08/11/2009

Porta

Lassa

trago à porta

abandonada

a personalidade.

Desobrigada, embora o adeus estivesse há muito exonerado,

desencaixilho, com a antecedência de uma parteira que nunca pariu,

o enferrujado ferrolho desse prodígio-instante.

Mergulho o rosto imóvel nessa fresta

e ao respirar no intervalo dessa inauguração, antes de envelhecer,

desenho um outro começo, sem metáforas ou topografias,

uma aurora no rasgão do sem tempo ou memória.

Comprazo-me no frio desse orifício,

demoro-me

alongo o calendário da despedida à medida cega em que embalo a hidropisia,

acrescento os meridianos da sentença prescrita,

e logo a seguir, nessa homilia incontaminada da viagem

sobreponho as feridas do nascimento sem remendos

e, ao corrigir os delírios da confusão mental num só golpe de dança,

lembra-me o corpo

com pressão e gravidade

que, à revelia, ganhou uma senha mensal

para essa mesma ombreira triunfal.

Digo-lhe, não sem alguma irascibilidade,

e sem rosto (que estava ocupado em ser livre, ainda que preso nesse férreo hiato)

que para expiar a identidade,

é mister abdicar do esqueleto, sepultar a carne e atirar fora a densidade.

Pensara (ainda de cabeça atravessada na travessia): agora sim principio o anonimato!

Insatisfeito com a recusa, esgrime o corpo um arremesso contra parte de si

sem acordes lúgubres

seguiu as vozes que de fora gritavam que para ser montanha intacta

importa mais jugular o ardil, o embuço nessa incólume passagem.

Testemunha objectiva de fora de mim,

afastara-me em anúncio vagaroso,

e, do lado direito do só-corpo-que-se-queria-eterizar,

mirava o metálico desejo daquele se anular.

Do lado esquerdo da só-cabeça-sem-corpo-que-corpo-não-te-avisto,

esboçara-se, ainda que com algum esforço, um tácito pacto de renúncia arredada

e aquela em vão se lançou para essa outra morada

onde presa ainda não se emancipara.

De frente, a personalidade desprotegida,

sem medo da queda ou da salvação,

esquivou-se, sem desculpas ou demoras,

por esse atalho espontâneo da perpétua perdição.

Decidi, desde então, receber por inteiro todo o corpo,

procrastinar a mente e abrir o embude dessa porta-coração.

5 comentários:

apsarasamadhi disse...

A todos,

desde já me penitencio pelo facto da nova publicação se furtar aos moldes habituais do nosso projecto. Porém, confesso, por razões que me são alheias, a impossilidade de, por ora, escrever contos. Ainda assim, partilho convosco.

Margarida Tomaz disse...

Esta escrita-viagem aos interstícios do ser, qual Prometeu que desafia e reinventa, num acto persistente de abrir portas, com a poética que o caracteriza, a tocar o coração da arte da palavra não é para todos.
Penitência só se for porque com um teclar-escrever, contrarias a força do idioma e entras no labirinto, para enfrentar o monstro. É caso para dizer: "Mulheres que escrevem são perigosas."

António Souto disse...

Bonito poema, mais «conto» que muitos contos!
Eu, que sou ainda noviço neste espaço, compreendo-a e apoio-a, que a poesia se molda de muitas formas. Parabéns pela profundidade reflexiva e pela fluidez, Parabéns, tão-só!

Armindo S. disse...

Contas com uma densidade tal que fico espantado pois embora me consigas surpreender o que me espanta mais é surpreenderes deste modo.

Guiomar Fernandes disse...

Sempre surpreendente e exímia na arte de brincar com as palavras, dando-lhes sempre novas qualidades!
Parabéns!