10/12/2008

Consumo

Ainda não é um conto, mas fica prometido que o próximo há-de ter essa pretensão. Até lá, força a esta bola de neve...

CONSUMO

Eu, consumidor, me confesso. Consumo cigarros em estado de vigília. Consumo copos entre o balcão da tarde e as horas vazias. Consumo noites nem sei bem como, agora que não consumo lingerie para oferecer à vida. Pelo meio, consumo cafés a fio e conversas de circunstância, só para gastar pavio em tascas manhosas onde ainda é permitido consumir pezinhos de coentrada e pastéis de bacalhau sem código de barras. Consumo versos e outras substâncias de consumo corrente, raro ou ilícito, conforme o ponto de vista do consumidor em causa. Consumo blues. Consumo ideias fora do mercado. Consumo quilómetros quando posso.
Eu, consumidor, me confesso. Nunca acreditei no Pai Natal, mas na meninice escrevi longas cartas ao Menino Jesus, crendo que elas lhe chegariam mesmo assim, tão cheias de desejos, tambores, bolas de cauchu e camiões de madeira quanto de atropelos à ortografia. Consumida que foi pelos anos a ingenuidade, foram-se os erros ortográficos e ficou a certeza do Menino não sair agora dali, do quentinho de barro do presépio armado no tampo da arca coberto de musgo a 9,99 € a caixa, pequenina. Dali não sai, é certo, como provável é nunca ter saído da crença de cada um, nem mesmo para apreciar as luzinhas da quadra brilhando feéricas na fachada dos monumentos, perturbando nas árvores o sono dos pardais ou piscando humildes 5, 60 €, quando compradas na loja do chinês. Pois. É isso. Não acredito, mas consumo o folclore destes dias, do presépio à árvore de plástico iluminada, passando pelo bacalhau, mais as azevias e os coscorões e os sonhos da inevitável consoada. No dia seguinte, além da ressaca, consumo quase sempre roupa-velha, num bom refogado em azeite e alho. O vinho, esse, será o que tiver sobrado.
Eu, consumidor, me confesso. Na vaga natalícia, consumo ainda as vulgares boas-festas a toda a gente, o prazer de estar bem onde sempre bem estou. Por isso, consumo também remorsos. Porque enquanto entre família e amigos consumo o tempo que me resta, outros e muitos há a quem não sobra mais do que consumir os restos da boa-fé esporádica de cada um de nós. Seria aí que o Menino Jesus devia aparecer, proibindo esmolas, recolhas de bens, vendas de beneficência. Se assim fosse, não consumíamos solidariedade em datas marcadas. Éramos solidários. E a banca nunca seria o que é.
Eu, consumidor, me confesso. Pelos vistos, sou também capaz de, entre romances recém-publicados, perfumes da moda e brinquedos, consumir finais politicamente duvidosos.

2 comentários:

Armindo S. disse...

Excelente representação da José Saramago e logo hoje que faz precisamente dez anos que o patrono alcançou o Nobel. A ti e a ele longa vida e continuação da fabulosa produção.

Adriano disse...

Não exageres, Armindo! Mas obrigado: para a bola rolar, é necessário que cada um de nós vá opinando sobre o que lê. Já aqui me penitencio: o trabalho aperta, e a crítica exige algum tempo. Mas não tarda que a interrupção do Natal chegue. Procurarei aí o que agora me falta para ler cada texto de cada um de nós.
Abraço,
Adriano