Lassa
trago à porta
abandonada
a personalidade.
Desobrigada, embora o adeus estivesse há muito exonerado,
desencaixilho, com a antecedência de uma parteira que nunca pariu,
o enferrujado ferrolho desse prodígio-instante.
Mergulho o rosto imóvel nessa fresta
e ao respirar no intervalo dessa inauguração, antes de envelhecer,
desenho um outro começo, sem metáforas ou topografias,
uma aurora no rasgão do sem tempo ou memória.
Comprazo-me no frio desse orifício,
demoro-me
alongo o calendário da despedida à medida cega em que embalo a hidropisia,
acrescento os meridianos da sentença prescrita,
e logo a seguir, nessa homilia incontaminada da viagem
sobreponho as feridas do nascimento sem remendos
e, ao corrigir os delírios da confusão mental num só golpe de dança,
lembra-me o corpo
com pressão e gravidade
que, à revelia, ganhou uma senha mensal
para essa mesma ombreira triunfal.
Digo-lhe, não sem alguma irascibilidade,
e sem rosto (que estava ocupado em ser livre, ainda que preso nesse férreo hiato)
que para expiar a identidade,
é mister abdicar do esqueleto, sepultar a carne e atirar fora a densidade.
Pensara (ainda de cabeça atravessada na travessia): agora sim principio o anonimato!
Insatisfeito com a recusa, esgrime o corpo um arremesso contra parte de si
sem acordes lúgubres
seguiu as vozes que de fora gritavam que para ser montanha intacta
importa mais jugular o ardil, o embuço nessa incólume passagem.
Testemunha objectiva de fora de mim,
afastara-me em anúncio vagaroso,
e, do lado direito do só-corpo-que-se-queria-eterizar,
mirava o metálico desejo daquele se anular.
Do lado esquerdo da só-cabeça-sem-corpo-que-corpo-não-te-avisto,
esboçara-se, ainda que com algum esforço, um tácito pacto de renúncia arredada
e aquela em vão se lançou para essa outra morada
onde presa ainda não se emancipara.
De frente, a personalidade desprotegida,
sem medo da queda ou da salvação,
esquivou-se, sem desculpas ou demoras,
por esse atalho espontâneo da perpétua perdição.
Decidi, desde então, receber por inteiro todo o corpo,
procrastinar a mente e abrir o embude dessa porta-coração.
08/11/2009
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5 comentários:
A todos,
desde já me penitencio pelo facto da nova publicação se furtar aos moldes habituais do nosso projecto. Porém, confesso, por razões que me são alheias, a impossilidade de, por ora, escrever contos. Ainda assim, partilho convosco.
Esta escrita-viagem aos interstícios do ser, qual Prometeu que desafia e reinventa, num acto persistente de abrir portas, com a poética que o caracteriza, a tocar o coração da arte da palavra não é para todos.
Penitência só se for porque com um teclar-escrever, contrarias a força do idioma e entras no labirinto, para enfrentar o monstro. É caso para dizer: "Mulheres que escrevem são perigosas."
Bonito poema, mais «conto» que muitos contos!
Eu, que sou ainda noviço neste espaço, compreendo-a e apoio-a, que a poesia se molda de muitas formas. Parabéns pela profundidade reflexiva e pela fluidez, Parabéns, tão-só!
Contas com uma densidade tal que fico espantado pois embora me consigas surpreender o que me espanta mais é surpreenderes deste modo.
Sempre surpreendente e exímia na arte de brincar com as palavras, dando-lhes sempre novas qualidades!
Parabéns!
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