06/12/2008

Em época de consumo... um sorriso por uma moedinha

E como o prometido é devido, aqui fica meu contributo:


Era uma vez um homem magistralmente sério, de lábios salientes, estendidos em forma de concha, numa boca muito séria, com um nariz vulgar muito sério, com um olhar escuro muito sério, que viajava no metro, com um fato preto que lhe dava um ar também muito sério. Este homem era ainda um jovem, que parecia preocupado apenas com o seu ar sério.
Nascido na nova geração de primatas portadores de genes de informação tecnológica, que aprenderam as leis da economia do tempo global, este jovem rapaz, de ar muito sério, parecia viver para a sua imagem muito séria, ignorando as perspectivas caleidoscópicas que lhe dava o espelho do mundo, muitas delas nos antípodas do sério, apesar de ter aprendido precocemente a lei da mobilidade.
Entretanto, o metro repetia o percurso do dia, da semana e dos meses e o jovem muito sério entrava muito cedo no metro, com um ar muito sério e regressava à noite, já no adiantado da hora do serão, também com um ar muito sério. Mesmo quando passavam mendigos, mendigos iguais a todos os mendigos, desde que ele se conhecia que assim era, mendigos de acordeão, de cãozinho enrolado ao pescoço, ceguinhos de tigela numa mão e bengalinha na outra, mulheres maltrapilhas com crianças ao colo, o homem sério mantinha o semblante e nunca ninguém o vira oferecer uma moedinha ao freguês ou ao ceguinho.
Certo dia, perto da hora da ceia de Natal, o senhor muito sério entrava no metro de regresso a casa, quando é abordado por um mendigo, desses que não gosta de receber sem dar em troca, pensos rápidos, canetas coloridas, ou outras utilidades made in China, todo vestido de vermelho, carregado com uma meia gigante também vermelha, de onde retirou um objecto feito em silicone, em forma de boca, em meio sorriso contagiante, e o ofereceu ao senhor muito sério, em troca de algum dinheiro para a ceia de Natal. O senhor muito sério, carregado de compras de Natal, mais sério ficou e virou costas, reclamando entre dentes: Que inutilidade!

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