12/09/2009

Agora… à noite…

Gostava de ter mais tempo para escrever e corresponder. É-me difícil. O tempo enrola-me de tal modo as histórias que só consigo escrever quando há vento lá fora... Depois, não consigo inventar. Só consigo enredar o que a vida me vai oferecendo, depois de muito cirandar. E depois, também tenho medo de contar.
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Pai, se tu soubesses das saudades que tenho de ti, quando me lembro dos livros que devorava, enquanto não vinhas! Sentada numa cadeira desconfortável, ao calor da braseira, na companhia da mãe, teimava em prolongar o serão, numa resistência ao sono e ao medo e esperava que regressasses a casa… O mundo, adormecido por entre nuvens de fantasmas e túneis de dúvidas, parecia ignorar a chiadeira medonha do vento que eu tentava serenar, concentrando-me nos sentidos das palavras e imaginando ilustrações de sonhos com que decorava as histórias.
A mãe, sentada na espera do dever, pendia entre pedaços de costura ao colo, enquanto a cinza crescia no lugar das brasas. E eu, numa insegura teimosia, continuava a ler, devorando páginas feitas de estórias inventadas à luz do candeeiro a petróleo. Um quadro que ainda hoje preservo na memória com a nitidez da luz que invade as casas e lança as sombras para trás das portas… um quadro ao qual gostaria de dar forma se tivesse guardado as cores com que decoraste o quintal onde tanto brinquei, enquanto trabalhavas para sustentar a família. Um quadro ao qual acrescentaria fantasias de lareira feitas de sapatinhos e, por cima, os presentes de Natal e a áurea prometida, até que o simples gesto de desembrulhar o tão desejado momento haveria de fazer cair por terra o sonho de uma longa maturação de secretos bichos-de-seda, num carrinho rosa com o bebé chorão que me estava destinado, de cor negra, que tanto me intrigou e me deixou a pensar. Talvez tenha sido esse o meu primeiro dia no mundo dos crescidos.

Lá fora, o rumor intermitente do vento suspendia de interrogação e medo o meu coração que insistia em continuar a ler, na aventura das histórias por contar. Em certos momentos sentia-me transir quase em pânico, mas esperava por ti à lareira e, no dia seguinte, o meu corpo renascia e o sol entrava pela soleira de todas as casas e inundava as frestas mais escusas.

- Pai, foste-te embora tão docemente, tão sem aviso, sem que me pudesse despedir de ti! As silvas apoderaram-se do quintal e já trepam pelo telhado. As árvores ainda resistem, algumas carregadas de fruto e, no fundo da velha arca, recordo um quinhão de nozes que mandaste guardar também para mim.

Agora, à noite, a escuridão estilhaçou as vidraças e empenou o caixilho das janelas, que já tombam de par em par. Uma ave negra entrou pela casa adentro e, com ar de habitante das trevas infernais, pousou nos meus umbrais. Tem os olhos fitos para dentro, com um ar de quem sussurra um sonho de Natal... e, quando lhe faço sinal para se ir, não se cansa de repetir “Nunca mais!”.

3 comentários:

Armindo S. disse...

A descida aos infernos da infância plenos de pesadelos grotescos como num Hitchcock temporão.
A fazer-nos pensar que o terror é muitas vezes aquilo que o deixarmos ser e outras tantas uma questão de acaso. Vítimas de nós mesmos ou de outrém, nunca o medo deve ser mais forte que a vontade de o ultrapassar.

Nuno Baptista Coelho disse...

Seja pai, amante amada ou amigo especial, todos acabamos por ter a nossa Lenore. E o corvo, o corvo que não perdoa.

O caso do pai é bastante especial, já que radica na nossa infância. mas, uma vez mais, não é pelos que partiram que o corvo lamenta o seu Nevermore: é por nós próprios, e só a nós cabe lidar com o vazio que nos ficou.

Welcome back, Margarida, fazias falta por cá. Volta sempre que puderes, isso faz diferença.

Margarida Tomaz disse...

Em conversa com os meus botões, algo me diz que Freud foi um viajante obsessivo, em redor do seu próprio divã. Hitchcock, visto apenas por uma entre milhões de "voyeurs", foi um obsessivo, que se divertia à janela da câmara de filmar, com histórias terríficas também de divã. A janela da escrita, para além de simular, também pode ser um exercício de divertimento, mesmo quando obsessivo, fantasmático e indiscreto. Um exercício prazeroso (adoro este brasileirismo que muito tem de luso), como quem espanta fantasmas, reinventando-os.
Quem me dera ser capaz de criar fantasmas!
Só consigo plagiar. Sois pois mui boas pessoas a comentar o que escrevo. E o problema é que às vezes me esqueço que isto está on-voyeur…