18/12/2008

13 - Mea Culpa (non est) ou o Vôo de Ícaro

Mea Culpa
(non est)
ou
o Vôo de Ícaro
- Sonhei contigo. Disse-o de uma forma discreta, diria até enigmática, sibilando-o em tom profético e augurante.Porém, Henri não a ouvira. Entrara assoberbado de si, envolto em questiúnculas do dia-a-dia. Submergira, há muito, no marasmo de uma existência vaticinada à opacidade. Veramente escurecida no esquecimento, em si, da alteridade. Não reparara na beleza bélica de Sara, algo desértica de si. Não testemunhara o seu perfil crespado, prolongamento de uma alma eriçada e revolta (vista apenas do lado de dentro, entre o visto de quem parte, sem nunca ter chegado, e o olhar de quem nunca precisou de ir), não pressentira a igneidade daquele olhar cheio e, ao mesmo tempo, tão desatento de si. Falhava, nesses ápices de eternidade em que ela lhe dirigia a surda voz, a morada daquela floresta-virgem que irrompia de um debelado vulcão. Essa pulsão interna que a habitava, insondada por si própria, revestia-a, aos olhares desacautelados da turbamulta, de uma desconexa acinesia social alicerçada a um entorpecimento léxico sem igual. Epidermicamente, dir-se-ia que sofria de constrições sintomáticas por todo o corpo. Toda essa linha desataviada se agudizava sempre que o sentia perto ou longinquamente cheirava aquele odor artificioso e afectado que permanecia por incensar (à maneira dos indomáveis, possuía os cinco sentidos hiperespecializados). Sara, de modo mordaz, não atribuíra absoluto relevo ao que acabara de acontecer. Sabia que iria ser encontrada ou babilonicamente procurada. No imo deste enredo irrevogável ou desse grito que, por um lado, a colhia, intrigada, e, por outro, a toldava, dominada, esmiuçava a possibilidade de se ter encantado por descrita figura, apenas porque o sonhara, ou se acaso o sonhara por insuspeito enamoramento. Saiu do trabalho em passadas curtas mas lestas (com dispersas vagações, perdera a métrica do tempo!). Cruzou-se, inadvertidamente, com Henri que não a sentira. Acendera, de imediato, uma cigarrilha como se, por esse diáfano fumo, se abrisse um portal saturno que, em oculto sortilégio, invertesse a ampulheta e a transpusesse, num só salto, nos ensaios de dança que, diariamente, frequentava. Esta era a única hora em que o Absoluto respirava o absoluto de si, ímpar fenda donde as Alturas despontavam e mais fundo do eixo cósmico mergulhava. Era esse o momento em que, no corpo, toda a Poesia a inundava!Chegada à Academia, viu-se sozinha. Tudo silente. Seguiu uma melodia metálica e belicosa que, estranhamente, não conseguia decifrar se viria da sala ao fundo do corredor capitular ou se do fundo estrutural de si própria. Continuava a caminhar, diligente. A luz crepuscular que, de fora para dentro, se alastrava, difundia-se, indiscretamente, não pela tradicional Academia, mas por todas as Idades, Épocas ou Vidas que naquele dédalo momento se adivinhariam. Olhara em redor, certificando-se novamente do abandono daquele espaço, garantindo a religiosidade do acto: inspirara, profunda e amplamente para, na expiração louca ou santificada, largar tudo, chapéu, roupas, mente. Esquecia-se de si. Dançava!Do lado de cá da realidade, um olhar pasmado e hipnótico, seguia todos aqueles movimentos libertos da gravidade de um ferino corpo, todas as somas de deslocações que desenhavam o Infinito, todas as transferências de consciência até à sua exaltação ou total anulação, nesses trajectos despertos para as viagens de vazão do mundo sem partida, do vôo de Ícaro com flama e sem chão! Era Henri que, em estado espasmódico, finalmente, a decifrava!Passados meses de corte, já Sara se cansava de tamanha insistência e persistente teimosia, assemelhando-o a um abutre sanguinolento que, inopinadamente, a sitiava. Henri esperava-a longamente, escoltando-a permanentemente ao local da revelação que, de modo incônscio, iria definir a sua humana condição. Sara, por seu turno, houvera sentido que o olhar dele a perscrutara naquela fatal tarde com que sonhara e sentira, inequivocamente, que a vira dançar ou, em sentido vertical, a vira nascer da entreluz que do sem-centro de si espraiara! Quisera adverti-lo, evitá-lo e acautelá-lo. Ele não a vira, não a pudera sentir ou sequer ouvir. Por natureza, não o conseguira fazer.Toldado pela cegueira do encantamento e exaltado pela bruma cerrada de uma manhã que, na sua totalidade, a imagem de Sara invocava, Henri, com exemplar minúcia, preparava a oferenda final. Decidira-o. Sem desassossego. Nessa manhã, Sara, azafamada com a marcação dos ensaios finais, ouvira em cântico de dor que Henri se suicidara. Resignada, sussurrara, em tom de renúncia: - Mea culpa, non est.
Chloe Plectra

1 comentário:

Armindo S. disse...

Eis a culpa. Começa tantas vezes pela palavra não. E quando a assunção se resolve quanta libertação se consegue. A culpa é uma grilheta pesada. Quem dera poder ensinar a sua não existência. Sê benvinda e que seja por muito tempo a tua preciosa colaboração. Prometido. Cumprido.