27/12/2008

CULPA DANADA

CULPA DANADA

Levantou-se, pôs-se a caminho, chegou à função. Correu-lhe o dia como de hábito, com assaz de desalento. Em final de jornada, terminou a derradeira tarefa quinze minutos antes do toque. Não o devia ter feito, porém. Graças a tal, nas curvas da estrada se ficou alguém que a elas assim chegou pontual ao previsto. Um quarto de hora mais tarde, e seria o destino a capotar sozinho. Culpa danada. E de nada lhe serviu o genuíno arrependimento. Chegado ao seco fim do desespero, embebedava-se ainda na cicuta do remorso. Perdeu-se, entretanto, ao cabo de muitas tentativas de regresso à rotina. A dado passo, acabou por se ver só, entre farrapos de memória e lixo.
Uma noite, acordou enregelado, numa amálgama de cartões e velhos pesadelos. Havia sombras a vaguear perto de um lume crepitando. Cheirava estranho. Titubeante, levantou-se. Ainda na mente lhe picava a mesma desolação, tenaz como nos olhos o ardor do fumo. Valeram-lhe as palavras:
– Chegue-se aqui, amigo. Na rua, a ressaca é mais fria...
Acocorou-se e esfregou as mãos junto do fogo. Aceitou a navalha no fio, metade de uma cebola, meia lata de atum barato. Pelo gargalo, bebeu de um sorvo o resto de vinho que lhe passaram. Carrascão, o tinto soube-lhe tão azedo quanto a lembrança daquele dia que até ao final lhe correra tão como de costume. Sentiu o aperto no estômago, mais agudo agora, com as voltas e o sabor do atum. Culpa danada. Limpou os lábios com as costas da mão e procurou nos bolsos uma beata. Acendeu-a. Três passas após, já queimava os dedos. Lançou-a à fogueira, enquanto se levantava. As duas sombras entreajudavam-se, empilhando cartões e mantas sem cor. Preparavam-se para dormir, numa paciente engenharia de sobrevivência. Vendo-os, soube que também ali não estaria a sua redenção. E disse, numa voz entorpecida:
– Na rua, mais fria do que a ressaca, só a culpa atravessada no coração...
– Olhe, amigo – respondeu ensonado o mais idoso – se de culpa se trata, tranque portas e aprenda a viver com ela. Nesta vida, culpados somos nós todos de qualquer coisa.
Calou-se, diante de tal resignação. O velho ajeitara uma das paredes do abrigo improvisado a meias, virara costas ao companheiro e, puxando o cobertor desbotado, tinha-se encolhido como um feto, a resmungar entre dentes. O fogo morria. Tinha de sair dali, onde já não havia além. Aquela gente definhava no vulcão da indiferença e a isso se habituara, sem perder humanidade. Outra culpa se lhe colava agora à pele, e um arrepio mostrou-lhe enfim uma luz.
Afinal, não precisava mais do que tinha. A folha da vida é escassa e esgotá-la nas linhas da auto-flagelação não conduz a qualquer lugar impoluto, se é que os há. Avivou a fogueira com a última tábua que restava, despiu o casaco e deixou-o sobre as duas sombras adormecidas. Fugiu de sob o viaduto e correu pela berma da circular, até perder o fôlego. Precisava só de um banho. Amanhecia, quando chegou à porta de casa, horizonte do qual se afastara com a culpa danada. Subiu as escadas, meteu-se no duche e deixou-se estar, até culpado se sentir só do que era, coisa de nada.
No dia seguinte, estava nas curvas da estrada onde alguém antes chegara pontual ao previsto. Deixou-lhe um cravo vermelho e chorou. Num repente, qualquer coisa o amparou. Viu-se calmo, então, a pensar na urgência de arranjar um atestado médico para justificar os dias de ausência à função.

3 comentários:

Nuno Baptista Coelho disse...

Bravo. Bravo, claro, mas há mais. Há frases brilhantes como "seria o destino a capotar sozinho", para mencionar apenas uma. Há ainda outra coisa, mencionada com menos frequência: o prazer de lêr todo o texto, até ao fim.

Um brilhante exemplo da elevada qualidade deste blog, qualidade a que tento ascender (julgo que fiz uma menção a isso no meu post seguinte). Em relação a este, termino como comecei: bravo!

Guiomar Fernandes disse...

Por qualquer razão, que não sei explicar, fez-me lembrar as "Intermitências da morte". Adorei!
Aliás, sinto uma culpa danada de ainda não ter escrito a culpa, nem o sonho, nem a mudança. Findas que estão as festas (que me deram mais trabalho que descanso) espero voltar a conseguir apanharo ritmo dos meus ilustres companheiros de blog. Sem promessas, mas com determinação.

apsarasamadhi disse...

Sempre exerceu sobre mim um fascínio labiríntico a figura do mendigo ou do vagabundo que, na simplicidade intrincada da noite, encontra as vésperas de si!