem ao lado de dentro do medo evoca, nem sei bem porquê, uma descida enebriante à mina sempre farta do existencialismo.

apsarasamadhi disse...

Assilábica com os vossos generosos comentários! Sempre que a escrita sai de um só jacto (como sucedeu com este escrito) fico apreensiva, mas a necessidade/vontade prazenteira de o escrever, tendo como cúmplice o nosso Al Berto, possuiu-me. Fiquei, por momentos, luminosamente cega. Quem dera viver/escrever nesses momentos, sempre!

Aguardo ansiosa o recontro de todos nós nos contos ou dos contos em nós, porém, confesso que me falha o alinhavo do tpc...aiai...nunca primei pelo conceito em acção!!!
Até lá, prometo trazer-vos visões helénicas no olhar para partilhar (e se tudo correr bem sem gripes de abc!!!)

Aceno solar de cada anel saturno!

Guiomar Fernandes disse...

Uma enebriante evocação do medo e do corpo, vertiginoso, sublime.
Bravo!