23/09/2009

Fuga fugaz

Contar uma fuga levou-o, pobre dele, a dirimir sobre o ponto de partida, não propriamente da ou para a fuga, mas para a escrita dela, que tanto podia ser para uma determinada fuga, em concreto, ou para uma qualquer fuga.
Preferiu esta última, incerta, imprecisa, e por isso ilimitada e para ele mais mansa e livre, como devem ser todas as fugas.
Um destes dias, de pena em punho, decidido como quem entra na liça, arriscou uma aventura, e escreveu de olhos cerrados:

Fica comigo, deixa que as palavras te seduzam, e encostados um ao outro admiremos o rio, de mãos desenlaçadas, como na ode do poeta. E descansados de estarmos, que o tempo nos invada e nos enleve. Em breve, verás, seremos longe, como quem se abandona sem querer ou sem saber que o quer. Partamos!

Depois, triste e desenganado, dobrou em quatro o branco que lhe sobrou da vigília, e adormeceu.

4 comentários:

Nuno Baptista Coelho disse...

Escrevi mentalmente um longo comentário enquanto lia o texto. Quando por fim li “Depois, triste e desenganado, dobrou em quatro o branco que lhe sobrou da vigília, e adormeceu”, deixei subitamente de ter comentários, e mentalmente fiz Delete.

Gostaria de ter escrito tal frase, e poderia decerto subscrevê-la por inteiro, mas não deixaria de me assolar o receio de ter deixado ali a melhor frase da minha vida, sujeitando assim qualquer produção futura a um crivo impossivelmente exigente. Tanta coisa, e dita em tão poucas palavras…

Quanto ao resto, a escolha é inatacável: o Ricardo Reis assumiu-se nesse poema como o perfeito mestre da fuga, seguindo o indiscutível princípio que postula que a melhor forma de fugir de algum sítio é começar por não estar lá. Não responde no entanto a tudo, e deixa por abordar o problema que é fugir, quando se está de facto lá. Mas não deixa de ser um excelente princípio.

O “Partamos!” que remata o texto dentro do texto deixa ainda uma ambiguidade, havendo como há os que partem juntos, e os que partem cada um para seu lado. É que são coisas diferentes.

Em resumo, excepcional. E de muito bom agoiro para o futuro. Num texto anterior dei-te as boas vindas, neste dou os meus sinceros parabéns.

Armindo S. disse...

Sabendo que as areias da praia fluvial da sua aldeia sustentaram os pés calejados de quem partiu,uns séculos antes, carregando sonhos, para as terras imaginadas, do outro lado do mar, o poeta teria gostado de conversar com o poeta de hoje. Ou o fantasma continua a fazer das suas: a convidar-nos de novo para libações à sua mesa. Ou um pensativo cigarro, pretende, por exotéricos sinais que se encontre a arcada certa para a justa gastronomia.
Sublime lírica. Poesia em estado puro.

Adriano disse...

uuuufff!
Muito obrigado!

António Souto disse...

Agradeço a gentileza dos comentários, animadores, que os (e neste determinante cabem «as») "colegas" do blogue têm feito. Farei por não desiludir, mas não prometo, que isto de juntar palavras...
Abraço a todos e todas.
a. souto