09/12/2008

10 – Loucura.

(Diário da vida de um são)

8:00
Constitui uma redundância, quase uma patetice, mesmo, chamar alucinante a uma vida levada entre loucos, jornada que se compõe de pedaços de insanidades diversas, colados e justapostos como um puzzle, tentativa inglória mas porfiada de construir um rumo a partir de muitos desnortes. Será sem dúvida uma vida estranha, será talvez uma vida desperdiçada, muito possivelmente uma vida destinada ao fracasso, àquele fiasco último do não-ser, mesmo sendo. Sem embargo, é essa a minha vida.

8:15
Pequeno-almoço engolido à pressa, quase esquecido de saborear, inicio as minhas rondas. Se de alguma coisa dou graças, é que não decorre entre prisões esse meu perambular. Liberdade, é essa a terapêutica moderna, e o louco contemporâneo deixa-se visitar num ambiente que em nada sugere as velhas celas almofadadas, e as pauladas que no passado visavam espantar os demónios de dentro do infeliz possuído. Nada disso, nos tempos hodiernos os loucos podem viver a sua ilusão de liberdade, exactamente como as outras pessoas. É claro que isso acarreta alguns inconvenientes, tal como o de chegarem a pensar que são de facto pessoas como as outras, mas esse é um pequeno custo, e vale a pena pagá-lo.

12:00
O bem-vindo, o ansiado intervalo do almoço. Convém aqui que nos entendamos, gostar do que se faz não é o mesmo que ser-lhe imune, e lidar com malucos é uma ocupação exigente, das que chegam a dar com um homem em doido. Passei parte da manhã a conviver com um simpático tresloucado, que me pareceu viver sob a ilusão de ser uma pessoa muito importante; por várias vezes insistiu em que o deixasse em paz, para poder fazer o seu trabalho. Até onde pude apurar, esse trabalho envolvia um empenho algo desordenado num sem-número de empreendimentos que não iriam realmente concretizar-se, visto que outros – que ele curiosamente apelidava de malucos – não o permitiriam, sob pretexto, justamente, de desejarem fazer o seu próprio trabalho. Tudo considerado, um caso banal e bastante comum.

17:00
Tarde quase inteiramente ocupada com um caso dos mais clássicos, uma maníaca religiosa. Tomei alguns apontamentos, que espero desenvolver num ensaio, quando a minha disponibilidade o permitir. Um dos aspectos mais interessantes que tenho observado neste tipo de mania é uma curiosa hierarquização dos diversos pacientes, determinada, tudo parece indicá-lo, pelo grau de popularidade da respectiva fantasia. Deste modo, alguns acabam por gozar um estatuto de respeitabilidade e privilégio, pelo facto de partilharem com muitos outros o seu devaneio favorito, enquanto outros acabam por se ver marginalizados pela relativa raridade da sua alucinação. Chegam mesmo os primeiros, com deliciosa ironia, a apodar estes últimos de malucos. Palavra de honra que não invento, pois assisti a isto com os meus próprios olhos e ouvidos: um dos doentes (o minoritário), alertava em alta gritaria quem o quisesse ouvir, que a raça humana estava condenada, pois os antigos deuses pagãos tinham-se infiltrado entre nós, disfarçados com a nossa roupa interior. Um outro maluco (o consensual) exortava-o a que se deixasse de disparates, e confiasse na graça de deus, que incansavelmente velava por todos nós, especialmente por aqueles que comessem uma bolacha todas as semanas. Não me ri de nenhum deles, porque sou um profissional, e não é bonito rir dos doidos.

19:30
Fin de journée. E bem a tempo, que esta ocupação tem tanto de exaustivo como de absorvente. Tão absorvente, aliás, que talvez me acontecesse continuar o meu trabalho indefinidamente, sem pausas, se não me detivessem os assistentes que todas as tardes, pontualmente, me afastam desta fascinante labuta, e me levam, bem enquadrado entre as suas batas brancas, para o meu local de repouso. Nessa ilha de sanidade, bem delimitada pelas quatro paredes suavemente acolchoadas de um cubículo de eremita sonhador, refaço as minhas forças, bem refugiado deste mundo que a loucura destemperadamente governa. É aí que medito, e sopeso a realidade na balança que é a imagem que dela faço, balança que não deixo nunca de ir calibrando com os pesos que por aí encontro. Tento não rejeitar nada só por me parecer inusitado ou pouco popular, nem nada aceitar só porque outros o aceitam. Tento não chamar vermelho ao amarelo, só porque me agradava que fosse vermelho, e esforço-me por não pensar o que os outros dizem que pensam, só por causa de o dizerem.

Tento, acima de tudo, não dar em doido. Porque, se isso um dia acontecer, receio bem que acabem por me expulsar do manicómio, e me mandem para casa.

2 comentários:

Armindo S. disse...

Escrita genial, maculada desde agora com este pobre comentário.
A ordem com que as frases aparecem para confluirem na aparição do conto, sugerem que os milagres afinal existem. E a sorte de eu os poder contemplar.

Margarida Tomaz disse...

Momento de justiça:

Quando li esta história, confesso que fiquei surpreendida pela técnica narrativa a fazer-me lembrar livros que me tocaram pela atitude sábia de um narrador que reflecte sobre o seu tempo, a sua experiência, a sua história de vida. Deixei para mais tarde o comentário e o tempo foi passando e não voltei mais atrás. Há dias o 1º comentário levou-me a relê-lo e agora, antes tarde do que nunca, a fazer justiça: se tivesse de eleger o melhor conto até ao momento, deste blog, que me desculpem todos, seria este mesmo. Pela ousadia de um narrador que recusa sair do seu tempo para nos fazer reflectir sobre a loucura humana, sobre os padrões de comportamento, sobre a resistência à atitude das "batatas de sofá".